Desde que nos honrou com a sua presença o general Roca, e o seu chefe de Polícia teve ocasião de cavaquear pessoalmente com o nosso, entrou a se desenvolver nas autoridades fluminenses o zelo de uma indignação apostolar contra certas pústulas morais. Corre desde então que o contacto argentino influíra na administração brasileira o propósito santo de exterminar o jogo, e obrigar a prostituição, amurilhada nos seus covis, à vida subterrânea das toupeiras.

Não há medidas, com que se meça o merecimento de tão santas intenções. Não queiramos saber se as penas que esfuziam contra o cancro meretrício, não convivem com ele às escâncaras nos jardins e cervejarias dos alcázares, nem se essas estridentes marteladas no vício da batota não caem muitas vezes sobre os dedos do malhador. Infinita simpatia nos inspira, deveras, a virtuosa atitude presidencial, quando consideramos que, na esfera mais contígua ao chefe do estado, não encontrará S. Ex.ª, entre as mais altas sumidades políticas, muitas criaturas estremes de amor pela orelha da sota, e refletimos na queda habitual do mundo parlamentar pelo das beldades complacentes. A cruzada solitária do Sr. Campos Sales contra a impureza universal revela no estadista uma coragem de capuchinho, que nós lhe não suspeitávamos.

Mas o nosso entusiasmo não pode ir muito longe. E diremos por quê. Não há muito que o presidente da República dava as honras da sua sege ao diretor de um banco inglês, apontado como o chefe da especulação no jogo da alta. Agora, para salvar o Banco da República, vemos designado pelo ministro da Fazenda o gerente do Banco Alemão, notoriamente assinalado como o cabeça da especulação no jogo da baixa. Ora não podemos compreender que quem duas vezes, em casos estupendos, coroa a jogatina com honrarias excepcionais, seriamente se possa arvorar em inimigo intransigente do jogo. Tampouco se atinaria com a lógica da caça policial às rameiras, numa época em que os tipos da vocação se guindaram até às cédulas do Tesoiro e à influência administrativa. Ficamos assim reduzidos à explicação popular de que o famoso saneamento moral não passa de uma cortesia, por imitação, aos reparos do Sr. Besale sobre a polícia da tavolagem e do comércio sexual no Rio de Janeiro.

Mas, a quererem catar, ao menos no simianismo dessa orientação, aparência de seriedade, cumpre não estabelecer regimens diferenciais da maneira de tratar a prostituição. Dificultando a mais humilde e inevitável das suas manifestações, não se tem o direito de ajudá-la na mais odiosa e insolente das suas classes, aquela com que em pública mancebia vive entre nós a política oficial. O apedido, com a sua mais alta expressão nos entrelinhados administrativos, é o bairro do lenocínio na cosmópolis da imprensa.

A secção paga da anonímia, explorada comercialmente pelas empresas jornalísticas em proveito seu e satisfação a toda a espécie de fregueses, transformou a imprensa, no Brasil, em vazadoiro das fezes de uma sociedade alimentada nos baixos costumes do cativeiro. O mexerico, a injúria, o ultraje, a detração têm, nos usos dessa praxe, a sua tarifa e a sua irresponsabilidade. A todo aquele, que necessita de baldoar um nome são, liquidar uma reputação limpa, arrastar no lodo um caráter, pôr em voga uma anedota infame, torturar uma alma sensível, abastardar uma ação nobre, nodoar uma família pura, infelicitar uma casa venturosa, difundir, em suma, a intriga, a mentira, a perversidade, a desonra ali se depara, a tanto por linha, com a certeza de impunidade absoluta, o despejadoiro fácil, tranqüilo, universal da improbidade e do escândalo. Essa venalidade da consciência, pior que a do corpo nas messalinas, exerce triplicemente as suas devastações, no comprador da ignomínia, no seu vendedor e no meio humano, em cujos hábitos se enraizou: deprava a moralidade particular, cancera a moralidade profissional, e sifiliza a moralidade popular.

Na água estagnada dos canais entupidos, cujos resíduos imundos fazem de Bukhara a Veneza da fedentina, adquirem todos os seus habitantes uma filária, a rechta, que se lhes mete por sob a epiderme. Do mendigo ao emir ninguém ali se furta à invasão do abominável parasita; e os viajantes nos descrevem a gente da localidade ocupada, a cada esquina, com a operação de extrair cautelosamente o verme repulsivo, que, mal-extirpado, se renova dos seus restos debaixo da pele humana. Do mesmo modo como aquele povo miserável se vê condenado a beber nas águas encharcadas e lodosas da cidade santa a filária fatal, de que ninguém escapa, desde o indigente até ao rei, assim os germens vivos da infamação, cultivados dia a dia no lamaçal do anonimato, nos lameiros das publicações pagas, bebedoiro geral, onde a curiosidade pública se desaltera todas as manhãs, invade, entre nós, as reputações, humildes ou célebres, extraordinárias ou vulgares, obscuras ou resplandecentes, fazendo moralmente de cada brasileiro uma representação do muçulmano, que a sordidez oriental agacha, nas ruas da capital tártara, a extirpar o sevandija odioso, que se lhe aninhou, se lhe reproduz e se lhe perpetua nos membros infeccio­nados.

A difamação pela publicidade irresponsável dos apedidos, no jornalismo brasileiro, figura o alcoice agregado à casa de família. O contraste entre as virtudes indefectíveis da redação e a insensibilidade moral da empresa nas folhas mais graves faz da honestidade, na imprensa, entre nós, um capítulo singular das extravagâncias humanas. Nas colunas reservadas à ação do jornalista, inalterável seriedade; venda franca da consciência, nas colunas de aluguer. Figura-nos um estabelecimento, em cujo sobrado se pratique o culto do lar, enquanto no pavimento inferior se negocia a crápula em benefício dos donos da casa, cônjuges exemplares, excelentes pais, cidadãos austeros. É a Vênus vaga entretendo a hipocrisia da castidade da matrona: a marafona sustentando a vestal.

Contra essa gafeira do nosso periodismo seria mister uma reação nacional, como a que lutou contra a escravidão, e a extinguiu. A repressão do anonimato mercenário não seria uma lei contra a imprensa, mas uma lei a seu favor; não restringiria a liberdade da palavra: coarctaria a liberdade do pasquim; não diminuiria a independência do jornalismo: emancipá-lo-ia do predomínio do balcão. Mas a política nacional, o governismo de todas as situações perderia uma das pernas, se lhe tirassem esse recurso. Inquira da matéria, no Prata, o Sr. Campos Sales, e veja se nos torna de lá resolvido pelo exemplo a não admitir relações do Governo com a Saburra das michelas de Pasquino.