XXX


Chegára o prazo e dia assignalado de se dar perante a urna a batalha eleitoral.

A azáfama politica activára-se n’estes ultimos dias consideravelmente. De parte a parte tinham-se posto em campo todos os influentes e em exercicio todas as armas. Promessas, alliciações, pressão de auctoridades, exigencias a dependentes, subornos, ameaças maïs où menos declaradas; de tudo se lançava mão.

Ás vezes até o calor das discussões degenerava em pugnas menos pacificas; os argumentos physicos, que figuram no catalogo das razões maïs convincentes, haviam já sido invocados a pleitear ambas as causas, berrando-se depois, de um lado contra a violencia e o despotismo do governo, do outro , contra os manejos sediciosos e anarchicos da opposição.

Em algumas freguezias que entravam n’este circulo eleitoral, eram os padres que arvorando a cruz e o estandarte, prégavam a cruzada contra o conselheiro e instavam com o povo para que não elegesse para representante um atheu e um pedreiro-livre; em outras eram os agentes do brazileiro e os da auctoridade, fazendo promessas aos caudilhos populares, resgatando penhores, levantando hypothecas, remindo dividas, empregando afilhados, e conquistando assim para o seu partido.

O conselheiro e os seus parciaes não desprezavam tambem nenhum d’estes mesmos meios, e grossas quantias circulavam a combater as do brazileiro Seabra.

Os periodicos do Porto e de Lisboa recebiam os echos d’esta batalha. Havia muito que em longas e diffusas correspondencias os gladiadores dos dois campos se mimoseavam com as maïs descabelladas verrinas, assignando-se: o Amigo da verdade; o Epaminondas; o Vígilante; a Sentinella; o Alerta, etc., e pondo ao soalheiro as máculas da vida privada uns dos outros, e todas as bisbilhotices da terra, correspondencias que, felizmente para crédito da humanidade, por ninguem maïs, além dos interessados e dos que já os conheciam, eram lidas.

O brazileiro era um dos maïs activos e fecundos collaboradores d’esta secção periodistica. Os seus communicados eram estirados, compactos, obscuros e enrevezados tanto où maïs do que os seus discursos. Perdia-se em minuciosos incidentes; em labyrinthos de orações secundarias, d’onde a grammatica da principal saía frequentemente maltratada, deixando ficar por lá o sujeito, o verbo où qualquer complemento necessario. Mas o brazileiro imaginava que o paiz inteiro aguardava com ancia os seus escriptos. Era fréquente abrir uma resposta a alguma zargunchada de um seu adversario, por estas palavras: «Os leitores hão de ter notado o meu silencio, depois das calumniosas asserções...» Os leitores não tinham notado nada.

Finalmente a aldeia achava-se em plena fermentação politica.

Eu tenho a fraqueza de a não amar debaixo d’aquelle aspecto.

A vida politica tem isso comsigo. Quanto maïs estreito e maïs apertado é o circulo social onde se manifesta, quanto maïs vizinhos e conhecidos são os que vivem d’ella, tanto maïs acanhada, mexeriqueira e antipathica se torna. Se a politica do nosso paiz é já pequena, como elle, e degenera em desavença de senhoras vizinhas, que fará das terras pequenas d’este paiz, em que muito acima dos principios e dos partidos estão os mexericos e as vaidadesinhas que brotam como tortulhos á sombra das arvores do campanario?!

Que desconsoladora distancia da realidade ao ideal da vida dos povos!

Henrique de Souzellas não ficára indifférente ao movimento politico da aldeia. Pegára-se-lhe a febre eleitoral. Impedido de votar, auxiliava, porém, os parciaes do conselheiro com os avisos da sua experiencia. Um dia lembrou um meeting. O conselheiro poz-se a rir.

—­Que utopia! Com que especie de eleitores imagina que está tratando? Um meeting, para quê? Não se esqueça de ir domingo á igreja e lá se desenganará por os seus olhos. O espectáculo não é muito para alegrar, porque mostra como em geral o nosso paiz está ainda pouco educado no regimen constitucional. Mas em todo o caso é instructivo.

Os manejos dos amigos do conselheiro e principalmente do infatigavel Tapadas, conseguiram ainda resultados importantes em relação ao tempo em que principiaram a operar com maïs energia. Algumas freguezias havia com que já se podia contar.

A eleição, porém, estava muito arriscada ainda. O sr. Joãozinho das Perdizes devia decidir a contenda. Para onde se inclinasse o morgado, com todo o peso dos seus comparochianos, desceria o prato da balança.

Contra elle assestou, pois, o conselheiro toda a artilharia; mas sem o menor resultado. O homem evitava subtilmente encontrar-se com elle, e aos seus emissarios respondia com insolencia. O Seabra pela sua parte nunca o largava, vigiava-o como um precioso thesouro, não se descuidava de o manter nas disposições hostis contra o conselheiro. A todo o momento fazia-lhe sentir o insulto que recebera na taberna, e a necessidade que tinha, para se desaffrontar, de infligir uma lição ao conselheiro, com quem Henrique estava ligado. Depois disse-lhe que o conselheiro se gabava de ter dinheiro para comprar o morgado e toda a freguezia.

O morgado, sob estas e analogas instigações, praguejava e jurava despejar na urna ministerial o suffragio da sua freguezia.

