A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Inferno/II

Depois da invocação às Musas, Dante, considerando a sua fraqueza, duvida de aventurar-se na viagem. Dizendo-lhe, porém, Virgílio, que era Beatriz quem o mandava, e que havia quem se interessava pela sua salvação, determina-se segui-lo e entra com o seu guia no difícil caminho.

Fora-se o dia. Dante e Virgílio assistem o cair do dia.

Fora-se o dia; e o ar, se enevoando,
Aos animais, que vivem sobre a terra,
As fadigas tolhia; eu só, velando,

Me aparelhava a sustentar a guerra
Da jornada, assim como da piedade,
Que vai pintar memória, que não erra.

Ó Musas! Ó do gênio potestade!
Valei-me! Aqui, ó mente, que guardaste
Quanto vi, mostra a egrégia qualidade.

“Poeta”, — assim falei, — “que começaste
A guiar-me, vê bem se em mim persiste
Calor que, à empresa que me fias, baste.

“Que o pai do Sílvio fora, referiste,[1]
Corrutível ainda, até o inferno
Sem perder o que em corpo humano existe.

“Se do mal assim quis o imigo eterno,
Origem vendo nele do alto efeito,
O que e o qual, segundo o que discerno,

“Pela razão bem pode ser aceito;
Que para Roma e o império se fundarem
Fora no céu por genitor eleito;

“À qual e ao qual cabia aparelharem,
Dizendo-se a verdade, o lugar santo
Aos que do maior Pedro o sólio herdaram.

“Nessa empresa, em que o hás louvado tanto,
Cousas ouviu, de que surgiu motivo
Ao seu triunfo e ao pontifício manto.

“Lá foi o Vaso Eleito ainda vivo:[2]
Conforto ia buscar, à fé, que à estrada
Da salvação princípio é decisivo.

“Por que irei? Quem permite esta jornada?
Enéias, Paulo sou? Essa ventura
Nem eu, nem outrem crê ser-me adatada.

“Receio, pois seja ato de loucura,
Se eu me resigno a cometer a empresa.
Supre, és sábio, o que digo em frase escura”.

Como quem ora quer, ora despreza,
Sua alma a idéias novas tem disposta,
Mostrando aos seus desígnios estranheza,

Assim fiz eu na tenebrosa encosta,
Porque, pensando, abandonava o intento,
Formado à pressa, que ora me desgosta.

“Do teu dizer se atinjo o entendimento”
— Do magnânimo a sombra me tornava, —
“Eivado estás de ignóbil sentimento,

“Que do homem muita vez faz alma ignava,
Das honrosas ações o desviando,
Qual sombra, que o corcel ao medo trava.

“Desse temor livrar-te desejando,
Por que vim te direi e quanto ouvido
Hei logo ao ver-te mísero lutando.

“No Limbo era suspenso: eis requerido
Por Dama fui tão bela, tão donosa,
Que as ordens suas presto lhe hei pedido.

“Brilhavam mais que a estrela radiosa
Os seus olhos; suave assim dizia
De anjo com voz, falando-me piedosa:

— “De Mântua alma cortês, que inda hoje em dia
No mundo gozas fama tão sonora,
Que, enquanto existir mundo, mais se amplia,

“Amigo meu, que a sorte desadora,
Pela deserta falda indo, impedido
De medo, atrás os passos volta agora.

“Temo que esteja tanto já perdido,
Que tarde eu tenha vindo a socorrê-lo,
Pelo que lá no céu dele hei sabido.

“Parte, pois, e com teu discurso belo
E quanto o salvar possa do perigo
Lhe acode; e me console o teu desvelo.

“Sou Beatriz, que envia-te ao que digo,
De lugar venho a que voltar desejo:
Amor conduz-me e faz-me instar contigo.

“Voltando ao meu Senhor, em todo o ensejo
Repetirei louvor, que hás merecido”. —
“Tornei-lhe, quando já calar-se a vejo:

— “Senhora da virtude, a quem tem sido[3]
Dado só que proceda a espécie humana
Quanto é no mundo sublunar contido,

“Tanto praz-me a ordem que de ti dimana,
Que, já cumprida, houvera inda demora:
Em me abrir teu querer não mais te afana.

“Diz-me, porém, por que razão, Senhora,
Baixar a este centro hás resolvido
Do céu, a que ardes por voltar agora”.

— “Se queres tanto ser esclarecido
Eu te direi” — tornou-me — “frase breve
Por que sem medo às trevas hei descido.

“Somente as cousas recear se deve
Que a outrem podem ser causa de dano
Não das mais: a temor a causa é leve.

“De Deus favor criou-me soberano
Tal, que a vossa miséria não me empece
Nem deste incêndio assalta o fogo insano.

“Nobre Dama há no céu, que compadece[4]
O mal, a que te envio; e tanto implora,
Que lá decreto austero se enternece.

— “Volvendo-se a Luzia, assim a exora:[5]
“O teu servo fiel tanto periga,
Que ao teu amparo o recomendo agora”. —

“Luzia, sempre do que é mau imiga
Ergue-se e ao lugar foi, em que eu sentada
Ao lado estava de Raquel antiga.[6]

“De Deus vero louvor!” — diz-me apressada —
“Por que não socorrer quem te amou tanto,
Que só por ti deixou do vulgo a estrada?

“Não lhe ouves, Beatriz, o amargo pranto?
Não vês que junto ao rio é combatido,
Que ao mar não corre, por mortal espanto?” —

“Os danos, tão veloz, não tem fugido
Ninguém, nem procurado o que deseja,
Como eu, em tendo vozes tais ouvido;

“O trono meu deixei, por que te veja,
Fiada em teus discursos eloqüentes,
Honra tua e de quem te ouvindo esteja”. —

“Assim falava e os olhos fulgentes
Com lágrimas a mim ela volvia,
Para apressar-me a vir assaz potentes.

“A ti vim, pois, como ela requeria;
Da fera te livrei, que da colina
Tão perto já, teus passos impedia.

“Que fazes, pois? Por que, por que domina
Tanta fraqueza o peito espavorido?
Por que ao valor tua alma não se inclina,

“Quando és pelas três santas protegido,
Que na corte do céu por ti se esmeram,
E gozar tanto bem lhe é prometido?” —

Quais flores, que, fechadas, se abateram
Da noite ao frio, e, quando o sol aquece,
Erguem-se abertas na hástea, tais como eram,

Tal meu valor renova e fortalece.
Tanto ardimento o coração me aviva,
Que exclamei, como quem jamais temesse:

“Ó Dama em socorrer-me compassiva!
E tu, que a voz lhe ouvindo, obedeceste,
Cortês ao rogo e com vontade ativa,

“Por teu dizer no peito me acendeste
Desejo tal de vir, que sou tornado
Ao propósito, a que antes me trouxeste.

“Vai, pois nosso querer ’stá combinado.
Serás meu guia, meu senhor, meu mestre!”
Disse-lhe assim. Moveu-se ele; ao seu lado

Pelo caminho entrei alto e silvestre.

  1. O pai de Sílvio, Enéias. [N. T.]
  2. O Vaso — São Paulo que nos Atos dos Apóstolos é chamado o Vaso de eleição. [N. T.]
  3. Senhora da virtude, Beatriz simboliza a teologia. [N. T.]
  4. Nobre Dama, Maria, mãe de Jesus, símbolo da misericórdia divina. [N. T.]
  5. Luzia, mártir e santa, símbolo da graça iluminante. [N. T.]
  6. Raquel, filha de Labão e mulher do patriarca Jacó, simboliza a vida contemplativa. [N. T.]