XIV


Eu não sei se está historia terá leitor tão mal aventurado, que não possua recordações e saudades associadas á noite de Natal, áquella festiva e abençoada noite, em que as rúas e os logares publicos se despovoam, e nos lares domesticos parece crepitar e scintillar o fogo maïs acalentador do que nunca. Se algum desherdado da fortuna ha ahi que não saiba o que é a festa das consoadas em familia, esse que não leia este capítulo, que n’elle não encontrará prazer. Se alguns as gosaram já n’outros tempos, porém hoje erram a essas horas pelas rúas solitarias, olhando com inveja para cada raio de luz que rompe das frestas de tantas janellas discretamente fechadas, ouvindo commovidos o ruido das alegrías que vão no seio das familias, e pela phantasia creando em cada morada um mundo intimo de affectos e de venturas, como o de que a sorte os privou, que esses me perdoem as amargas saudades, que por ventura lhes avive assim.

É certo que não ha noite mais alegre; alegre d’esta alegria que vae direita ao coração, sem perturbar os sentidos com fumos de embriaguez; alegre d’esta alegria candida a que o homem é sujeito do berço á velhice, a qual respeitam os estos das paixões, na idade d’ellas, e o gêlo do egoismo, no declinar da vida.

Bem escura, bem ventosa, bem fria e humida surjas tu sempre, noite de vinte e quatro de dezembro, que melhor então se avaliará pelo contraste a luz, o calor, o conchêgo dos lares, e mais intimos se estreitarão os circulos da familia em roda da ceia patriarchal.

E vós todos, a quem uma moda tôla não constrangeu ainda a abandonar os habitos que de pequenos contrahistes, e festejaes ainda o Natal de Christo, segundo o estylo velho, continuae a manter genuinos esses costumes nacionaes, que não resultará d’ahi desdouro para o vosso nome ou brazão. A roda da civilisação, a que applicaes hombros com tanto denodo, não se cravará por isso. — Podeis, elegantes meninas, cantar lôas sem escrupulo deante do presepe armado na sala mais intima da casa, que nem por isso cantareis peor na das visitas as arias italianas, que aprendestes no collegio; não córeis de collaborar, por excepção, esta noite nos mesteres da cozinha, que sobra de agua de colonia e perfumes tendes no toucador para as abluções purificatorias. Homens graves, a republica perdoar-vos-ha uma pequena infidelidade, a politica do paiz e da Europa não periclitará desnorteada se, por um pouco, lhe negardes a vossa attenção; humanisae-vos pois uma vez por anno, e baixae ao seio da familia os olhares, que ponderosos empenhos vos trazem sublimados. — Entrae com as creanças em jogos pueris e faceis, que não destemperareis a intelligencia para as philosophicas cogitações do boston e do whist.

A familia do Mosteiro era fiel ás classicas usanças d’esta noite tradicional. E n’aquelle anno sobretudo as festas das consoadas deviam ser coisa falada, graças ao plano de D. Victoria de reunir no Mosteiro a resumida familia de Alvapenha; plano que vimos approvado por acclamação por toda a assembleia presente.

D. Dorothéa veio effectivamente na companhia de Henrique de Souzellas e de Maria de Jesus.

Foram recebidos no Mosteiro por uma completa ovação das creanças.

D. Dorothéa viu-se litteralmente enlaçada em braços infantis, que lhe tolhiam os movimentos e que, dizia ella, quasi ameaçavam asphyxial-a.

Tudo isto dava motivo a exclamações e risos, que inauguraram um estado de coisas, o qual nunca mais devia cessar aquella noite.

A balburdia, a azafama festiva que ia no Mosteiro é indescriptivel. Na cozinha, nas salas, nos corredores tudo era movimento e ruido.

Aqui eram as creanças jogando, a pinhões, o «par ou pernão» e o «rapa», jogos popularissimos e de occasião, que, de tão conhecidos, dispensam o trabalho de descrevel-os. Estes jogos, como é de prever, não se executavam sem um concurso de vozearia e de algazarra, que desafiava a impaciencia de D. Victoria, a qual, segundo o costume, ia, pelo que se passava na sala, ralhar com os criados á cozinha.

No aposento immediato ao quarto de D. Victoria, armára-se o presepe, deante do qual ardiam seis vélas de cêra em castiçaes de prata maciça.

As duas velhas senhoras, D. Dorothéa e D. Victoria, encetaram logo no principio da noite uma longa e devota reza, meio recitada, meio cantada, a qual se continuava com uma interminavel enfiada de Padre-Nossos e Avé-Marias, a que respondia, em côro, a parte feminina, da familia, as creanças e as criadas.