Assim, pois, todas as probabilidades eram a favor do candidato do governo, homem desconhecido d’este povo, o qual tambem era desconhecido para elle, um empregado de secretaria, que nunca saira de Lisboa e que era o primeiro a rir-se do campanario obscuro de que se propunha a ser representante; creatura dos ministros, que o desejavam eleger a todo o custo, por terem n’elle um voto complacente e um parlamentar de boa feição.

Logo pela manhã do domingo, marcado para a grande solemnidade civil, o adro da igreja parochial apresentava uma animação fóra do costume. Grupos formados aqui e alli conferenciavam, entreolhando-se com desconfiança, ou correspondendo-se por signaes de intelligencia, conforme pertenciam á mesma ou a opposta parcialidade. Os agentes eleitoraes, os influentes dos dois campos acercavam-se d’este, apertavam a mão áquelle, segredavam com um, batiam no hombro a outro, discutiam com um terceiro, e, sempre que era possivel, distribuiam listas ao maior numero.

O brazileiro era a alma do partido governamental. O Tapadas capitaneava a phalange do conselheiro. Pertunhas falava com todos, esfregando as mãos e sorrindo. O regedor passeiava com importancia por entre os grupos, recommendava ordem e respeito ás auctoridades, e dava de olho aos cabos, seus subordinados, para que se não esquecessem de cumprir as instrucções recebidas, votando no candidato ministerial.

Approximava-se a hora, e principiavam os trabalhos para a constituição da mesa. O parocho, o administrador e o regedor foram occupar o seu logar. Ficou presidente o brazileiro, e o resto da mesa formou-se d’entre as duas parcialidades.

Emquanto se organisavam assim os trabalhos, eram discutidas no adro as probabilidades da victoria.

N’um dos grupos formados, junto da porta da igreja, por os partidarios do brazileiro, dizia-se:

— Vencemos por uma maioria de mais de duzentos votos; verão!

— Só a freguezia de Pinchões enche-nos ahi a urna.

— E estará bem seguro o morgado?

— O sr. Joãozinho!? Ora! Está de ferro e fogo contra o conselheiro.

— Pois se te parece! Depois d’aquelles mimos que lhe fizeram na taberna, e do que d’elle se tem dicto no Mosteiro!...

— Não é só por isso. Elle já estava do nosso lado, desde que soube tinham deitado abaixo a casa do herbanario, e que o pobre homem estava succumbido de todo.

— É verdade! ahi temos mais um a votar contra o conselheiro d’esta vez.

— Quem? O Vicente? Esse sim. Então não sabes que o pobre velho já se não levanta da cama?

— Ai, não?

— Andava já muito fraco e doente; mas ha tres dias, sobretudo, tem ido de peor a peor, e com uma pressa, que, segundo ouvi dizer, aquillo está por pouco tempo: nem deita a semana fóra.

— Coitado!

— Ahi vem quem ainda hoje o viu. Não é verdade, sr. Pertunhas?

— O quê, meus amigos, o quê? o que é que é verdade? o que é que dizem? — perguntou o mestre de latim, esfregando sempre as mãos.

— Não é verdade que o Vicente herbanario está a ajustar contas?

— Oh! pobre de Christo! Aquillo corta o coração! Sempre eu digo que uma crueldade assim, como a do conselheiro!

— Muitos do povo d’aqui veem votar contra o conselheiro, só por causa do mal que fez áquelle santo velho.

— E com razão.

— E então para quê? senhores, para quê? — continuava Pertunhas. — Para fazer uma estrada em que se gastam rios de dinheiro, e que a final não presta! Pois eu passei por a casa do herbanario ha pouco, quero dizer, por a casa do Augusto, que é onde vive agora o Vicente. O rapaz estava á porta. Então, sr. Augusto, disse-lhe eu, á urna! vamos á urna! Elle encolheu os hombros como quem diz: «bem me importa a mim com isso.»

— Ahi está outro, que tambem não é pelo conselheiro.

— Por que não? Pois não é elle todo do Mosteiro?

— Foi, foi — replicou o Pertunhas. — Então vmc.ê não sabe que o conselheiro, depois de lhe fazer a fineza de lhe arranjar a demissão, inda por cima o poz fóra de casa, porque pelos modos o rapaz... fez publicar umas certas cartas... que compromettiam o homem? A falar verdade, tambem não foi bonito.

— Fez elle muito bem.

— Mas, como eu dizia, puzemo-nos a falar, e eu estava-lhe dizendo que o povo o vingaria da affronta que lhe fizera o conselheiro, porque ia dar a este um cheque de que elle se havia de lembrar toda a vida; quando o Vicente, que me ouvia de dentro, chamou-me e mandou-me entrar. Foi então que eu o vi... Parecia-me outro!... Imaginem vossês, outro tanto de magro e outro tanto de velho... Mettia dó! Poz-se a perguntar-me muitas coisas, o que havia, o que não havia, por quem estava este, por quem estava aquelle... Eu disse-lhe tudo; que o conselheiro, por mais que fizesse, já não podia vencer; que não arranjaria os votos precisos para cobrir a freguezia de Pinchões. O velho ficou admirado quando eu lhe disse que o sr. Joãozinho era dos nossos. E lá o deixei a remoer a noticia. Ao menos resta-me a consolação de lhe ter adoçado com ella os ultimos momentos.

N’este ponto da conversa viram passar por elles Henrique, que ia ter com um agente eleitoral, a suggerir-lhe uma ideia para vencer não sei que eleitor recalcitrante.

— Ahi anda este — disse um dos do grupo, seguindo-o com a vista. — Era bem feito que lhe dessem outra lição, como a da taberna do Canada.

