A GONSALVES DIAS


Ninguem virá, com titubiantes passos,
E os olhos lacrimosos, procurando
O meu jazigo...
Gonsalvez Dias.Ult. cant.


Ta vive e gosa a luz serena e pura.
J. Bazilio da Gama.Urug. c. v.


Assim vagou por alongados climas,
E do naufragio os humidos vestidos
Ao calor enxugou de extranhos lares
O luzitano vate. Acerbas penas

Curtiu naquellas regiões; e o Ganges,
Se o viu chorar, não viu pousar calada,
Como a harpa dos exules prophetas,
A heroica tuba. Elie a embocou, vencendo
Co′ a lembrança do ninho seu paterno,
Longas saudades e miserias tantas.
Que monta o padecer? Um so momento
As maguas lhe pagou da vida; a patria
Reviu, apoz a suspirar por ella;
          E a velha terra sua
O despojo mortal cobriu piedosa
E de sobejo o compensou de ingratos.



Mas tu, cantor da America, roubado
Tão cedo ao nosso orgulho, não te coube
Na terra em que primeiro houveste o lume
Do nosso sol, achar o último leito!
Não te coube dormir no chão amado,
Onde a luz frouxa da serena lua,
Por noite silenciosa, entre a folhagem
Coasse os raios humidos e frios,
Com que ella chora os mortos... derradeiras

Lagrymas certas que tera na campa
O infeliz que não deixa sôbre a terra
Um coração ao menos que o prantêe.



Vinha contudo o pallido poeta
Os desmaiados olhos estendendo
Pela azul extensão das grandes aguas,
A pesquizar ao longe o esquivo fumo
Dos patrios tectos. Na abatida fronte
Ave de morte as azas lhe roçara;
A vida não cobrou nos ares novos,
A vida, que em vigilias e trabalhos,
Em prol dos seus, gastou por longos annos,
Co′ essa larguesa de ânimo fadado
A entornar generoso a vital seiva.
Mas, que importava a morte, se era doce
Morrel-a á sombra deliciosa e amiga
Dos coqueiros da terra, ouvindo acaso
No murmurar dos rios,
Ou nos suspiros do nocturno vento,
Um echo melancholico dos cantos
Que elle outr′ora entoara? Traz do exilio
Um livro, monumento derradeiro

Que â patria levantou; alli revive
Toda a memoria do valente povo
Dos seus Tymbiras...



               Subito, nas ondas
Bate os pes, espumante e desabrido,
O corsel da tormenta; o horror da morte
Enfia o rosto aos nautas... Quem por elle,
Um momento hesitou quando na fragil
Tábua confiou a unica esperança
Da existencia? Mysterio obscuro é esse
Que o mar não revellou. Ali, sosinho,
Travou naquella solidão das aguas
O duello tremendo, em que a alma e corpo
As suas fôrças últimas despendem
Pela vida da terra e pela vida
Da eternidade. Quanta imagem torva,
Pelo turbado espirito batendo
As fuscas azas, lhe tornou mais triste
Aquelle instante funebre! Suave
É o arranco final, quando o ja frouxo
Olhar contempla as lagrymas do affecto,
E a cabeça repousa em seio amigo.

Nem affectos nem prantos; mas somente
A noite, o medo, a solidão e a morte.
A alma que alli morava, ingênua e meiga,
Naquelle corpo exiguo, abandonou-o,
Sem ouvir os soluços da tristeza,
Nem o grave salmear que fecha aos mortos
O frio chão. Ella o deixou, bem como
Hóspede mal acceito e mal dormido,
Que prosegue a jornada, sem que leve
O ósculo da partida, sem que deixe
No rosto dos que ficam, — rara embora, —
Uma sombra de pallida saudade.



Oh! sôbre a terra em que pousaste um dia,
Alma filha de Deus, ficou teu rasto
Como de estrêlla que perpétua fulge!
Não viste as nossas lagrymas; comtudo
O coração da patria as ha vertido.
Tua gloria as seccou, bem como orvalho
Que a noite amiga derramou nas flores
E o raio enxuga -da nascente aurora.
Na mansão a que foste, em que ora vives,
Has de escutar um echo do concerto

Das vozes nossas. Ouvirás, entre ellas,
Talvez, em labios de indiana virgem!
Ésta saudosa e suspirada nenia:



«Morto, ó morto o cantor dos meus guerreiro
Virgens da matta, suspirae commigo!

«A grande agua o levou como invejosa.
Nenhum pe trilhará seu derradeiro
Funebre leito; elle repousa eterno
Em sitio onde nem olhos de valentes,
Nem mãos de virgens poderão tocar-lhes
Os frios restos. Sabiá, da praia
De longe o chamará saudoso e meigo,
Sem que elle venha repetir-lhe o canto.
Morto, e morto o cantor dos meus guerreiros!
Virgens da matta, suspirae commigo!



Elle houvera do Ybake o dom supremo
De modular nas vozes a ternura,
A cholera, o valor, tristeza e magua,
E repetir aos namorados echos

Quanto vive e reluz no pensamento.
Sôbre a margem das aguas escondidas,
Virgem nenhuma suspirou mais terna,
Nem mais válida a voz ergueu na taba,
Suas nobres acções cantando aos ventos,
O guerreiro tamoyo. Doce e forte,
Brotava-lhe do peito a alma divina.
Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros
Virgens da matta, suspirae commigo!



«Coema, a doce amada de Itajuba,
Coema não morreu; a folha agreste
Póde em ramas ornar-lhe a sepultura,
E triste o vento suspirar-lhe em torno;
Ella perdura a virgem dos Tymbiras,
Ella vive entre nós. A rosa e linda,
Sua nobre figura adorna as festas
E enflora os sonhos dos valentes. Elle,
O famoso cantor quebrou da morte
O eterno jugo; e a filha da floresta
Hade a historia guardar das velhas tabas
Inda depois das últimas ruinas.

Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros
Virgens da matta, suspirae commigo!



«O piaga, que foge a extranhos olhos,
E vive e morre na floresta escura,
Repita o nome do cantor; nas aguas
Que o rio leva ao mar, mande-lhe ao menos
Uma sentida lagryma, arrancada
Do coração que elle tocára outr′ora,
Quando o ouviu palpitar sereno e puro,
E na voz celebrou de eternos carmes.
Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!
Virgens da matta, suspirae commigo!»



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