No terraço do Alcazar corria a pândega desenfreada. Representava-se La folie parfumeuse, e as notas candenciosas da alegre partitura misturavam-se no pesado ambiente do teatro com frêmito das gargalhadas, o fumo dos charutos e o vapor inebriante dos vinhos.

Em torno das mesinhas de mármore, homens e mulheres, aos magotes, vozeavam, numa estrepitosa concussão de línguas, em que a francesa era a mais atropelada. Fervia o champanha por toda a parte, e por todos os grupos faiscavam diamantes e jóias de alto preço. Havia toilettes das loureiras, um luxo de espetáculo d'ópera, e as carruagens, estacionadas na rua à espera delas, formavam serpentes que abrangiam quarteirões.

Sob a pobre e melancólica folhagem de bambus de que constava o jardinzinho do famoso café-concerto e que atormentada pela luz mordente do gás, parecia minguar de nostalgia, saudosa da frescura dos seus campos, rolava todas as noites, na mesma onda, a inconsciente e barulhosa prodigalidade dos herdeiros ricos e a torturante pantomimice dos fingidos argentários. Viam-se os elegantes de chapéu de feltro claro e luvas de cor, empunhando inquietadores bengalórios encabeçados de ouro; viam-se rutilantes e agaloadas fardas da Marinha e do Exército, em contraste com as joviais casacas negras dos cançonetistas parisienses, que vinham cá fora, nos intervalos dos atos, escorrupichar, a barba longa e de camaradagem com o público, o seu gelado grogue à la américaine. Destacavam-se os sangüíneos e atochados tipos dos ricos fazendeiros do interior da província ou do fundo de Minas e São Paulo, sequiosos por atirar às goelas da pândega fluminense um bom punhado de contos de réis da sua última safra de café; alguns desses, mal chegados essa mesma noite, ainda conservavam as suas botas da viagem e o seu poncho à moda do Sul.

Dentre o cheiro das perfumarias e dos pós de toucador, tresandava uma sutil e femeal rescendência pituitária, que punha nas ventas masculinas irracionais palpitações de faro.

Era ali, naquele teatrinho da estreita rua da Vala, entalado entre casas de comércio a retalho, que todas as noites a gente folgazã da Corte, e os mais que dela dependiam, iam buscar de ponto em branco o seu quinhão de gozo para os sentidos esfalfados; mas era lá também que muito desgraçado ia pedir ao ruído do alheio prazer o esquecimento das próprias agonias, de surdas e inconfessáveis dores, ou ia cavar, com um sorriso mais triste que o esgar de um enforcado, os dois mil-réis para as primeiras compras da casa no dia seguinte. Á sombra daqueles amarelecidos bambus, se encontravam os infelizes de toda a espécie, os infelizes que choram para fora, e os infelizes que choram para dentro; ao lado do vagabundo lamuriento e pedinchão, lá estava, em boa aparência, o mísero chefe de família desonrado pelo luxo da mulher e das filhas, o falido e risonho financeiro, vivendo, a cliquot e havana, à custa das regalias do seu débito à Praça; lá estava o político vendido e garboso da sua venalidade, e artista sem ânimo, e jornalistas dispépticos, e cômicos notívagos, e jogadores profissionais, e lindos mancebos de lábios alugados ao amor das dissolutas.

E desse elemento vário se compunha a enorme roda, que nessa noite cercava ruidosamente no Alcazar a formosa Condessa Vésper.

Ambrosina havia já criado, em torno dos seus cruéis sorrisos de amor, uma grande e rubra auréola de escândalos. Contavam dela fatos extraordinários de petulância e originalidade orgíaca, atribuíam-lhe no gênero todas as anedotas sem dono que vagavam pelo Rio de Janeiro, diziam com assombro os milhões que a Condessa desbaratara, as ruínas que a seus pés abrira, e as vítimas de amor que até aí fizera.

Ali, dentre todas aquelas almas escravas dos sentidos e despojadas de ideal, era ela talvez a única verdadeiramente feliz. Sentia-se radiante no meio da sua corte de libertinos, cercada de olhares suplicantes e aduladores sorrisos, alvo de desejos, de elogios e de invejas.

Em torno da sua mesa agitava-se a multidão curiosa e fascinada; as suas palavras eram acolhidas pelos companheiros de roda, como geniais preceitos, que enobrecem os primeiros ouvidos que os escutam. Ao seu lado, o Lopes Filho, o Rocha Coelho, o Reguinho e aquele célebre cogumelo Costa Mendonça, atentos e cerimoniosos, desfaziam-se em galanterias.

A Condessa não obstante protestava que ia fugir para casa, porque estava domesticando um urso branco, que entraria na jaula à meia-noite.