— Ordem, ordem e prudencia! — disse o Pertunhas. — É preciso manter a liberdade da urna, senhores, e as garantias constitucionaes!

— Mas que tem este senhor com as nossas eleições?

— Quem o manda metter-se cá n’estas coisas?

— Ora é boa! Então não sabem que elle casa no Mosteiro? — disse o Pertunhas, que andava sempre informado das vidas alheias.

— Sim?!

— É verdade. Ha pouco, quando eu estava falando com o Augusto, veio a nós o José Barbeiro, que nos deu essa novidade, que lh’a dissera o Manoel da Quinta, que a ouvira á Gertrudes, criada do Mosteiro.

— Casa com a morgadinha, já se sabe?

— Pois vêdes! não que a bolada convida! A mim logo me farejou isso, quando vi chegar esse figurão cá á terra. Mas querem vossês saber uma coisa engraçada?... Pareceu-me que o Augustito do doutor não gostou da novidade.

— Não? Então por quê?!

— Vi-o fazer-se de mil côres quando a ouviu... Pois ter-se-lhe-ha mettido na cabeça... Hein?!

— Tinha graça. Mas olha o milagre!...

— Ah! ah!... Este mundo é muito divertido!

N’isto saiu a correr da igreja um influente politico, e principiou a olhar para todos os lados, como procurando alguem.

— Que temos nós lá, ó sr. Luiz? — perguntou-lhe o Pertunhas.

— Onde diabo estão os de Pinchões? — perguntou o interpellado.

-Inda não vieram.

— Diabos os levem! Vae-se principiar a chamada, e elles não apparecem. O morgado é homem para se esquecer a catar os cães.

— Mas vamos nós principiando, e no emtanto elles virão — disse o Pertunhas, que fôra nomeado para revezador do secretario da mesa.

— Mas a primeira freguezia que vota é justamente a d’elle. O sr. Seabra está como uma bicha!

E, dizendo isto, o homem voltou para dentro.

A mesa eleitoral, instituida no meio da igreja, com grande escandalo do beaterio, que pela voz dos padres chamava áquillo artes do demonio, ia principiar a funccionar. O conselheiro, que viera mais tarde, de proposito para não formar parte da mesa, requereu, com o relogio na mão, que se abrisse a urna aos eleitores, visto ser a hora marcada no edital.

Este requerimento, simples e justo como era, suscitou discussão.

O brazileiro allegou que, sendo os de Pinchões os primeiros a votar, em virtude do artigo 62.º do decreto eleitoral, que manda votar primeiro a freguezia mais distante, e não estando na assembléa ninguem d’aquella freguezia, convinha esperar.

O conselheiro insistiu, dizendo que a lei não mandava esperar por os eleitores, mas apenas indicava a ordem da chamada, e que portanto votassem os presentes, e que na segunda chamada, ou nas duas horas de espera, votariam os ausentes que depois viessem.

Esta questão não se resolveu de prompto. Trocados alguns alvitres, lida a lei, discutidos os artigos d’ella, consultados os recenseamentos e mappas, pedidos esclarecimentos ao regedor, ao administrador, e ao parocho, é que se approvou a proposta do conselheiro e principiou a chamada.

A freguezia de Pinchões faltou em pêso.

O brazileiro estava perturbado; olhava para a porta, olhava para a lista dos recenseados, olhava para os amigos, olhava para os adversarios, e sobretudo para o conselheiro, em cuja insistencia em principiar a votação julgou descobrir cavillação. Na urna não tinha entrado uma só lista. Pregoou-se o ultimo nome dos eleitores de Pinchões. Ninguem ainda!

Passou-se a outra freguezia.

O brazileiro já não estava em si.

Os primeiros votos recolhidos mal os pôde introduzir na urna, de trémulo e sobresaltado que estava.

O homem suppunha que lhe tinha sido roubada á ultima hora uma freguezia inteira. Não estava muito longe de acreditar que os agentes do conselheiro a haviam arrasado completamente.

A freguezia que se seguia na votação era uma das que se conservavam fieis ao conselheiro, circumstancia que augmentava a indisposição do Seabra.

A votação ia, porém, correndo, interrompida apenas por algumas questiunculas sobre a identidade de um ou de outro eleitor e sobre a regularidade d’esta ou d’aquella lista, graças aos futeis pretextos de que os contendores lançavam mão para disputarem, voto a voto, o suffragio popular.

Ia adeantada a votação, quando correu na igreja uma voz, que veio infundir alento no animo desfallecido do brazileiro.

— Veem ahi os de Pinchões!... Ahi estão os de Pinchões... Ahi vem o sr. Joãozinho e toda a sua gente! — dizia-se de toda a parte.

Esta nova passou de bôca em bôca, a ponto de produzir um sussurro na assembléa.

Muitos sairam para ir receber ao adro os annunciados.

Chegára de facto alli o sr. Joãozinho das Perdizes, á frente da sua freguezia.

Leitor, se tens, como eu, esperança e sincera fé no systema representativo, perdôa-me o obrigar-te a assistir a uma scena que faz subir a côr ao rosto de quem, como nós, abençôa os sacrificios por cujo preço nossos paes nos compraram a nobre regalia de intervir, como povo, na governação do Estado, as franquias que nos emanciparam da caprichosa tutela de um homem, revestido de direitos impiamente chamados divinos, contra os quaes o instincto e a razão igualmente se revoltam. A scena, porém, humilhante como é, não envolve a minima censura á excellencia do systema; mas apenas aos que nos quarenta annos que elle quasi tem de vida entre nós, não souberam ou não quizeram ainda fazer comprehender ao povo toda a grandeza da augusta missão que lhe cabe executar.

