V
O sol fôra inclemente em todo esse dia de julho.
Anoitecia, e, apezar d’isso, nem a mais leve viração se levantára consoladora a arrepiar, n’um trémulo de caricia, a folhagem das arvores, que tinham o banal aspecto de plantas de folha pintada a que o tempo e a poeira debotára a côr.
Na paysagem de serras e fraguedos, que o homem conseguiu cultivar e esplanar em sucalcos successivos, os restolhos punham manchas de oiro no verde sombrio de agreste vegetação; e o céo, d’um azul que o proprio calôr velára, tornára-se vermelho sanguineo, agora, que o sol desfallecia no poente.
Os jornaleiros recolhiam silenciosos aos casebres, sem riso ou cantiga que alliviasse penas, mortificados pela trabalheira rude das ceifas e malhas sob a rudeza d’um sol impiedoso. Nem as raparigas na fonte gargalhavam, como de costume, emquanto a agua, correndo muito lenta e diminuida, lhes enchia os cantaros de barro.
Só muito ao longe, pelas quebradas da serra, resoavam os chocalhos dos rebanhos indo para o pasto e a flauta do pastor a guiá-los até á madrugada, — que depois a calma aperta e os pobres animaes, de agoniados, nem podem comer. Mais longe ainda, o chiar rangente dos carros de bois, como um longo gemido angustioso... Dir-se-hia que todas as coisas soffriam do calor asphyxiante e cahiam n’uma invencivel preguiça de viver.
É pequeno o verão nas montanhas — alguns dias de julho e agosto, quando muito os primeiros de setembro — mas esses são pezados, infernalmente longos e ardentes, sem nenhuma compensação e consolo de leve aragem pelas tardinhas. Em casa abafa-se, não ha sombra que resista á subida do thermometro quando o mercurio chega á linha do Senegal, n’um escarneo a paizes temperados. Na rua, noite alta mesmo, não se sente nenhum allivio; da terra sóbe uma baforada quente de fornalha, que afflige.
Abafa-se... mas é moda ir-se em julho para lá, não obstante ser infinitamente mais agradavel um canto de praia — onde o mar põe levezas de ar salino e um frescôr de permanente banho de espumas, as gaivotas veem á babugem da agua gritar as sonoras alegrias das coisas simples e humanas, e os olhos navegam longe, com a amplidão suggestiva das azas e das velas.
E passam na cidade, — n’aquelle afadigamento de distracções e afazeres, que chegam a ser monotonos á força de repetidos — os que obedecem á moda por preguiça intellectual de pensar e querer, os dias criadores de primavera — quando os caminhos lá das serras se alcatifam de musgos velludosos, as arvores se cobrem de flôres e verduras tenras, e as nascentes correm mais abundantes e limpidas da rocha viva; quando as andorinhas se acasalam e toda a natureza canta o grande hymno magnifico da vida é que a montanha se torna acolhedora e falla ás almas, como uma bôa e amorosa mãe.
Mas... não está decretado pelo habito dos que dão a nota de elegancia em todos os actos da vida ainda os mais intimos e graves, e por isso a villa estava radiante com os seus hospedes de verão.
João de Mello atravessou melancholico e vagaroso o largo da Fonte e dirigiu-se á botica velha, onde o sr. Domingos José da Silva se debatia contra o calor e distillava suor em mangas de camisa, como se tivesse sobre as costas pezada armadura medieva. Soprava em bochechas de affrontado, limpava a cara ao tabaqueiro de ramagens, escancarava os braços como a arejálos, e cahia esfalfado n’uma cadeira para se levantar incontinente como se tivesse por assento um brazeiro inquisitorial em vez de innocente palhinha.
— «Oh meu querido sr. João de Mello — berrou descompassado, mal viu assomar á porta a figura melancholica do rapaz — quanto folgo, quanto folgo de o ver! Cuidámos que não queria nada cô a gente.