Corypheu era a senhora de Alvapenha, que em voz trémula e quebrada pela idade, entoava em singela cantilena coplas como esta:

Ó infante suavissimo,
Vinde, vinde já ao mundo
Livrar-nos do captiveiro
D’este jazigo profundo.

E seguia-se um Padre-Nosso e uma Avé-Maria.

Angelo havia ao principio, com as suas travessuras, desordenado um pouco o andamento regular das rezas, mas D. Victoria tomou o heroico expediente de o expulsar do congresso, e tudo serenou.

Á sala, onde Henrique de Souzellas conversava com o conselheiro em assumptos, todos d’esta vez longe da politica, chegaram as surdas harmonias d’aquellas cantigas e rezas. Henrique mostrou curiosidade de saber o que era aquillo. O conselheiro, sorrindo, convidou-o a seguil-o para por si proprio se poder informar.

E, tomando por aposentos interiores, conseguiram ambos introducção na sala da novena justamente ao lado de D. Victoria e de D. Dorothéa, que, de embebidas que estavam nas suas orações, nem por elles deram.

O conselheiro e Henrique ajoelharam sisudamente ao lado d’aquellas boas senhoras, e quando após um dos Padre-Nossos, ditos por D. Dorothéa, se devia seguir a resposta do côro feminino, este emmudecido, com a chegada dos dois, a qual desafiára risos a custo suffocados, foi substituido por um dueto de vozes masculinas, que sobresaltaram primeiro, e escandalisaram depois ambas as sisudas senhoras.

O tumulto que o episodio produziu fez attrahir as creanças; D. Victoria teve muito que fazer, muito que reprehender o cunhado, muito que ralhar com os filhos e com o sobrinho, muito que carpir-se com D. Dorothéa, muito que recriminar os criados, rindo-se, bem a seu pesar, no meio de todas estas tarefas.

Terminou confusamente a novena com tal occorrencia. Os desordeiros sómente capitularam, consentindo em retirar-se, quando lhes prometteram que se encurtaria a lista dos Padre-Nossos. Henrique voltou com o conselheiro a admirar o primor que a paciencia de um artista imaginoso realisára na confecção do presepe, onde estavam representados todos os episodios da natividade de Jesus, e muitos outros.

Era effectivamente uma complicada machina aquelle presepe, e seria prova de profunda indifferença artistica passar por elle sem um exame, embora fugaz.

Este traste antiquissimo na familia gosava de nomeada n’um circulo de leguas em redor. Havia empenhos para o vêr no tempo do Natal, e se algum viajante estacionava dois dias na aldeia, encontrava sempre quem lhe recommendasse o visitar o presepe, como coisa digna de vêr-se.

Consistia elle n’uma espécie de santuario de pau preto, no meio do qual havia uma pequena gruta toda cravejada de caramujos, e rosas de papel, com estames de fio de prata. Dentro d’essa gruta estava deitado o menino Deus, não sobre umas palhas, como a tradição refere, mas graças aos impulsos do compadecido coração de D. Victoria, que, ainda que tarde, parecia tentear um lenitivo aos antigos rigores da humanidade, em uma bonita cama de lençoes de renda com cercadura dourada; colcha de setim bordado, e colchão e travesseiro da mais macia penugem de aves americanas. Ao lado, Nossa Senhora e S. José, de proporções quasi iguaes ás do menino; mais longe a vacca e a mula tradicionaes. Os episodios porém eram inquestionavelmente o mais interessante da obra. Varios grupos de pastores, soldados e fidalgos de todos os tamanhos, feitios e vestuarios, ornavam a scena. Alli um cego tocador de sanfona; um grupo de gallegos dançando, ao som da gaita de folle; uma pastora com ovos mais adeante; ao lado, um grupo celebrando um pic-nic, perfeita actualidade, tudo em mangas de camisa, com gravata, e botas de cano; — outros fumando e bebendo cerveja. Uma amazona ingleza, com o seu Jockey, galopava pelas cercanias de Bethlem; um vareiro e uma vareira caminhavam a par com offertas para o menino. Ao longe, nos visos da serra, appareciam os tres Reis Magos, que deviam levar dez dias a chegar abaixo.

Não esqueceu ao inspirado auctor d’aquelle monumento esculptural os muros de Jerusalem. Elles lá estavam coroados de ameias e de milicianos fardados á ingleza e armados de lanças e arcabuz. Eram gigantes aquelles guerreiros, pois, não obstante estar a muralha no plano do fundo do quadro, qualquer d’elles era duas vezes maior do que as figuras do plano da frente. No alto da muralha arvorava-se a bandeira portugueza. Havia varios santos espalhados pelas agruras d’aquellas montanhas, e, entre os additamentos feitos pela devoção de D. Victoria ao presepe, contava-se o de um Santo Antonio de Lisboa, que, apesar de thaumaturgo, parecia muito admirado de se vêr n’aquelle tempo e logar. Um gallo colossal soltava do telhado do presepe o grito annunciador, anjos e cherubins espreitavam do céo por entre nuvens de algodão e estrellas de ouropel. Era um prodigio!