Depois das nossas luctas civis, já muitas creanças se fizeram homens; se a escola fôsse entre nós o que devia ser, já haveria sobra de eleitores com perfeita consciencia dos seus direitos civis.

O atrazo e ignorancia d’elles, contristando, sómente devem impellir os homens de intenções sinceras e puras a applicar os esforços de intelligencia e de acção para ministrar com a educação a moralidade, e para acordar a consciencia d’esta entidade social.

Era o sr. Joãozinho das Perdizes á frente da sua freguezia, disse eu.

E é justamente este o espectaculo humilhante de que falava.

Tendes visto um guardador de cabras á frente do seu rebanho, conduzindo com acenos e assobios todas as barbudas cabeças d’aquelle regimento quadrupede? Pois vistes o mais perfeito simile da scena que se presenciava agora no adro da igreja matriz.

O povo, o povo soberano, que n’aquelle dia tinha nas mãos o sceptro da sua soberania, não era menos docil do que os irracionaes que recordamos.

O dia em que devia mostrar-se orgulhoso, era quando mais se humilhava; quando podia dispôr dos destinos dos seus senhores, era quando mais vergava a cabeça sob o pêso que estes lhe assentavam.

Não é similhante esta fôrça inconsciente do povo á do boi robusto e válido, que uma creança dirige e subjuga? Forte como elle, como elle docil, como elle laborioso, como elle util, não vê que a mesma fôrça que emprega no trabalho lhe poderia servir para repellir o jugo. Ou quando o vê, é quando o desespero e a furia o cegam e o impellem a revoltas tremendas.

Mas o povo de Pinchões, o povo do sr. Joãozinho, estava muito longe d’esses excessos.

O morgado vinha, como já disse, á frente.

A barba por fazer, as melenas despenteadas, o lenço do pescoço sôlto, sem botões o collarinho da camisa, com as mãos mettidas no cós das ceroulas, o chicote no bolso da jaqueta de pelles, as botas enlameadas até o joelho, a ponta do cigarro ao canto da bôca, o palito atraz da orelha, o chapéo sobre o occiput, dois galgos adeante de si, e o inseparavel Cosme quasi à latere. Entrou no adro com ares triumphantes, sorrindo e piscando os olhos para os seus amigos e partidarios, como para lhes fazer notar a numerosa procissão que o seguia e a docilidade dos membros d’ella.

Atraz vinham os eleitores de Pinchões, velhos e moços, ricos e pobres, mas todos com o olhar timido e estupido, todos com movimentos enleados, todos com os olhos no caudilho, para saber o que deviam fazer. Se elle parava a cumprimentar um amigo, paravam todos com elle; a direcção que tomava, tomavam-n’a todos a um tempo; apressavam ou demoravam o passo, segundo a velocidade que elle dava aos seus; se ria, sorriam; se praguejava, tudo ficava sério. O cortejo parou á porta da igreja.

O morgado passou revista á sua tropa, á qual deu instrucções.

Os homens, com os cabellos para deante dos olhos, os braços estendidos e a cabeça baixa, não ousavam fazer um movimento, e conservaram-se enfileirados até nova ordem do sr. Joãozinho.

Pareciam envergonhados de serem precisos a alguem.

No bolso de cada um d’estes homens havia um oitavo de papel almaço dobrado, no qual estava escripto um nome; o nome de um homem que elles nem sabiam se existia no mundo. No momento devido, cada um d’elles, chamado pela voz do escrutinador eleitoral, responderia: «presente»; approximar-se-ia da urna, entregaria ao presidente da mesa aquelle papel, e retirar-se-ia satisfeito, como se descarregado de um pêso que o opprimia.

Se lhes perguntassem o que tinham feito, qual o alcance d’aquelle acto que acabavam de executar, não saberiam dizel-o; se lhes perguntassem o nome do eleito para advogado dos seus interesses e defensor das suas liberdades, a mesma ignorancia; se lhes propuzessem a resignação do direito de votar, acceitariam com jubilo; se, finalmente, lhes dissessem que n’aquelle dia estavam nas suas mãos e dos seus pares os destinos do paiz, abririam os olhos de espantados, ou sorririam com a desconfiança propria dos ignorantes.

Innocente povo!

Querem-te assim os ambiciosos, a quem serves de cómmodo degrau.

Quando disseram ao sr. Joãozinho que já tinha passado a sua vez de votar, o homem rompeu pela igreja dentro, berrando, bracejando, ameaçando céos e terra, sem attender a quantos lhe clamavam que tinha de se proceder a nova chamada, e que portanto socegasse.

O Cosme seguia-o, prompto a ser executor de suas justiças.

Custou a serenar o morgado, e não o fez senão depois de duas pragas contra as pessoas dos senhores da mesa, pragas que razões politicas fizeram engulir ao brazileiro, sem nem sequer lhe tirarem dos labios o sorriso com que saudára a vinda do morgado.

Caindo em si, o sr. Joãozinho deu ordem á sua gente para que entrasse para a igreja, e ahi a enfileirou a um dos lados d’ella, promptos á primeira voz.

A chamada proseguia, e a votação não ia já muito favoravel ao conselheiro, a julgar pelos indicios, que não escapam aos olhos amestrados dos mirones.

O brazileiro exultava comsigo mesmo, principalmente quando, por sobre as cabeças dos que se agrupavam em volta da urna, divisava as phalanges do morgado, compactas e decididas.