Abraçou-o expansivo e correu dentro a chamar o filho para accender as luzes. Estava radiante com a visita do feliz herdeiro de quinhentos contos, a melhor casa da comarca em dinheirinho de contado e bôas terras livres, sem fallar nos fóros que se recebiam sem conto pelo S. Miguel de cada anno. Era bôa, talvez mais extensa em propriedades, a casa do Visconde, mas a politica como as demandas e o jogo onde entram fazem largo rombo... Estas e outras considerações expunha elle á mana Joaquina, sentados á fresca, sob a parreira do quintal.
— «Muito bôas noites, sr. Domingos; eu venho... — tentou dizer o João.
— «Espere, espere que já o attendo. Deixe-me cá chamar a mana qu’ella está morta por o ver! Inda honte tinhamos fallado, ora a graça! Ó Jêquina!... — gritou para cima, para o primeiro andar, e voltou logo a reprehender o filho porque a torcida mal cortada enegrecia a manga do candieiro de latão.
— «Nós cá sabiamos que chegou na segunda feira. Não se pode fazer moeda falsa, tudo se cá sabe... — Estrondosa gargalhada completava a phrase. E depois, sem interrupção — disseram que ninguem lhe punha a vista em cima, qu’anda assim como amalucado, macambuzio... Então que vem a ser, soidades, soidades, hein?!...
— «Olha o sr. Joãosinho, o meu Janequinho! — entrou dizendo e arrastando a sua perna trôpega a sr.ᵃ Joaquina Ritta — uma sua criada, para os servir e louvar a Deus Nosso Senhor, continuava ella a dizer para se apresentar.
— «Vê lá que home ahi tens, a fazer a gente velha! — dizia emphatico o boticario.
— «Pois está um homezarrão, está! Quem o conheceu e quem o vê! Faz uma pessôa velha, nem já se lembra da gente, nem das tardes que passava a cavallar no quintal com os rapazes?! Sempre era um diabrete! Mais traquinas inda não vi! A mana é que não, sempre foi um peringalhinho que não prestava para nada. O que ella queria era sentar-se ao pé de mim a costurar ou a ler aquelle meu livro da Felor de Maria, do Renhónhó e da Cúrúja. Não se lembra, ás vezes ao serão ao pé da brazeira? Um botãosinho d’aquelles tinha uma pausa na leitura caté a gente chorava com as fallas do principe Rodolpho.
Os Mysterios de Paris, com suas gravuras baratas, e a cartilha do Mestre Ignacio eram toda a bibliotheca da sr.ᵃ Joaquina Ritta. A muita leitura de romances e casos sentimentaes, parece que embota o coração, pois a bôa mulher possuia sómente aquella enredada historia que relia amiudadas vezes com a alma confrangida e os olhos distillando amargo pranto pela desgraçada Flor de Maria. Alli havia conhecimentos e tirava maximas para todos os casos da vida.
Já disse, não sei quem, que um só livro bem meditado é thezoiro inexgotavel.
— «Lembro me de tudo, lembro-me!... E com saudades, sr.ᵃ Joaquina, que só eu sei!... e os olhos de João velaram se de lagrimas.
— «Não falles n’essas coisas — reprehendeu o Domingos. Isto de mulheres estão sempre a dar co’a lingua nos dentes.
— «Tens razão, tens, mano. É que sempre foi uma disgracia!... Nem me vai d’aqui, até se me dá um nó na greganta quando penso n’aquella menina!... Mas tem razão, não fallêmos em coisas tristes. Ora diga-me, menino João, a mãesinha como vae, bôa, sim?
— «Vae indo, bôa não.
— «Dês que la fui dar pesames que não a tornei a vêr. Nem tornou a sahir, aquillo teve um sentimento! Tamem, não houve na terra grande nem pequeno que não chorasse.
— «Lá tornas á mesma! As mulheres sempre são!...
— «É verdade, tem razão, esta minha cabeça! Olhe cá, menino, então gosta de lá estar pr’os estrangeiros?
— «Muito. São melhores terras do que as nossas, e a gente é mais bem educada. Olhe que não ha por lá muito quem não saiba ler nem escrever, como cá.
— «O quê? Mesmo os travalhadores de enxada e as criadas de servir?