Descrevendo rapidamente esta maravilhosa fabrica, sentia eu vivo orgulho de ter revelado ao mundo uma preciosidade sem igual, e a que a unanime admiração faria cêdo ou tarde justiça; tive porém de abandonar esta lisonjeira idéa, ao achar-me precedido por um dos romancistas mais justificadamente populares da nação vizinha. Das paginas de um delicioso quadro de costumes de Fernan Caballero, a eminente escriptora de que a Andaluzia se ufana, conheci eu serem não sómente nacionaes, mas peninsulares pelo menos, estes modelos de presepes, com os seus ingenuos anachronismos, cunho irrecusavel que o povo imprime a todas as suas obras de arte. Onde falta o anachronismo, falta a assignatura do povo.

Em todo o caso era digno da menção que d’elle fizemos o presepe do Mosteiro.

Emquanto Henrique e o conselheiro o estudavam por miudo, D. Victoria fizera desfilar o cortejo das criadas para a cozinha, onde urgia o serviço, e seguindo-as ia-lhes demonstrando que eram as peores criadas do mundo, por isso que, tendo tanto que fazer, perdiam tempo a cantar lôas deante do presepe. D. Dorothéa cêdo tomou com Magdalena e Christina o mesmo caminho.

O conselheiro e Henrique ficaram nas salas com os pequenos, e com elles entraram em jogos, como se fôssem creanças tambem.

O aspirante a ministro, o deputado, o orador, o homem grave e sério das salas de Lisboa perdera todo o ar diplomatico: agora era sómente o homem da familia; pueril, travesso, alegre, folgazão.

— Meu caro, — dissera elle a Henrique no principio da noite — vou fazer-lhe um pedido. Hoje deve ser banido o menor assumpto politico, a menor discussão séria. Deixe-se correr frivola a conversa da noite, o contrario seria uma profanação, que attrahiria sobre nossas cabeças as justas iras dos anjos domesticos que n’estas noites andam invisiveis misturados com a familia.

— Apoiado, — respondeu Henrique; — acceito e comprometto-me a cumprir a proposta.

Henrique possuia em alto grau o talento de se tornar agradavel. Comprehendendo que eram sinceros os desejos do conselheiro, tão frio e pueril conseguiu mostrar-se, que todos o tratavam como membro da familia, e ao proprio conselheiro parecia já impossivel que ainda fôssem tão recentes as suas relações mais intimas com aquelle rapaz.

— Animo, sr. conselheiro, — dizia-lhe Henrique, no momento em que elles ambos estavam empenhados a jogar a cabra cega com os pequenos. — Coragem, que temos gloriosos exemplos a animar-nos; até, entre outros, o do meu homonymo Henrique IV. É sabido o episodio recordado por uma gravura celebre.

O conselheiro secundava-o, rindo: graças a estes jogos, a sala estava dentro em pouco em desordem; os moveis fóra da sua posição, o chão alastrado de cascas de pinhões, que estalavam sob os passos, os tapetes desviados, as cortinas soltas.

Já por noite avançada, disse o conselheiro para Henrique:

— Falta-nos ainda um artigo importante do ritual d’estas festas, o principal. É dirigir uma visita á cozinha. Porque a obra principal d’esta noite é fazer uma ceia e não comel-a. Por isso convido-o a acompanhar-me lá.

— Com tanto mais vontade, que estou ha muitos dias compromettido a isso com as senhoras.

— N’esse caso é tempo.

E ambos tomaram pelo corredor, que conduzia á cozinha.

Escusado parece dizer que turba infantil os seguiu tumultuariamente, annunciando-os ao longe com risadas e gritos de alegria.

A cozinha do Mosteiro era uma digna cozinha de frades. Occupava um vasto recinto rectangular, rasgado em amplas janellas e fornecido de bancas monumentaes, condizendo com a estupenda chaminé, que parecia ainda saudosa dos odoriferos vapores que outr’ora espalhavam os tachos e as grelhas monasticas.

Ia indizivel animação na cozinha, quando Henrique ahi entrou com o pae de Magdalena. Era um barafustar de criadas, um chiar de certãs, um borbulhar de caçarolas e tachos, um tinir de pratos, um tilintar de crystaes no meio de uma babel de ordens, de perguntas, de reclamações, de conselhos, todos attinentes a negocios culinarios. E D. Victoria ralhava, e a sr.a de Alvapenha promulgava preceitos, e Maria de Jesus desdenhava do serviço das collegas, e Magdalena e Christina riam de todos e de tudo, e Angelo a todos impacientava.