O conselheiro ainda tentou uma investida com o sr. Joãozinho, indo cumprimental-o affavelmente; este, porém, grunhiu-lhe um monosyllabo sêcco, e voltou-lhe as costas, envolvido n’uma nuvem de parciaes do brazileiro.

Era caso desesperado.

Passára já a votar a ultima freguezia, que era justamente aquella onde estava constituida a unica assembléa de que se compunha o circulo eleitoral, e onde o leitor tem passado commigo todo o tempo que dura a nossa narração.

Foi então que votou o conselheiro e os outros conhecidos nossos, entre os quaes o Zé P’reira.

Com este deu-se um episodio comico, que merece menção.

O brazileiro ao receber a lista que elle lhe offerecia, sabendo-o parcial do conselheiro, recusou-a, allegando que estava marcada, o que era contra a expressa determinação do artigo 61.º, § unico, da lei eleitoral.

Sabidas as contas, a supposta marca era de natureza de que seria quasi impossivel isentar papel ou objecto qualquer saido das mãos do Zé P’reira. Era uma nódoa de vinho.

Discutiu-se, ainda assim, se a nódoa era marca ou não era marca, e se lhe deviam ser applicadas as disposições do § unico do artigo 61.º.

A discussão intrincada foi cortada por o Zé P’reira, que disse com a maior candura:

— Se essa está suja, sr. Tapadas, eu tenho aqui mais d’aquellas que vocemecê me deu.

O proprio conselheiro desatou a rir.

O brazileiro resmungou:

— Então ha suborno aos eleitores? Como se entende isso?

-Ora, não bula na chaga, senão temos muito que ouvir — disse o Tapadas, e accrescentou: — ande para deante; deite a sua lista, sr. Zé.

Os governamentaes, que iam de cima, mostraram-se tolerantes, e a lista caiu na urna.

Estava a findar a primeira chamada.

Já se liam os ultimos nomes, segundo a ordem alphabetica.

A gente de Pinchões, á voz do sr. Joãozinho, apromptava-se para breve entrar em acção na segunda chamada, que ia principiar.

Faltavam uns doze nomes, quando muito, e dos ultimos era o do herbanario, cuja inicial era um V.

Até alli a victoria podia ainda talvez questionar-se, porque a actividade do Tapadas tinha expremido as freguezias, que lhe eram affectas, até deitarem o ultimo eleitor; velhos, doentes, mancos e paralyticos fôram transportados em cadeiras e em padiolas até a urna para votarem. Mas a freguezia de Pinchões ia abafar a eleição inevitavelmente.

O conselheiro perdeu as esperanças, e o proprio Tapadas sentiu-se desfallecer. O brazileiro estava vermelho e febril de contentamento.

O escrutinador chamou finalmente pelo herbanario.

— Vicente Rodrigues da Fragosa — disse elle, preparando-se já para voltar o caderno.

— Adeante. Esse vae votar a uma assembléa mais longe — disseram alguns.

E ia-se proceder a segunda chamada, quando se ouviu do fundo da igreja uma voz trémula, mas sonora ainda, responder:

— Presente.

Voltaram-se todos ao escutar aquella palavra.

Adeantava-se lentamente, pallido, curvado, acabrunhado como nunca, o velho herbanario, a quem o braço de Augusto servia de apoio.

Dir-se-ia um cadaver resuscitado do tumulo.

Com as faces pallidas, o olhar amortecido, os passos incertos, o herbanario adeantava-se e trazia já de longe o braço estendido, segurando a lista que vinha lançar na urna.

Apoderou-se de todos os circumstantes um sentimento quasi de pavor, perante aquella figura anciã e alquebrada, que se dissera erguida do tumulo para responder á voz que a evocára. Todos se lhe afastavam do caminho com respeito, senão com supersticioso terror.

Fez-se alli dentro o maior silencio, silencio só interrompido pelo som dos passos arrastados do Vicente sobre o lagêdo da igreja.

O conselheiro não pôde mais desviar os olhos do vulto venerando do herbanario; n’aquelle velho, que fôra seu companheiro de infancia, parecia-lhe estar vendo agora um severo accusador da sua insensibilidade politica, a personificação de um remorso pungente, a primeira apparição de um espectro, que devia perseguil-o no futuro.

Todos os da mesa se levantaram instinctivamente, e, immoveis, viam approximar-se o velho eleitor, que já suppunham á borda da sepultura.

Aquella assembléa, erguendo-se silenciosa e reverente, á chegada de um pobre velho, trémulo e enfermo, que seguia apoiado ao braço de um pallido mancebo, tinha uma apparencia profundamente solemne.

O morgado das Perdizes, devéras affeiçoado ao herbanario, não teve mão em si, ao vêl-o assim doente e enfraquecido, que lhe não viesse ao encontro, dizendo commovido:

— Ó tio Vicente! pois n’esse estado?!...

O velho fez um gesto energico para afastal-o de si.

— Arreda-te! — disse com severidade — deixa-me, serpente, que mordes a mão do teu bemfeitor! Não me appareças, que não quero ter-te na ideia, quando estiver a expirar!

O morgado ficou transido de espanto e de consternação ao ouvir estas palavras.

— Ó tio Vicente!... — exclamou, ajuntando as mãos — pois eu que lhe fiz?