— «Mesmo esses. As criadas então, não ha nenhuma que não leia e escreva menos mal.
— «Ai, não sei que me lembra. Criadas tão doutoras como as amas... Não hadem prestar, não ha nada como as nossas terrinhas e cá a nossa gente.
— «Calla-te ahi! Aquillo nem é para acomparar! As mulheres não percebem nada cá no mundo. Em as tirando do canto da casa já nada lhes presta — sentenciou o boticario.
João, no meio d’aquelle turbilhão de palavras que lhe cahiam em cima como graniso, conseguiu dizer:
— «Isto hoje não é visita.
— «Ai não?! Ainda o diz, olha que ingrato!
— «Não era hoje, mas hade ser breve, sr.ᵃ Joaquina. Heide ir lá cima para o quintal e conversaremos como d’antes.
— «Ah! Cuidei que nos esquecia...
— «Não, eu vinha aqui á pharmacia para o sr. Domingos me fazer duas hostias de antipyrina?
— «Anti, anti, quê?!... — abria a bocca e os olhos de espanto, o boticario.
— «Antipyrina. Não tem cá? É remedio para a dôr de cabeça; não tem, não conhece? — volveu João impacientado.
— «Talvez tenha, talvez. Mas é que esses remedios estrambolicos, quem os arranja é o sr. dr. Ramalho. Como elle é que os receita!... Eu cá não me criei com esses venenos.
— «São venenos, são, mas a gente já se não sabe curar com outra coisa e então é melhor o sr. Domingos arranjar um praticante.
— «Tem razão, já pensámos n’isso, por isso é que o meu Dóminguinhos anda nos estudios.
— «Ai, é tão esperto! — acudiu a sr.ᵃ Joaquina — fez inzâme oitro dia.
— «Ficou bem? — perguntou João por delicadeza, sem nenhum interesse.
O velho respondeu logo:
— «Olhe que não sei, menino João. Elle mandou-me dizer que sim, mas cá o mê Antoino disse me logo «mê pae não infinte em estudantes, olhe que são todos, com perdão de Vossa Senhoria, uns tratantes!» E vae eu escrevi ao meu cômrrespondente e disse-lhe assim: «eu, Domingos José da Silva, phramaceutico matriculado no largo da Fonte, quero saber se meu filho Domingos José da Silva Juniór fez os inzâmes que disse e se ficou approvado ou reprovado.» E o cômrrespondente mandou dizer «que o estudo que fôra bô mas que a respeito de inzâmes se lhe tapou a falla nas góllas que não disse nem uma nem duas.
João olhou-o estupefacto, apezar de ha muito conhecer as bernardices do boticario, não sabendo verdadeiramente se lhe devia dar os parabens se os sentimentos, perdido de riso como estava. Livrou-o de maior maçada e do compromettimento d’uma resposta, o dr. Ramalho que entrou na occasião.
— «Inda bem que chegou o senhor doutor, — disse o Domingos esfregando as mãos e empurrando a irmã para dentro, sem a deixar despedir, ao que ella oppunha séria resistencia.
— «Está alguem doente lá em casa? — perguntou o Ramalho, cuidadoso.
— «Não!... Ou sim... doentes estamos todos.
— «E bem doentes... incuravelmente doentes, meu pobre amigo.
— Apertaram-se as mãos affectuosamente, e o medico continuou:
— «Mas essa doença não se cura com remedio de botica. O que vinhas buscar?
— «Umas hostias de antipyrina. Este calor endoidece-me.
— «Ah sim... O Domingos não sabia dar-te esses remedios novos.
Sorrindo tirou as luvas, que poz com o chapéo e a bengala sobre uma cadeira, e foi elle mesmo escolher, pezar e metter nas capsulas o medicamento desejado, que entregou ao João.
— «Vaes já para casa?
— «Vou, não me interessa nada andar cá por fóra; detesto tudo isto, aborrece-me.
— «Acompanho-te; hontem não pude lá ir porque tive uma visita longe, amanhã vem tua prima, naturalmente tambem de lá vão á estação, e é provavel que não tenha tempo de ir até lá antes da noite...