Não se imagina!

A chegada do conselheiro e do seu hospede veio exacerbar a desordem. Ergueram-se risos e exclamações, as quaes ainda assim eram subjugadas pelos reparos e censuras de D. Victoria, a qual dizia para o conselheiro:

— Sempre o mano tem coisas! Olhem agora para o que lhe havia de dar! Vão lá para dentro, vão. Não venham atrapalhar-nos mais ainda do que estamos. E o primo Henrique tambem! Ora esta!...

— Não se afflija, mana. Nós não podiamos resignar-nos a ficar alheios á tarefa principal do dia. E até porque é necessario dar andamento a isto para chegarmos a tempo da missa do gallo.

— Pois querem ir á missa do gallo?

— Está de vêr que sim.

— Eu tambem vou — disse Christina.

— E eu — acudiu Magdalena.

— Mais um, que irá tambem — disse Henrique.

— E eu, e eu — accrescentaram differentes vozes.

— Ai, minhas encommendas! — suspirou D. Victoria. — Então por que não disseram isso logo? Agora como ha de ser?

E saiu em direcção á sala da ceia a dispôr as coisas.

É preciso que se diga que D. Victoria vivia na candida illusão de que era ella quem fazia tudo em casa, emquanto que manda a verdade declarar que nunca mais regularmente corriam as coisas domesticas do que quanto dormia esta aliás excellente senhora.

— Mãos á obra, sr. Henrique! — bradou o conselheiro, insistindo na resolução com que viera.

— Prompto — respondeu Henrique.

— Então? então?... Que vão fazer? — perguntava D. Victoria, afflicta, voltando á cozinha.

— Querem vêr que preparos?! — dizia D. Dorothéa, sorrindo e olhando com curiosidade para o que faziam os dois.

— Cumpro uma promessa que fiz a estas senhoras, minha tia — dizia Henrique, approximando-se da banca, perto da qual trabalhavam Magdalena e Christina.

— É verdade que sim, — acudiu Magdalena — e eu exijo o cumprimento da promessa.

— Vamos lá, sr. Henrique, — tornou o conselheiro — acceite-me alguns preceitos da pratica. A regra é fazer tudo o mais indigesto possivel; porque essa qualidade é o caracteristico dos manjares d’esta noite.

— N’esse caso, vejo que nasci para cozinhar a ceia do Natal, pois desafio o melhor estomago do mundo a que subjugue os meus guisados com os seus succos digestivos.

— Eu já escolhi tarefa — disse o conselheiro, tirando das mãos de Christina a colhér com que ella mexia o vaso onde se preparava o vinho quente, esse punch nacional, que n’esta noite seria uma falta imperdoavel se esquecesse no programma d’aquelle banquete.

Christina quiz resistir; mas o conselheiro venceu, e cêdo principiou a desempenhar-se d’este trabalho, no meio de hilaridade geral.

Angelo dispensou a tia Dorothéa do trabalho da preparação dos mexidos.

Henrique, seguindo o exemplo do conselheiro, e no seguimento do seu constante proposito, approximou-se da morgadinha, que n’aquelle momento se occupava a regar de calda de mel umas recentes rabanadas.

— Peço trabalho, prima Magdalena.

— Não ha falta de braços n’esta repartição, primo Henrique. Vá a outra porta.

— Agrada-me mais esta tarefa, acho-a ao alcance das minhas fôrças.

— Esta? Como se engana! Não sabe que as rabanadas são a essencia da ceia de Natal? E logo havia de confiar-lh’as?

— Ah! não ligava tanta importancia a estas representantes da pastelaria primitiva, notaveis porque recordam a infancia da arte! Emquanto a mim, já no tempo da peregrinação dos hebreus, Moysés lhes ensinava a cozinhar d’isto.

Magdalena abanou a cabeça em signal de reprehensão.

— Perdôe ás pobres rabanadas o pouco ar de moda que teem. A sua elegancia é implacavel, primo Henrique. Um indigesto manjar francez seria de melhor tom, bem sei. Até n’isso!

— Para provar que estou arrependido da minha irreverencia, consinta-me que a coadjuve, prima.

— Não pode ser; pesa sobre mim uma tremenda responsabilidade.

— Isso equivale a recusar-me o fôro de familia, que tão humildemente reclamo.

— Justamente — respondeu Magdalena. — Eu sou muito escrupulosa n’isso. Faz mal em não reclamar esse fôro de Christina, que talvez encontrasse mais disposta a conceder-lh’o.

— Mas, se me não engano, foi a prima Magdalena que primeiro me conferiu o apreciavel titulo de parentesco com que nos tratamos.

