Suspiros poéticos e saudades (1865)/A meu Amigo D. J. G. de Magalhaens

Como é bela a Natura!
Pode o parto de um gênio em febre intensa
Rivalizar tais cenas?
Ver das águas a queda ruidosa
Deslizar entre seixos, formando
De cristal mil festões, que se esmaltam
Da palheta do íris, pintando
Retab'los, onde o toque da mão mestra

Em matiz variado delineia
Sucessivas belezas, como a idéia,
Que outra idéia desperta, vinculando
Das sensações o quadro reanimado;
Onde terna saudade em ledo arroubo,
Volteia esperançosa
Sobre as asas divinas da memória,
Que em seu grêmio renova eras passadas;
Misteriosa fênix de nossa alma!
Propércio e Cíntia,
Catulo, Horácio,
Mecenas, tudo
Do antigo Lácio
Patente sobre as ruínas vejo errarem,
Como nuvens de fósforo cerúleo,
Ou vapores num lago, matutinos,
Ou nas selvas noturnos pirilampos.

E tu, oh linda Zenóbia,
Que com teu pranto nutriste
Estas águas sempiternas,
E solitária carpiste
Tua coroa, teu cetro,

Armadas, marmóreos paços,
Vastos templos de Palmira,
Que Roma fez em pedaços.
Já foste Paládio, e ídolo
Do teu povo soberano;
Mas quebrou-te o templo, as aras,
O iconoclasta Romano.
Vem, princesa desgraçada,
Vem solitária comigo,
Vem chorar a antiga glória,
Que eu também choro um amigo.

Se ora invoco teus manes neste ensejo,
Não turbo as régias cinzas, que humilhadas
No exílio findaram sem momento.
Como tu, solitário a vida gemo,
E a passada ventura, que gozara,
Entre amicais amplexos, venturoso.

Mas que voz na soidão remonta aos ares?
Celeste Querubim baixa do céu,
E na flauta divina exalta o hino,
Que a terra a Jeová diurna envia.

Mas não; alto prodígio se levanta;
Providente Natura
Companheiro me envia; alado vate,
Homero da floresta,
Em melódico metro, o estro exalça,
Meus suspiros conforta, adoça as mágoas.

Salve, oh vate Rouxinol,
Salve, à luz misteriosa
Deste archote, que de noite
Faz a terra duvidosa.
Salve, oh Lua alvinitente,
Mãe de amor, do vate amante,
Do silêncio grata esposa,
Salve, salve neste instante!

Mas quem turba teu manto de silêncio,
E a voz levanta em prolongado ronco?
São as do Anio
Tartáreas águas,
Que sempre vivem
Quais minhas mágoas.
Da história imagem,

Das estações
Vivo retrato
Seus borbotões;
Qual vida, e morte,
De vaga em vaga,
Se esconde, e surge,
Se acende, e apaga.
Assim batem as águas rugidoras,
Que os átomos confundem, dilatando
A contínua torrente, que retrata
Do infinito a imagem!

Onde está o infinito, oh Deus Eterno?
Esse marco onde esbarra a mente humana,
Que sem tino volteia titubante,
E no abismo do peito se aprofunda,
Face a face encontrando a consciência?
Oh consciência, ao teu clarão se rasga
O véu das ilusões! Ele nos mostra
Das paixões o troféu dentro do túmulo,
E ao pé quadro da vida, que demonstra
O nada da vaidade, e o desengano
Majestoso sentado

Na cadeira da escola da verdade,
Donde colhe a virtude os seus ditames!

Pálida Lua, teus suaves raios,
Que plácidos se esbatem nas campinas,
E as fugitivas ondas argenteiam,
Da consciência nossa a imagem pintam,
Que fala ao coração com tal potência,
Sem nos lábios volver um som de frase.

Misterioso acento, alta harmonia
Desenvolve a Natura em seus concertos.
Enquanto a voz uníssona do Anio,
Que em equóreos cilindros vai rolando,
E entre seixos ribomba,
De medonho fragor o ar pejando;
Canoro rouxinol prelúdio exalta,
E sublime se acorda ao som horrível,
Que as águas tangem em contínuos vórtices
Entre o limo, e as areias das cavernas,
Variando as estrofes; lá prolonga
Suavíssimo gorjeio, que se perde
Em ventrílocos ecos; quais soluços

De enamorada virgem, que receia
Do coração trair ternos afetos.

Volve a paz, o silêncio, ronca a onda
Em perpétuo murmúrio;
Da fadiga repousa alado vate,
E inspirada canção alto redobra.

Mais sublime retoma o retornelo,
Em agudos sibilos elevando-se;
Quebra a voz; vem morrendo suspiroso;
Doce, e doce remonta, enche o espaço;
Majestoso se espraia, floreando;
Qual rojão que remonta além das nuvens,
E no ar arrebenta um firmamento
De efêmeras estrelas luminosas.