— Não se vá ainda... pedia labioso o deputado pela Bahia. Deixe isso para outra vez... Vamos cear ao Paris... o urso não fugirá!...

Ela, porém, não atendeu, ergueu-se, fez um geral e gracioso cumprimento à roda, e saiu acompanhada de longe por um imenso grupo de táticos admiradores, e de perto por aqueles quatro embeiçados, que a conduziam até à carruagem, disputando entre si a suprema honra de lhe dar o braço..

Ao entrar no carro, notou que da porta do teatro um rapaz, ainda muito moço lhe acompanhava os movimentos com um ar satírico e desdenhoso.

Ambrosina fingiu não dar por isso, mas a impressão daquele olhar, tão contrária a de todos os outros que ela essa noite recebera, lhe ficou doendo por dentro como imperceptível espinho cravado no seu melindroso orgulho de mulher formosa. Um simples olhar, talvez involuntário, e vindo distraidamente de olhos desconhecidos, bastou para toldar com uma pontinha de fel o triunfante humor, em que a leviana palpitava de vaidade no efêmero predomínio das suas graças.

Foi já nervosa que ela, ao chegar à casa, disse à criada, arremessando leque, luvas e chapéu:

— Sirva-me um banho tépido com bastante vinagre de Lubin, e tire um peignoir daqueles que estão na caixa de seda cor-de-rosa; a ceia que lhe encomendei traga-a para a saleta da alcova, não precisa deixá-la à mostra, ponha-a sobre a mesa de charão por detrás do biombo dourado; depois feche as portas da sala de jantar, e pode recolher-se; se o John ainda estiver acordado, diga-lhe que também o dispenso; deixe a porta da rua aberta... Mas avie-se, que espero por alguém, e são horas!

E daí a pouco, Ambrosina, mergulhando o mármore do seu corpo no cheiroso e opalino banho, murmurava sozinha:

— Maldito sujeito que me olhou daquele modo! Desejo-lhe a morte! E Deus que me ouça!

Esse sujeito, contra cuja vida lançava tão feia praga a formosa criatura, era o nosso altaneiro Gustavo, que naturalmente nem sequer suspeitaria ocupar naquele momento o endiabrado espírito da mulher mais espaventosa do alto coquetismo fluminense.

Entretanto, a torre de São Francisco começava a derramar lugubremente no silêncio das ruas as doze badaladas da meia-noite, e por esse tempo o sombrio vulto do Médico Misterioso, cabeça baixa e passos tardios, tomava a direção da casa da Condessa Vésper, sem desconfiar que era por alguém observado e seguido a distância.

Encontrou a porta da rua aberta e o corredor às escuras, entrou e subiu as escadas, sem olhar para trás!

Lá em cima foi recebido pela própria Ambrosina, que, como acabamos de ver, se havia preparado intencionalmente para aquela entrevista.

Vestia ela um amplo penteador de rendas transparentes, que deixavam adivinhar meia verdade do mistério das suas formas, calçava meia de seda listrada e chinela turca. Tinha os cabelos submetidos a uma trança única, que lhe caía nas costas como uma serpente viva, e os braços libertavam-se das fartas mangas do roupão e apareciam dominadores na sua pecaminosa nudez, apenas algemados por um par de pulseiras circassianas.

Quando Gaspar penetrou na voluptuosa câmara, dubiamente iluminada por uma lâmpada cor de lírio, sentiu-se abalado por uma doce e estranha saudade, que o transportava suavemente às cenas da sua juventude. A memória de Violante assistiu-lhe ao coração de um modo doloroso e lúcido, e ele parou, comovido, a contemplar Ambrosina estendida no divã.

A tentadora sorria, a fumar um cigarro de tabaco oriental, e, com um gesto delicioso, disse-lhe que corresse o reposteiro da porta e fosse assentar-se ao lado dela.

O médico obedeceu, quase sem consciência do que fazia.

— Estamos em completa liberdade, acrescentou Ambrosina, beijando-lhe as mãos. Podemos conversar de coração aberto...

— Aqui me tem, balbuciou Gaspar. Vamos a saber o que me ordena...

— Que não me fales desse modo... eis o que te ordeno antes de tudo... Quero-te mais camarada, mais íntimo, mais chegado a mim...

E arrastou-se toda ela para ele, puxando para o seu colo a cabeça do médico.

— Vamos... disse este, desviando-se; falemos do que importa... Deste modo não chegaremos a nenhuma conclusão!...

— Há tempo!... contrapôs Ambrosina, quase ressentida. Façamos primeiro uma ceiazita à la bohême. Estou com apetite, e temos aqui mesmo o que trincar, sem precisarmos de ninguém.

E, tapando com as mãos os ouvidos para não escutar os protestos da visita, correu a buscar a mesinha de laca, e ela mesma serviu ostras frescas, pão, espargos, morangos e champanha.