— O de primos? Esse sim; mas não tem os privilegios, que lhe quer dar.

— Que privilegios são?

— Ah!... o de collaborar n’uma ceia de consoadas, por exemplo.

— Parece-lhe, priminha, que será muito exigir o que eu peço? — perguntou Henrique a Christina, que principiára a escutal-os.

— Não ouvi — respondeu esta, córando e sorrindo, como sempre que lhe falava Henrique.

— Escusado é consultar Christina — acudiu a morgadinha — porque em muitas coisas pensa ella em opposição commigo. E n’isto...

— E n’isto...

— N’isto de attender a requerimentos, é talvez mais condescendente.

— Ao que estou vendo — disse o conselheiro jovialmente — grandes coisas se tinham passado aqui, antes da minha chegada. Vejo lavrar uma hostilidade entre Lena e o sr. de Souzellas, que me dá sérias inquietações.

— E eu julgo que não. Ao que ouvi ao Henriquinho, a primeira vez que viu a nossa Lena no Mosteiro!... — disse D. Dorothéa, com toda a indiscreção da sua ingenuidade.

Magdalena procurou acudir a tempo á corrente das revelações, a que viu disposta a boa senhora.

Veio opportunamente em seu auxilio Angelo, que tendo feito uma digressão pela sala do refeitorio, voltou com a alegre nova de que a ceia estava na mesa.

O annuncio foi recebido com apparente enthusiasmo. Suspenderam-se trabalhos, quasi completos, ultimaram-se á pressa outros, e a companhia dirigiu-se para o corredor.

Pouco depois de Angelo, chegou D. Victoria, desmentindo-o e pretendendo suster a corrente, que ameaçava invadir a sala, que ella ainda não dera por prompta. Já não era tempo. O conselheiro, tomando duas creanças ao collo, rompia a marcha, e atraz d’elle até a pacifica D. Dorothéa clamava insubordinada que não recuaria um passo.

E falando e rindo assim entraram na sala.

Estava offuscante de luzes, esplendida de louças e baixellas, enfeitada de flores e de crystaes e ennevoada dos vapores das iguarias.

Houve um grande rumor de cadeiras arrastadas, uma confusão e incoherencia de ordens de D. Victoria para marcar logares, infracções d’estas ordens, que a impacientavam, como se com isso pudésse perigar a ordem natural e social do mundo, e, como justa consequencia, caía sôbre a cabeça dos criados uma enfiada de recriminações, que elles por habito já soffriam com exemplar paciencia.

Restabelecida emfim a ordem, procedeu-se á ceia.

Ceia de Natal! abençoado banquete, ao qual todos se devem sentar nas mesmas disposições de animo em que ordenava Christo estivessem os que fôssem orar ao templo; ceia com tanto afan cozinhada, e com tão pouca vontade comida, falem embora contra ti os medicos e os gastronomos eméritos, condemnando uns a indigestibilidade dos teus cozinhados, outros o pouco delicado d’elles; reage contra as ideias novas, que veem da França e da Allemanha; cerra as fornalhas ás iguarias exoticas e furta-te ás mãos da extranha geração de Vateis, que aspiram a dominar pelos paladares o espirito nacional.

Modifiquem embora o caracter vernaculo de todas as outras refeições, mas respeitem esta, consagrada pelas memorias da familia, justificada pelo facto de que quasi não é feita para ser comida.

Assim succedia com a do Mosteiro. Apesar das instigações do conselheiro, das instancias de D. Victoria, das garantias de D. Dorothéa sobre a innocuidade dos guisados, os pratos corriam á roda da mesa quasi intactos e intactos voltavam á cozinha d’onde sairam.

Mas se se comia pouco — e de facto, á excepção de Henrique, do conselheiro e das creanças, quasi ninguem parecia haver-se sentado alli para ceiar — mas, diziamos nós, se se comia pouco, em compensação falava-se muito.

O conselheiro a todos dirigia a palavra, demonstrando uma iniciativa efficaz para baralhar e generalisar as conversas e assim conservar constante a animação. Tudo desafiava risos, o dito de uma creança, a anecdota contada por Henrique, as distracções de D. Victoria, as canduras de D. Dorothéa, os paradoxos sustentados pelo conselheiro, as allusões da morgadinha a Christina, a confusão d’esta, as maliciosas insinuações de Angelo.

Assim procedeu o repasto nocturno até á altura das saudações e dos toasts. N’esta parte, justo é confessar que Henrique e o conselheiro fôram menos abstinentes. Era difficil resistir á preciosidade dos vinhos.

Passados os reciprocos brindes entre os parentes, o conselheiro, voltando-se para Angelo, auctorisou-o a propôr tambem um brinde.

Angelo levantou-se então para brindar Augusto.