Despediram se do Domingos e sahiram conversando.
— «Ainda bem que vae! Acho a minha mãe tão mudada, tão triste!...
— «Não admira. A dôr de teu pae foi mais violenta; quando cheguei tinha tua irmã acabado de expirar, vi-o perdido, convenci me que endoidecia. Depois resignou se um pouco... Tua mãe não! Não perdeu aquella serenidade mortificada, que não ha meio de consolar, só sendo tu que o possas fazer.
— «Pobre mãe! Eu consolá-la não poderei, sabe? Quando penso que a minha irmã, a Pillar, aquelle encanto de graça e intelligencia é já a esta hora um punhado de ossos ou, peor, uma horrivel podridão que nos causaria nauseas a nós mesmos que a adorámos em vida e que a não podemos esquecer em morta!... É horrivel, é para endoidecer, doutor!
— «Ó João, vê lá, sê rasoavel. Um desespero d’esses não é para uma intelligencia culta como a tua, para uma razão clara.
— «Não ha intelligencia para o soffrimento, meu amigo! Eu sei que ella já não existe, que da sua pessôa que tanto nos encantou já nada vive senão a lembrança na nossa alma; mas vejo-a em toda a parte tal qual me dizem que ella viveu nos ultimos tempos; oiço-lhe a voz arquejante, que chamou por mim; segue-me, vive commigo, porque a tenho dentro do coração... Consolar minha mãe, como o poderei fazer, se ella é mais feliz do que eu porque espera uma outra vida melhor em que tornará a ver a filha querida... e eu, e nós?... De que temos a certeza? De que o corpo é materia e a materia se transforma... E que mais? E a parte superior do nosso ser, aquillo que nos faz amar e querer, que nós amâmos nos outros porque é a parte mais essencial do nosso ser... onde está? Em que se torna? Tanto saber para se chegar á triste convicção de que a sciencia que não traz comsigo uma porção de indifferença a couraçar a alma, é um martyrio superior á intelligencia humana. Felizes os ignorantes e os ingenuos...
— «Oh! Estás n’uma excitação doentia. Não te levo assim para casa. Entremos aqui no meu escriptorio e vamos conversar um pouco com mais tranquilidade.
João deixou-se conduzir passivamente, sentou-se junto á meza, emquanto o doutor accendia a luz e se ia sentar do outro lado, no logar onde costumava trabalhar.
— «Mas o que eu não posso comprehender — disse o João bruscamente d’ahi a momentos — é o motivo porque me não chamaram logo que ella adoeceu. Foi uma barbaridade, foi até um crime. Pois será justo que lhe recebessem o ultimo suspiro, precisamente aquelles que foram, talvez, a causa da sua morte?!...
— «Ó meu amigo, pelo amor de Deus!...
— «Não me diga que não — e levantou-se agitado, n’um passear febril, — houve qualquer coisa de anormal, isso houve, tenho a certeza.
— «Parece impossivel! Então tu, João, um rapaz intelligente e culto, estás fallando pela bocca da Engracia?!...
— «E o doutor jura-me pela sua honra de que está convencido que a pobre velha desvaira? — dizia apertando-lhe o braço com força. — Diga, jura, jura?... Diga, tire-me d’esta duvida, que é medonha.
— «Tem sangue frio, homem, não sejas criança!...
— «Ah, não jura?!... A duvida tambem lhe entrou no espirito, confesse.
— «Anda cá, João, vamos fallar com socego, como homens. Primeiro, factos: o que sabes, o que desconfias?
— «Que a Pillar morreu victima d’um crime ou, pelo menos, de desgosto... que quasi o fosse.
— «Mas que crime, que desgosto?
— «Não sei! E isso é que eu saberia se aqui estivesse. Lembra-se bem de todas as particularidades com que se apresentou a pleuresia, que foi o principio da doença? O doutor esteve lá a passar a noite, achou-a como sempre alegre e bem disposta. Vão deitar-se, e de manhã estava cheia de febre, com um delirio terrivel... A causa?
