Recebi hoje uma carta do Reis, a quem não tornarei a chamar meu amigo; pois não me é possível ser amigo de homem algum.
Eu não tinha voltado à casa do Reis nem para cumprir o dever de cortesia, indo render-lhe agradecimentos, e também ao armênio pelo favor da luneta mágica.
Não voltei e não volto lá: detesto o armênio e desconfio do Reis; o melhor sinal de imerecida gratidão que a ambos posso e devo dar, é esquecê-los, é não ir lá fitar por mais de três minutos sobre eles a luneta que me deram: o armênio é concentrado e rude; o Reis é expansivo e obsequiador; quem sabe o que a minha luneta me mostraria no intimo de qualquer deles?...
Devem ficar-me muito agradecidos por não ir vê-los: detesto o armênio, desconfio do Reis; não quero relações com eles.
Mas a carta do Reis deu-me que pensar; ei-la aqui ipsis verbis.
"Rio de Janeiro, 1.° de abril de 1868: Ilmo. Sr.: Não mereci a graça de uma visita de V. S a depois da noite da operação cabalística do armênio, e apenas desde anteontem comecei a ter singulares noticias da sua luneta mágica; mas de modo que sou obrigado a pedir a V. S B o favor de explicações que me são indispensáveis.
"Há dois dias que o meu armazém é procurado por numerosos fregueses e desconhecidos que se empenham por obter esclarecimentos relativos à luneta mágica. Muitos zombam do caso, atribuem maravilhas inconvenientes que se contam à exaltação perigosa da imaginação de V. S.ª; exigem porém informações sobre o armênio e sobre a operação cabalística, de que têm notícia não sei por quem.
"Outros, e infelizmente não são poucos, pretendem que com a luneta mágica tem V. S.ª a faculdade de ver os corações e as consciências de quantos observa por mais de três minutos, descortinando assim segredos, vícios que se escondem, erros que se ocultam e más qualidades que se dissimulam, protestando todos contra o perigo social que pode resultar de tão fatal e assombroso poder de encantamento.
"Alguns enfim incômodos e teimosos querem por força que eu lhes venda lunetas iguais à sua, e perseguem-me com instâncias que me perturbam o sossego.
"O maldito armênio diz que está pronto a encantar lunetas, sem dúvida com intenção maléfica; eu porem não consinto que ele apareça no armazém.
"V. S.ª compreende que tenho urgente necessidade de saber tudo quanto há e se tem passado em relação à sua luneta mágica.
"Devo aos meus fregueses e ao público em geral explicações sem reservas, transparência sem a mais leve sombra em tudo quanto se prepara e se faz, se imita, se aperfeiçoa, se inventa e se realiza nas minhas oficinas, e de quanto se vende no meu armazém ou dele sai, no cumprimento deste dever há para mim escrúpulo e honra; peço pois a V. S a que me habilite para dar esclarecimentos e informações às pessoas que incessantemente me estão procurando, e inquirindo sobre esse importante assunto Sou etc. Reis."