O conselheiro secundou-o, levando o copo aos labios.

— Ah! o sr. Augusto — disse Henrique, antes de beber e com certo tom de ironia. — Conheço; é uma ave rara d’estas immediações, que tem brios de cavalleiro errante sob umas apparencias de philosopho.

— Brios de cavalleiro? — disse Angelo, com vivacidade. — Inda isso não é tudo, sr. Henrique; pode accrescentar, e alma de heroe tambem.

— Pois dê-se-lhe tambem alma de heroe, e se fôr preciso até consciencia de santo. Vá á saude da phenix!

E bebeu.

Depois de pousar o copo, proseguiu com o mesmo tom anterior:

— O que vejo é que é perigoso falar com a mais ligeira irreverencia d’esta personagem; corre-se o risco de vêr voltar contra o impio, que tanto ousa, os poderes conspirados do céo e da terra. Bem; prometto acatar essa preciosidade.

— E creia — disse-lhe o conselheiro — que lhe é merecedor de toda a consideração. Augusto é um d’estes caracteres excepcionaes que vivem á sombra de uma modestia impenetravel e á sombra d’ella muitas vezes morrem. É necessario ter a vista muita exercitada n’estas explorações de almas modestas, para descobrir uma assim.

— Felizmente para os myopes como eu — proseguiu Henrique — ellas fazem ás vezes a fineza de se despojarem da sua timidez e de se mostrarem á luz. Não é verdade, prima Magdalena?

— Que admira; — respondeu Magdalena — bem occulto está o fogo na pederneira, primo Henrique, mas, percutindo-a, salta a faisca.

— Pobre rapaz; — notou a sr.a de Alvapenha — aquillo nem parece d’este tempo. O que eu não sei, primo Manuel, é porque elle se não resolveu a tomar ordens. Recusar o legado da D. Rosa!

— Não seja isso a dúvida. Elle sabe que, adoptando essa ou outra qualquer carreira, não lhe faltarão recursos para seguil-a até o fim. Devo-lhe esse auxilio, assim elle o acceitasse; mas tem um genio singular aquelle rapaz!

— É uma phenix — insistiu Henrique, ironicamente. — Vejo que não é susceptivel de discussão, impõe-se á gente como um axioma. Eu tenho habitos de livre pensador, mas... forçar-me-hei a incluir no meu credo esse dogma.

— Perdão — replicou Angelo. — Um axioma não se demonstra, e a boa alma de Augusto está todos os dias a demonstrar-se por acções generosas.

— Por favor!! Dêem como não ditas as minhas palavras! Arrependo-me da minha irreverencia, e se elle aqui estivesse, principiaria a penitenciar-me na sua presença.

— E é certo que nos falta aqui Augusto. Como te não lembraste d’elle, Angelo?

— Não viria. N’esta noite não deixaria o tio Vicente.

— Ah, sim. Esquecia-me d’aquelle pobre Vicente.

— É do herbanario que falam? — perguntou Henrique.

— Justamente.

— Outra phenix; e quer-me parecer que tambem pertence ao numero dos inviolaveis; não é verdade, prima?

— Pertence ao numero dos infelizes, primo, o que é justo considerar-se uma especie de inviolabilidade.

A resposta collocou Henrique em mau terreno, e por isso apressou-se a desviar do ponto principal da questão, dizendo:

— Infeliz? Por que lhe chama infeliz? Os visionarios como elle teem em si os elementos da propria felicidade, e ninguem possue poder de perturbar-lh’a. Além de que o herbanario gosa aqui na terra de uma certa soberania, que deve lisonjeal-o.

— E olha que nem em Lisboa ha talvez quem saiba tanto como elle em coisas de doenças e de remedios, menino, — disse D. Dorothéa, que era uma das fervorosas apologistas da sciencia do herbanario.

— É na verdade um homem singular! — disse o conselheiro. — D’antes, na noite de Natal, e em todas as solemnidades de familia, tinhamol-o tambem por commensal, que ainda é parente arredado da casa. Ha annos porém deu em tomar a peito o meu procedimento politico e em prégar-me sermões e dirigir-me censuras, que eu fazia por escutar com a possivel resignação. Mas um dia foi mais amargo nas suas recriminações e eu achava-me com maior susceptibilidade; julgo que lhe respondi com bastante acrimonia, e o homem saiu de minha casa offendido e protestando não voltar mais a ella. Procurei-o, escrevi-lhe, tentei demovel-o do seu proposito. Não houve de quê. Havia-o ferido no seu orgulho, e é intolerante n’estas condições.

— Sei-o já por experiencia; — disse Henrique — que n’uma unica entrevista que tive com elle, e que durou minutos, deu-me occasião de lhe conhecer a irritabilidade.