— «As doenças nem sempre se apresentam da mesma fórma; podia bem ser que ella estivesse já atacada, sem nenhuma manifestação externa.
— «Pode ser... Tudo pode ser n’essa infame sciencia que não nos dá nunca uma certeza senão a da morte.
— «Não ha mais horrorosa profissão, você tem razão — respondeu sorrindo com bonhomia o medico.
— «Pois sim, mas supponhâmos por um instante que estava bôa como parecia, até aos seus olhos perspicazes de profissional. O que temos? Uma pessôa que se deita sã e accorda com uma pleuresia dupla. Estou fallando com serenidade, bem vê. É crivel que a apanhasse mettida na cama?
— «Não é natural que chegasse á janella, que apanhasse uma corrente de ar, que se descobrisse!?...
— «É possivel que a Candida dormindo no mesmo quarto não sentisse nada?
— «Gente nova, sem cuidados, tem o somno pezado.
— «Não é isso que ella diz. E depois, o que me diz você a essa pulseira da Candida que a Engracia encontrou no caramanchão na manhã seguinte? Já não quero dar ouvidos á opinião da velha, que diz tê-la visto córar como lacre quando lh’a entregou.
— «Ora, coisas da Engracia; nada mais natural do que a rapariga tê-la perdido de tarde...
— «Pode ser... Pois se eu tivesse a certeza! Mas o que o doutor não sabe, é que o Manuel lavrador, que sahiu de noite para amanhecer na matta do rio onde ia buscar lenha, disse ter visto saltar a grade do jardim um homem com um varino. Sabe que o Emygdio trouxe um de Coimbra e usa-o muitas vezes, principalmente á noite. E se fosse ratoneiro, sabe que a Favorita não é para brincadeiras...
— «Tudo isso são supposições...
— «E o odio que manifestou nos ultimos tempos ao Emygdio e á Candida, a minha irmãsinha que os amava tanto?!...
— «Ora! As doenças trazem por vezes taes desequilibrios, uns pensamentos tão desvairados...
— «Sim... e tambem uma lucidez mais aguda... a minha irmã estaria louca? Não o creio, nem o doutor tambem. Alli houve qualquer coisa de anormal, e não a conhecer é o que me tortura.
— «Eu nem digo que creio nem que descreio. Não sei nada.
— «Mas heide eu sabê-lo. Os acontecimentos seguem sempre uma logica fatal, que não illudem por muito tempo um espirito investigador. Diga-me como as coisas se passaram tal qual as viu e observou que eu preciso juntar ás minhas as suas informações. Recusa fazê-lo?
— «Não, pelo contrario, julgo que é até o meu dever, visto que no teu espirito se levanta uma duvida. Fá-lo-ia com um indifferente, quanto mais comtigo que estimo como irmão; tratando-se sobre tudo da morte da Pillar, que é uma saudade vivissima para o meu coração.
O medico concentrou-se um instante e depois começou pausadamente, como quem faz um relatorio, sob os olhares ansiosos do rapaz.
— «Quando cheguei de Lisboa, chamado por um telegramma do Emygdio, fui directamente a tua casa. A Candida sahiu do quarto aos gritos, apavorada, como louca. Eu nem reparei que teu pae desvairado se debatia nos braços dos criados que lhe não deixavam despedaçar a cabeça pelas paredes, e que tua mãe cahira como fulminada com os sentidos perdidos. Não vi nada! Corri ao quarto na vaga e disparatada esperança de a salvar ainda...
— «E a desditosa criança estava já morta?!...
— «Ouve. A Pillar fallecêra n’esse instante; ainda não estava completamente fria. O Vilhegas, junto d’ella, parecia idiotisado pelo soffrimento...
— «Ou pelo remorso?!...
— «Não sei; já te disse que não avento opiniões, conto-te o que vi. Tentava fechar-lhe os olhos, n’uma preoccupação de doido, que me impressionou bastante...
— «D’ahi para deante já eu sei, nem tão poucas vezes m’o tem contado a pobre Engracia. Foi ella quem vestiu a morta; nem quiz ninguem para a ajudar, que a sua menina só a ella a queria...