— Cala-te. Deixa-me passar, quero, como homem d’esta terra, protestar contra a iniquidade que tu e os teus praticam hoje, apedrejando aquelle a quem deveis tudo. Vendei-vos como cães, e ficae-vos com esse remorso: eu não o quero para mim.

E, caminhando para a urna, parou defronte d’el-la, fitou o brazileiro, que não pôde sustentar-lhe o olhar com firmeza, e disse-lhe:

— Ahi tem o voto do herbanario, sr. presidente.

O brazileiro recebeu-lhe a lista, e introduzia-a na urna.

Então o herbanario, cada vez mais anciado, correu os olhos pela assembléa a procurar alguem. Viu o conselheiro que não ousava approximar-se, olhou-o algum tempo com uma expressão singular e no fim estendeu-lhe a mão. O conselheiro apertou-a nas suas, commovido.

— Manoel, — disse-lhe o velho em voz sumida — não me cegava tanto o resentimento, que te negasse esta justiça. Eu era ainda teu amigo.

— E sel-o-has sempre, Vicente.

— Sempre que o seja... por pouco tempo será — respondeu o velho, sorrindo tristemente.

— Que dizes?... Mas... que tens tu, Vicente? Que sentes?

— Tio Vicente!... exclamaram tambem Augusto, o morgado das Perdizes, e outros mais.

A physionomia do herbanario transtornára-se assustadoramente; parecia luctar energicamente para falar ainda, mas a voz embargava-se-lhe na garganta.

— Já não posso... — murmurou elle. — Queria dizer-te...

E apontando para Augusto, e olhando para o conselheiro, disse-lhe ainda:

— Era... d’este... Elle é... elle está...

Os braços de Augusto, do conselheiro e do morgado das Perdizes, ampararam-lhe o corpo que ia a cair por terra.

Foi nos braços dos tres que expirou o herbanario, porque estava devéras morto, quando o fôram a erguer.

O alvoroço foi geral na igreja. Todos a abandonaram, correndo para o adro, para onde foi levado o velho, a vêr se era possivel reanimal-o. Todos, á excepção do brazileiro, que ficou a vigiar a urna, e de um agente do Tapadas, que ficou a vigiar o brazileiro.

Os soccorros prestados ao herbanario fôram inuteis.

Todos se convenceram depressa de que era de facto um cadaver.

Os indifferentes voltaram a continuar a eleição.

Ia principiar a segunda chamada.

O morgado das Perdizes, impressionado devéras por a scena, andava desconsolado por o adro, e só de má vontade entrou na igreja.

O conselheiro, Augusto e Henrique, e mais alguns homens do povo, acharam-se sós junto do cadaver.

A commoção tirava a Augusto a frieza de animo para dar as ordens precisas. Henrique tomou isso a seu cuidado. Houve assim um momento em que o conselheiro esteve só com Augusto.

N’aquelle instante o coração do homem politico era superior ao resentimento.

— Augusto — disse elle a meia voz — a morte não deixou este infeliz completar a ultima recommendação, que parecia querer fazer-me. Eu adivinhei-lhe porém o sentido, e para prova offereço-lhe a mão de amigo.

E, dizendo isto, estendia-lhe a mão.

Augusto não lhe correspondeu, e disse-lhe, ainda com a voz commovida:

— A mão que v. ex.a me estende é a mão do homem que esquece e perdôa as injurias, e eu não posso ser perdoado, porque me não julgo criminoso. Desde que uma vez v. ex.a formulou a accusação e se fez juiz, prefiro, a ter de ser julgado sem provas, uma condemnação a uma absolvição. Fico mais em paz com o meu orgulho.

A presença de alguns curiosos obrigou a interromper este curto dialogo.

Henrique voltou com os aprestes para a conducção do cadaver.

Augusto acompanhou a casa o herbanario.

O conselheiro, impressionado pelas ultimas scenas, sentia-se pouco disposto a permanecer alli.

— Fique se quizer — disse elle para Henrique. — Não estou em estado de receber á queima-roupa a noticia da minha derrota; haviam de attribuir a mortificação que estou sentindo a essa causa, e eu não lhes quero dar esse gôsto. Vou para casa; lá me levará a noticia, e não me dará grande novidade. Adeus.

E, apertando a mão de Henrique, retirou-se para o Mosteiro.

Causou grande pesar alli a nova da morte do herbanario, e das varias circumstancias que a acompanharam.

Não houve quem fôsse indifferente ao successo, que o conselheiro narrou ainda sob a oppressiva influencia que elle lhe deixára.

A morgadinha absteve-se da menor allusão á causa que apressára o fim da vida do herbanario, e evitou sempre que D. Victoria ou Christina alludissem a ella tambem. Presentia que a consciencia do pae lh’o estava exprobrando e por um delicado instincto abstinha-se de se applaudir das suas previsões, infelizmente realisadas.

Passada a primeira commoção, que a lembrança d’aquella scena produzira, o conselheiro principiou de novo a sentir pungente e vivo o despeito pela derrota que se lhe preparava na urna.

Fazia o possivel por se mostrar indifferente a isso; mas a affectação era demasiado transparente, para até nem D. Victoria se illudir.

Assim, por exemplo, dizia elle á filha:

— Ora vão realisar-se os teus votos, Lena; aqui me vaes ter a viver uma vida patriarchal. Se queres que te diga a verdade, está-me a appetecer; a vida politica ia-me cançando já.

Mas como dizia elle isto! Com que sorriso contrafeito, com que mal simulada satisfação!

Pouco a pouco, porém, a impaciencia começou a apossar-se d’elle e nem estas exterioridades lhe permittia já.