— Vamos, primo Henrique; talvez possa haver quem supponha que n’essa entrevista não demonstrou o primo peor do que elle possuir as qualidades de que o accusa.

— Agora — continuou o conselheiro — vão consideravelmente exacerbar-se os despeites do herbanario contra mim.

— Porquê? — perguntou Magdalena.

— Porquê?... por causa do traçado que se adoptou para a estrada.

— Então? — disseram simultaneamente Angelo e Magdalena.

— A casa e o quintal do herbanario são os primeiros cortados.

— Não pode ser! — exclamou Magdalena, com evidente expressão de susto.

Angelo dirigiu ao pae um olhar tambem inquieto.

Christina não exprimiu menos apprehensiva tristeza.

— É inevitavel. Os dois primeiros traçados tinham certas durezas. O primeiro era uma luva lançada a uma influencia eleitoral, poderosissima; o brazileiro Seabra.

— Ah! — disse Magdalena, com certa amargura na expressão e no olhar.

O conselheiro reparou n’ella e em Angelo, em cuja physionomia se não lia menos intenso desgosto.

— Estou adivinhando que meus filhos votariam por que antes se arrostasse com os despeites d’esse influente. A logica do sentimentalismo tem d’essas exigencias absolutas.

Magdalena respondeu:

— Julguei que era a da consciencia, meu pae.

— A consciencia diz-me que ha interesses superiores ás contemplações com as singularidades de um velho honrado, mas... meio tonto. Na carreira politica ceder ao coração é morrer ou ser vencido. O sentimentalismo exaggerado, Lena, tem o inconveniente de dar tanto vulto ás vezes a um sacrificio individual, que, para o evitar, não duvida prejudicar maiores e mais geraes interesses e operar sacrificios mais custosos. É muito tocante na verdade o amor de um velho pelas suas arvores e pela sua casa; porém, mais respeitavel é o bem-estar e a conveniencia de uma localidade.

— E é tão necessario para a felicidade d’esta terra o sacrificio a que se quer obrigar o herbanario? — perguntou Angelo, e Magdalena secundou com o olhar a pergunta do irmão.

— Eu te digo, Angelo — respondeu o conselheiro, levemente despeitado. — Eu tinha a vaidade de me suppôr ainda prestavel para esta gente, que me tem elegido tantas vezes. Dos nossos patricios, deixem-me dizel-o aqui em familia, não vejo ainda quem dê garantias de desempenhar o mandato, muito melhor do que eu. Chamasse eu contra mim a animadversão d’este povo, e elles, á falta de outros, acceitariam ámanhã qualquer nome inscripto na carteira do ministro; um homem que nunca tivessem visto, e que nem soubesse em que ponto da carta estava o circulo de que se propunha ser representante. Mas perdôa-me, Lena, talvez isto te esteja parecendo um censuravel excesso de vaidade.

— Não, meu pae, ninguem acredita mais do que eu no muito valor da sua influencia, mas... Ó meu Deus!... isso vae ser a morte do pobre tio Vicente! Imagine bem o que é n’aquellas idades e com aquelle genio, a grandeza do sacrificio que vão exigir d’elle?

— Custa-me ser obrigado a isso; porém...

— Valia mais esperar algum tempo. A vida d’elle não pode ser muito longa. Deixem-o morrer em paz, á sombra d’aquellas arvores a que elle quer tanto. Que importa passar mais alguns annos sem uma estrada?

— Poesia! — disse o conselheiro, sorrindo para Henrique, que lhe correspondeu.

— Perdão! — acudiu Magdalena, córando — é caridade.

— Ora vamos, Lena. Sê razoavel. Todos soffrem no mundo sacrificios maiores do que esse; eu mesmo, que me não tenho ainda assim por victima da sorte...

— E não haveria outro meio? — perguntou Angelo. — Acaso ha só esses dois logares para dirigir a estrada?

— Que antes nunca se fizesse! — exclamou Magdalena, apaixonadamente.

— Ahi temos como o sentimento me torna retrograda a minha Lena. Já clama contra as estradas como qualquer reaccionario convicto. Havia um outro traçado, mas esse ia destruir completamente os campos do Brejo.

— Ah! então esse, esse! São bens nossos! — exclamou Magdalena com vivacidade.

— São bens de Angelo, filha, e por ventura aquelles que um dia mais valiosos se tornarão para teu irmão.

— Os charcos? — disse Angelo, encolhendo os hombros — ora! Só para viveiro de rãs.

— Hoje pouco mais são do que isso, e como tal nol-os pagariam agora. Dentro, porém, de alguns annos, operados alli os trabalhos de esgoto, que eu projecto, verão em que se transforma aquillo. É exigir a um homem muita abnegação pretender d’elle que sacrifique assim os elementos da riqueza futura de seus filhos; quanto mais que as vantagens não seriam taes que...