O João escondeu a cabeça nos braços cruzados sobre a meza, n’um soluçar de angustia.
— «Então que tolice é essa, João?!... — ralhou amigavelmente o Ramalho.
— «Tem razão, isto não é proprio d’um homem... Continúe, mas deixe-me antes agradecer-lhe os cuidados e carinhos que n’essa occasião dispensou aos meus pobres paes.
— «Não falles n’isso, deixa-me continuar. Quando vi que não havia alli nada a fazer, corri para junto dos que mais soffriam. Nunca vi uma dôr egual, e tenho assistido a bastantes!... Cheguei a pensar em mandar-te chamar, mas, perdôa se pensei mal, vi-os tão sentidos com o desgosto que julguei perigoso todo e qualquer abalo. Ver repentinamente o filho que ficava quando a outra lhe fugia para sempre, era exacerbar a dôr. A Natureza tem em si mesma o unico calmante para as grandes maguas, o tempo. A vida, meu caro, tem-me ensinado estas coisas. Quando o soffrimento é sincero, a propria distracção o irrita e faz maior.
— «Ah, mas o que eu soffri sósinho quando o soube! O que eu curti só, longe dos meus, sem um amigo que bastante o fosse para soffrer commigo!... Sem uma pessôa que ao menos me lamentasse na linguagem que o meu coração melhor podia entender n’uma situação d’aquellas, a minha! Ah meu amigo, que eu não sei como não enlouqueci!...
— «Pois sim, lá soffrias o mesmo, ou talvez mais, mas não tinhas a brutalidade d’estas scenas mortuarias que forçam a dôr até á revolta. Elles cá ir-se-hiam habituando... que a resignação é habito, filho.
— «Sim, convenço-me que fez bem, mas o que me tresvaría é a desconfiança de que elles a matassem!
— «Mas com que fim? Não era o interesse do Emygdio casar com tua irmã?
— «Seria o d’elle, mas não era o da Candida.
— «Hum!... — rosnou o doutor estendendo os beiços incredulo. — Convences-te de que tua prima quizesse o Vilhegas emquanto te visse solteiro?
— «O que podia ella esperar de mim, que nunca a cortejei?
— «As mulheres, quando são bellas e ambiciosas como a Candida, não se prendem com essas frioleiras...
— «Não sei, digo eu agora. O que sei é que a Engracia os surprehendeu por mais d’uma vez conversando em voz baixa pelos cantos.
— «Lá voltas com os ditos da Engracia...
— «A Pillar aborreceu-os a ambos. Elle parece evitar-me, acanhado... A Candida ficou despeitada, parece, pela minha sahida para a Belgica sem lhe declarar amôr... Isto, meu amigo, são factos. Lá em casa não se pode fallar em tal, que para meus paes a Candida é um anjo. Eu é que desconfio muito d’aquella bondade sonsa. Desde pequena que me persegue, e, confesso, nunca mulher nenhuma me repugnou tanto como ella, sendo aliás bonita.
— «Formosissima, dize, que não lhe fazes favor.
— «Não acho, não a tolero. Ha n’aquella passividade, que quer fazer passar por bondade, uma tão grande vaidade e não sei o quê de falso que me irritou e affastou sempre.
Levantou-se inquieto e começou a passear pelo escriptorio, murmurando palavras, como se estivesse só. De repente estacou em frente do medico:
— «Só queria saber a verdade! Mas como?! Ah, que se elles se namoram, se casam!... Mato-os como cães damnados, percebe?
— «Ora deixa-te d’isso, casam lá!...
— «Juro-lhe que os matava por minhas mãos. É a unica prova que aguardo. Até já pensei em namorar a Candida para descobrir alguma coisa, mas quando lhe fallo... estou como a Engracia, parece que vejo a sombra da Pillar a prohibir-mo!... Se ella era tão pura, como poderia querer uma mentira?!...
— «Não te sabia espiritista...
— «Não sou, não era! Que eu já nem sei o que sou! Não posso com a ideia de que minha irmã não é mais do que uma pouca de materia que se transforma estupidamente, immundamente, na terra!...