Volve a paz, o silêncio, ronca a onda
Em perpétuo murmúrio;
Da fadiga repousa alado vate,
E inspirada canção alto redobra.

Melancólico entoa em nova escala
Amorosa canção, que invejam dúlias:

Té que alfim tiritando se arrebata,
Entrecorta o trinado, e pouco a pouco
Em fluente florido se evapora.

Volve a paz, o silêncio, ronca a onda
Em perpétuo murmúrio;
Da fadiga repousa alado vate,
E inspirada canção alto redobra.

Mesclado efeito de sublimes notas,
Ora forte, ora lento vai soltando;
Finge o pranto, sorri-se, e desenvolve
Insólita harmonia, que assimilha
Batalhões com clarins, rufos, e tímbalos;
Emaranha um confuso regorjeio,
Que se perde num som prolongadíssimo.

Triunfante cala a cítara,
Desaparece qual relampo.;
Ronca a onda sempre a mesma,
E o silêncio toma o campo.

Oh Rossini das aves, tu que buscas
A soidão, o silêncio,

Pra teu canto esmaltar sem o marulho
Da vigília do dia; e como um gênio,
Que no leito desdobra mil prodígios
Ao cansado mortal em grato sonho,
Nesta hora me recordas
Ao coração lanhado imagens ternas,
Tão tristes, que ante mim se desenrolam
Qual penacho de fumo
De apagado brandão junto ao esquife,
Que um cadáver de virge'avaro oculta.

Oh Rossini das aves, que linguagem
Teu discurso soltou? Não é da terra.
Ah! cantas porventura
Os fastosos anais, a decadência,
Os triunfos, e a queda dos Romanos?
A saudade, as delícias da amizade,
Ou a história amorosa de uma vítima?

Marmóreos átrios, áureos peristilos,
Conquistas dessa indústria, que assoberba
A terra, o mar, os montes, e os abismos,
Tudo o tempo desfez co'a mão dos séculos.

Sibilinas paráfrases
De místicos oráculos,
Que o futuro previam, não previram
Essa mãe de desastres
Cimitarra de Totila,
Que a Palestra, o Ninfeu, a Academia,
E mais d'arte primores derrocara
Nesse mundo do belo, que Adriano
Colocara engenhoso sobre a encosta
Das ridentes colinas, que te adornam,
Oh decantada Tibur!
Qual túmulo sagrado, o viajante
Vem teu solo beijar, e espavorido
Desses restos augustos que te cobrem,
Vai na pátria narrar tais maravilhas,
Maldizendo a ignorância, e Caracala.

Esta, outrora soberba, áurea cidade
Minha imagem retrata em quadro icônico!
Onde está teu Liceu, onde o teu Foro?
Os teus templos, e muros formidáveis?
Que sepulcro encerrou os Paladinos?


Eleva, eleva moles gigantescas,
Pelo gênio das artes inventadas,
Oh vaidoso mortal! marca os teus fastos
Com marmóreos padrões; que o dia chega
Em que, a um leve aceno do destino,
Com teus paços irás dormir na terra.
Novos combros de areia gera um vento,
Que outro vento derruba, nivelando-os.

Muros reticulares
De calcinada argila,
Que arrendadas abóbadas sustentam,
De grinaldas de amoras adornados,
Em vão querem mostrar primeva pompa.
Onde outrora tangeu Horácio a lira,
E Tibulo chorou ternos amores,
Mortais serpes se enroscam,
Aguardando findar pastor incauto,
Que a fadiga do sol chama ao repouso.

Sobre o alto das colinas,
Que em torno ao Anio vecejam,
Vis choupanas, restos sacros,
Inda glória mal lampejam.


Teus acantos de Corinto,
E o teu luxo oriental,
Jazem na terra, e aos insetos
Servem hoje de pousal.

Mas, oh Deus, se a vista volvo
Ao Catilo, e suas águas,
Lá no templo da Sibila
Vão findar as minhas mágoas.

Supina Tibur, espraia
No horizonte larga vista,
Vê como geme na terra
A Rainha da conquista.

Como tu, mudei de aspecto;
Já me viste rico, ufano,
Quando junto ao meu amigo
Te saudei lá do Lucano.

Onde vás, Peregrino estudioso?
Em que albergue feliz pedes pousada?
Acaso sobre um túmulo deserto

Entre rotos sofitos,
Na cítara brasília merencório
Teus suspiros a Deus grato sublimas?
E baixando ao amigo, também sentes
No ádito do peito,
Como ele, trespassar-te agra saudade,
Que fere o coração, e ilude a mente?
Se a mansão de Petrarca,
Nas Colinas Euganeas, visitares,
No marmóreo portal grava estas linhas:
"Se junto, ou longe
"Da Laura diva
"A lira altiva
"Tangeste sempre:
"Qual tu, o amigo
"Saudoso agora,
"De mim se lembra,
"E por mim chora."

Tivoli, maio de 1835

ARAUJO PORTO-ALEGRE.