Em seguida, fez Gaspar assentar-se à mesa e, pondo-se de novo ao lado dele, pediu-lhe que abrisse a garrafa, e ia já atacando as ostras, muito lambareira e sensual, a lamber com língua de gata a rósea ponta dos dedos e a dar estalinhos com a língua contra o céu da boca.

O médico mal tocava no prato por comprazer; dizia-se indisposto e começava, contrariado, a franzir as sobrancelhas; Ambrosina, porém, não desanimava e, enquanto comia e bebia, fazia-lhe infantis carícias e conversava alegremente.

Palraram sobre a viagem no dia seguinte, veio a pêlo a famosa carta por ela dirigida a Gabriel, e Ambrosina a reclamou logo; queria queimá-la, para que não permanecesse vestígio do seu primitivo amor.

Gaspar concordou e apressou-se a sacar a carta do bolso. Veio com ela de envolto uma fotografia.

— E de alguma mulher?!... Deixa-ma ver! pediu Ambrosina, com grande empenho.

— Qual mulher! É de um sobrinho meu... Aí a tem veja!

Ambrosina ficou séria. o retrato era do rapaz que tão insolitamente a fitara à saída do Alcazar.

— Quem é este sujeito?...

— Um sobrinho meu, acabo de dizer.

— Chama-se?...

— Gustavo Mostella.

— Ah!

— É um excelente rapaz. Tem talento e tem caráter...

— Não me parece boa...

— Engana-se...

— Muito antipático!...

— Não acho...

E Ambrosina ficou a olhar longamente para a fotografia; depois, atirou com esta para junto do prato de Gaspar e disse, espreguiçando-se:.

— Ai! ai! Tenho um pouco de preguiça...

— Quer que me retire?

— Não. Que lembrança!... Quero ao contrário, que me deixes encostar ao teu colo...

E, sem esperar pela resposta, estendeu-se no colo do médico.

Este via-lhe os olhos cerrados a meio, via-lhe a boca entreaberta, a mostrar a pérola dos dentes, via-lhe a carnação deliciosa da garganta, a transparência da pele, o cor-de-rosa das narinas, e sentia-lhe o aroma dos cabelos; mas sua fisionomia não denunciou o menor abalo interior. A máscara do rosto conservou-se inalterável.

— Estou meio tonta... segredou Ambrosina. Leva-me para a alcova, sim? Conversaremos lá...

Mas, com uma idéia súbita, exclamou despertando:

— Ah! É verdade! Fechaste a porta da rua?

— Não decerto...

— Espera então um instante... Dispensei os criados... Vou eu mesmo fechá-la, para ficarmos mais à vontade.

— Não é preciso tomar esse incômodo... eu me encarrego disso agora ao sair. Adeus.

E Gaspar ergueu-se, decidido irrevogavelmente a retirar-se, mas a rapariga não lhe deu tempo para fugir: com um gesto profissional e certeiro, passou-lhe os hábeis braços em volta do pescoço, grudando-se toda a ele e prendendo-lhe os lábios com os dentes.

O Médico Misterioso ia arrojá-la de si, quando de súbito se arredou o reposteiro da entrada, deixando ver o vulto transformado de Gabriel, que, trêmulo e arquejante, olhos em fogo, os observava mas pálido que um cadáver.

Um só grito se ouviu, feito da exclamação dos outros dois.

Ambrosina, temendo-se em risco de uma agressão do ex-amante, fugiu para o interior da casa, e Gaspar precipitou-se no encalço de Gabriel, que observada a cena, deixara de novo cair sobre ela o reposteiro, e aos esbarrões se afastava pelo corredor.

O médico quis ampará-lo nos braços, o rapaz, porém o repeliu com ímpeto, balbuciando entredentes cerrados pela cólera:

— Desculpe-me ter vindo interrompê-lo nos seus íntimos prazeres... Não pude evitar a mim mesmo esta nova beixeza! Dou-lhe todavia a minha palavra de honra que não a cometi por aquela desgraçada, mas só pelo senhor, a quem eu supunha meu amigo e incapaz de tamanha infâmia!

Não te iludas com o que viste! Eu tudo te explicarei, meu filho!

— Proíbo-lhe que me dê esse tratamento! o senhor nunca foi meu pai, felizmente! E de hoje em diante nada mais há de comum entre nós! Afaste-se de mim!

— Gabriel!

— Não me toque, ou eu o esbofetearei!

E Gabriel, ganhando a porta do corredor, desgalgou a escada.

— Ouve, meu filho! ouve-me por amor de Deus! exclamava o médico já na rua.

Mas o outro havia de carreira alcançado o carro que o esperava na praça, e mandava ao acaso tocar para a frente a toda força.