— Não pediriamos esmola, meu pae — notou timidamente Angelo.

— Nem o Vicente a pedirá. Visto que estaes tão desprendidos de interesse, que não hesitaes em fazer-lhe sacrificio dos vossos bens, podeis ceder-lhe o sufficiente para o compensar da perda.

— Mas quem o compensará dos golpes nos seus affectos? — perguntou Magdalena.

— Tambem tu! São segredos do coração feminino essas compensações. Deixo-as á tua disposição.

— Meu pae! meu pae! se é ainda possivel atalhar-se!

— É impossivel.

— Meu tio! — secundou Christina.

— Mano! Primo! — disseram a um tempo as senhoras mais idosas.

— O que posso fazer é ir eu proprio falar com o Vicente, para o mover a consentir na expropriação amigavel, que farei que lhe seja o mais vantajosa possivel.

— E tem coração para lhe ir propôr isso?

— Dize antes se tenho coragem para arrostar com as iras do velho, e com as maldições que já sei vae sacudir sobre mim.

Lena calou-se, suspirando.

— Mas vejam a inevitavel fatalidade que me persegue! — continuou o conselheiro. — Eu, que tinha feito voto de não me entreter de negocios publicos esta noite! Ai, Lena, Lena, a culpada és tu!

— Eu?! Eu, que abomino a politica! que só ella podia fazer entrar uma crueldade no coração de meu pae!

— Ó tio, veja se faz com que a estrada vá por outro sitio! — implorou meigamente Christina.

— Tambem tu, Christe! tambem tu!

— Pudera, mano! Não, que uma coisa assim! Isso é até uma ingratidão para com um homem a quem esta aldeia tanto deve — disse D. Victoria.

— Pois não é! E logo um quintal onde cresciam tantas plantas de virtudes! — accrescentou D. Dorothéa.

— Vá vendo, sr. Henrique, como se conspiram todos contra mim. Veja como um sentimento insignificante organisa uma opposição.

— É uma lição que estou recebendo, sr. conselheiro.

— Meu pae, — insistiu Magdalena — eu espero ainda que, ouvindo o tio Vicente, se commoverá e trabalhará por alterar esse fatal plano que principia por arrancar arvores, mas que, pode estar certo, com ellas arrancará uma vida.

—­Romances! Lena, romances! Os romances, lidos em plena aldeia, são perigosos. Falta aquí nos ares um certo scepticismo que, não sendo em dóses exaggeradas, tem a vantagem de não deixar vêr as coisas da vida através do prisma dos livros de imaginação. Mas basta de falar em politica. Ámanhã procurarei o herbanario. Espero uma recepção de gêlo, e vou preparado para uma ladainha de recriminações, mas irei. Nada esperes, porém, da entrevista, Lena; nem o mal, se mal é, se poderia já atalhar; nem o orgulho de Vicente lhe permittiria expansões á sensibilidade, que cheguem a commover-me. Conheço-o.

Magdalena não instou. Ficou, porém, pensativa e sem o menor vestigio da alegría, com que principiara o serão.

N’isto ouviu-se um toque de sino longinquo.

—­Já toca para a missa do gallo! Ouvem?—­disse D. Victoria.

—­Vamos! Não ha tempo para demoras—­exclamou o conselheiro, levantando-se.

Todos o imitaram, menos Magdalena.

—­Não vens, Lena?—­perguntou Christina.

—­Não.

—­São amúos, filha!—­disse-lhe o conselheiro, indo por traz d’ella; e, tomando-lhe a cabeça entre as mãos, beijou-a na fronte.

—­Não, meu pae, é uma dôr de cabeça tão violenta!

—­A maldita politica é o que faz! Pois fica; fica, porque está fria a noite.

—­Far-te-hei companhia, Lena, disse Christina.

—­Não, não. Se insistes, obrigas-me a sair.

—­Aviem-se!—­dizia D. Dorothéa.—­Henriquinho, vens?

Henrique, cujo ardor em ouvir a missa da meia noite esfriou desde que viu Magdalena ficar, respondeu:

—­Ó tia... a falar verdade!... se me dispensassem!...

—­Vem d’ahi, preguiçoso! anda!

—­É que... para um homem doente...

—­Ai, não; se te ha de ás vezes fazer mal, então não—­apressou-se a dizer a precavida senhora.

E foi deferido por unanimidade o requerimento de Henrique, a quem cêdo depois Torquato foi ensinar. o caminho para o quarto onde devia pernoitar.

O conselheiro, D. Dorothéa, Christina e Angelo fôram para a missa do gallo.

D. Victoria, Magdalena e Henrique ficaram no Mosteiro.