Áquella hora devia estar a proceder-se na assembléa ao apuramento de votos.

Esta ideia lançava o conselheiro em um d’aquelles estados febris, que só pode conceber quem já alguma vez soube o que é ter a sorte dependente de uma votação, e aguardar a cada momento a noticia do resultado d’ella.

Devora-nos uma impaciencia insupportavel; tudo o que ouvimos nos afflige; as conversas sobre assumptos indifferentes, irritam-nos; se nos tentam alentar com esperanças, revoltamo-nos contra ellas; se procuram preparar-nos para um desengano, prevenindo-o, repellimos com energia a ideia d’elle. O silencio não nos é mais agradavel; as apprehensões ganham corpo no meio d’elle; falam os presentimentos do mal. Tentamos sorrir, gela-se-nos o sorriso nos labios. A quietação é-nos tão intoleravel como o movimento. Anciamos sair da incerteza, e de cada individuo que chega, trememos de saber a nova fatal. Vae mais longe o effeito moral d’este estado do espirito; chegamos quasi a querer mal a todos quantos estão assistindo n’aquelle momento á decisão lenta da sorte. O nosso egoismo, exacerbado em taes momentos, irrita-se com a ideia de que os nossos amigos tenham coração para assistir áquillo; e comtudo não lhes perdoariamos se se retirassem. Sensações d’aquellas exgotam mais vitalidade, em cada instante, do que annos de vida isenta d’ellas.

O conselheiro luctava comsigo mesmo para dominar-se; procurava preparar-se para receber o golpe, que bem podia dizer infallivel. Que esperava elle! Não lhe era quasi possivel contar, um por um, os votos de que dispunha? Não ficava, por mais alto que elevasse o cálculo, uma grande maioria a esmagal-o? Tudo isto era assim, mas o convencimento prévio recusava estabelecer-se-lhe no espirito, para lhe dar a tranquillidade da certeza.

É um vivedouro sentimento o da esperança! Não succumbe senão perante um desengano inevitavel. Por que lhe chamam verde, senão talvez por, como as plantas exuberantes de seiva, resistir ás mutilações e renovar os ramos cortados?

O conselheiro, dominado por todos estes tumultuosos pensamentos, passeiava agitado na sala, olhando ás vezes para a janella, á espera de vêr assomar ao portão do pateo um dos seus partidarios, cabisbaixo e melancolico, e armando-se de coragem para lhe dar o desengano.

Apesar de todas as prevenções, o que é certo é que a nova, quando viesse, feril-o-ia como imprevista.

Sempre assim succede.

No meio de um d’estes passeios agitados que dava em todas as direcções por o meio da sala, ouviu-se a detonação de algumas duzias de foguetes.

O conselheiro parou e fez-se excessivamente pallido.

Os corações de Magdalena, de Christina, de D. Victoria e de Angelo bateram precipitados.

A causa estava, emfim, decidida.

A girandola apregoava uma victoria, mas não proclamava o nome do vencedor; porém, que dúvida podia haver a respeito d’elle?

O conselheiro sentiu fraquearem-lhe as pernas; sentou-se, e, com um sorriso amargo, disse para a familia:

— Estou desautorado pelos meus antigos mandatarios!

— Quem sabe, mano? Ás vezes...

Isto principiava a dizer D. Victoria, para dizer alguma coisa, quando Angelo que ficava mais proximo da janella, exclamou:

— Ahi vem um homem a correr a toda a pressa!

— A correr?! — disse o conselheiro, em quem esta simples noticia infundira novo alento a todas as esperanças, e dissipára a sombra das pesadas apprehensões; e caminhou pressuroso para a janella.

As senhoras seguiram-n’o alli.

O homem que Angelo vira de longe, divisava-se ainda por entre os silvados de um atalho, que vinha dar á avenida da entrada do Mosteiro.

— Parece o Domingos, o criado do Tapadas... — disse o conselheiro, affirmando-se.

— Mas que pressa elle traz! — notou D. Victoria.

— Já nos viu — disse Angelo.

— Lá acenou com o chapéo — exclamaram todos.

— Que quer elle dizer com aquelles signaes? — tornou o conselheiro, nervoso.

— Querem vêr que é o que eu digo! Olhe que venceu, mano.

— Qual! É impossivel. Pois eu não sei como a votação correu? É boa! — disse o conselheiro com certo tom irritado, como de quem não quer que lhe descubram uma esperança.

Passou-se um pouco de tempo, em que o homem se perdeu de vista. Subia n’aquelle momento a ladeira dos sovereiros.

Os olhos fitavam-se todos no portão do pateo á espera de o vêr surgir alli. Mal se respirava.

— Eil-o — disseram instinctivamente todas as vozes, quando elle appareceu.

— Viva! sr. conselheiro, viva! — bradou elle de lá, apesar de esfalfado.

O conselheiro teve quasi uma vertigem.

— Elle que diz?... Como pode...

Não o deixaram continuar as senhoras, que já o beijavam e abraçavam com frenetico enthusiasmo.

Magdalena, a propria Magdalena, cujos mais ardentes votos eram vêr o pae desistir da vida politica, deixava-se tomar pela febre do triumpho e celebrava-o como se n’elle fundasse a sua felicidade. É que, na occasião da lucta, não ha animo tão indifferente a estimulos, que não abrace um partido; ao principio frouxamente talvez, mas a incerteza augmenta o ardor com que se esposa a causa; os gêlos da indifferença fundem-se nos momentos decisivos, e a anciedade que precede a victoria augmenta a commoção que esta produz, se se realisa.

O conselheiro queria acalmar aquellas effusões, mas em vão bradava:

— Esperem! esperem! Deixem ouvir! Isto não pode ser... Ha engano...

Mas o animo feminino não entra facilmente na ordem, se chega alguma vez a sair d’ella.

Só a entrada do mensageiro na sala, é que serenou o tumulto.

O conselheiro interrogou o.

— Então que dizes tu? Que vivas são esses?

— Digo que vencemos — respondeu o moço, usando ingenuamente o verbo na primeira pessoa do plural.

— Estás a sonhar?

-O sr. Tapadas, o meu amo, foi quem me mandou aqui a toda a pressa para lh’o dizer. Quando eu saí da igreja tinha vmc.ê... tinha v. s.a mais cento e cinco votos do que o outro, e só havia na caixa uns trinta por junto. No caminho ouvi a girandola...

— Mas é impossivel! Cem votos!... ahi ha engano. Não pode ser!

— Cento e cinco!

— Estás bem certo no que te disse teu amo?

— Ora se estou. E lá vi a cara do brazileiro. Mettia mêdo.

O conselheiro perdia-se em conjecturas. Agora parecia-lhe irrealisavel aquillo que lhe annunciavam.

Não pôde mais tempo conter-se. Sobresaltado, ancioso, preparou-se para ir por seus proprios olhos averiguar do facto.

Mas antes que o fizesse, uma onda popular, trazendo á frente a bandeira nacional e a philarmonica da terra, invadia o pateo e atordoava os ares com vivas, hymnos e foguetes. Mas antes que o fizesse, uma onda popular, trazendo á frente a bandeira nacional e a philarmonica da terra, invadia o pateo e atordoava os ares com vivas, hymnos e foguetes. Á frente da musica estava radiante mestre Pertunhas, embocando a trompa com mais arreganho que nunca!

O conselheiro chegou á janella, e então é que as acclamações fôram estrondosas.

A desafinação da banda chegou a roçar pelo sublime.

O conselheiro agradeceu ao povo aquella manifestação.

Passados momentos entravam na sala Henrique, o Tapadas, e outros chefes eleitoraes, e com elles o Pertunhas, sobraçando a trompa.

— Que quer dizer isto? — perguntou o conselheiro, abraçando-os.

— Cento e trinta e cinco votos a maior, sr. conselheiro, nem mais nem menos — respondeu o Tapadas, rindo ás gargalhadas.

— Cento e trinta e cinco — repetiu o Pertunhas.

— Mas d’onde vieram!

— Ora essa é boa! De Pinchões.

— De Pinchões — repetiu o Pertunhas.

— Como?... Pois o morgado?...

— Votou comnosco como um homem. Ora pudéra!

— É verdade... votou... comnosco — dizia mestre Pertunhas.

— Mas não se viu ainda ha pouco...

— Que estavam com metralha inimiga? — concluiu o Tapadas. — Que tem lá isso? Mas vão lá á igreja e verão as buxas que estão pelo chão. É um destrôço! Parece a loja de um farrapeiro.

— Mas explica-me isso, Tapadas.

— Então não ouviu a rabecada que aquelle santo do herbanario, que inda que não fôsse senão por isso deve estar assentadinho no Céo, deu ao morgado? Pois aquillo lá resentiu o homem. E quando, depois do Vicente expirar, elle voltou para a igreja, vinha a dizer: «Diabos me levem, que se tivesse aqui listas á mão, havia de ensinar os tratantes que me metteram n’esta dança». Vieram-me dizer isto, e eu que, para o que désse e viesse, sempre levava um sortimento de listas, cheguei-me por a calada ao morgado... Hein?... e metti-lh’as assim á cara. Hein!... Ora! Foi um momento! Emquanto a mesa se senta e abre cadernos, sim, senhores, e se põe tudo em ordem, estava armada a freguezia de Pinchões á nossa moda. Agora se se queria rir, era vêr o brazileiro! Como elle encafuava para a urna as listas que eu tinha trazido no bolso, e com que fogo! E eu a vêl-o enterrar até ás orelhas e a fazer-me carrancudo! No fim então é que fôram ellas, quando principiaram a apparecer as nossas listas ás cargas cerradas. O homem enfiou! cuidei que lhe dava alguma coisa no fim. Berrou, protestou... fez coisas do arco da velha. Agora chia contra o morgado, e se o encontra é capaz de o comer... Para coroar a festa, á girandola, que aqui o mestre Pertunhas tinha preparada para elles, pegamos-lhe nós o fogo e, estourou que foi um gôsto!

E o Tapadas terminou com outra gargalhada.

O Pertunhas quiz protestar contra a accusação, mas o Tapadas voltou-lhe as costas, dizendo:

— Ora adeus, meu amigo! O melhor é calar-se.

E elle seguiu o alvitre, limitando-se a dizer a meia voz para os que estavam proximos:

— Este Tapadas tem cada graça!

Assim pois a victoria do conselheiro era devida ao herbanario. Tinham-lhe falhado todos os seus cálculos politicos, transigira com exigencias, nem sempre justas, o que de nada lhe servira, e salvára-o o elemento que desprezava. Acontece ás vezes d’isto aos homens que muito calculam.

As senhoras, que estavam sabendo de Henrique o succedido, renovaram as suas demonstrações de alegria.

O conselheiro, porém, ficou preoccupado no meio das festas de familia e das festas populares que se faziam no pateo.