VIII.

 

Marianna, decorridos dias, foi a Vizeu recolher a herança paterna. Em proporção com o seu nascimento bem dotada a deixára o laborioso ferrador. Afóra os campos, cujo rendimento bastaria á sustentação d’ella, Marianna levantou a lage conhecida da lareira, e achou os quatrocentos mil réis com que João da Cruz contava para alimentar as regalias da sua decrepitude inerte. Vendeu Marianna as terras, e deixou a casa a sua tia, que nascêra n’ella, e onde seu pae casára.

Liquidada a herança tornou para o Porto, e depositou o seu cabedal nas mãos de Simão Botelho, dizendo que receava ser roubada na casinha em que vivia, fronteira á Relação, na rua de S. Bento.

— Porque vendeu as suas terras, Marianna? — perguntou o prêso.

— Vendi-as, porque não faço tenção de lá voltar.

— Não faz?... Para onde ha de ir Marianna, indo eu degredado? Fica no Porto?

— Não, senhor, não fico — balbuciou ella como admirada d’esta pergunta, á qual o seu coração julgava ter respondido de muito.

— Pois então!

— Vou para o degredo, se v. s.^a me quizer na sua companhia.

Fingindo-se surprendido, Simão seria ridiculo aos seus proprios olhos.

— Esperava essa resposta, Marianna, e sabia que me não dava outra. Mas sabe o que é o degredo, minha amiga?

— Tenho ouvido dizer muitas vezes o que é, senhor Simão... É uma terra mais quente que a nossa; mas tambem lá ha pão, e vive-se...

— E morre-se abrazado ao sol doentio d’aquelle ceu, morre-se de saudades da patria, morre-se muitas vezes dos maus tratos dos governadores das galés, que tem um condemnado na conta de féra.

— Não ha de ser tanto assim. Eu tenho perguntado muito por isso á mulher d’um prêso que cumpriu dez annos de sentença na India, e viveu muito bem em uma terra chamada Solor, onde teve uma loja; e, se não fossem as saudades, diz ella que não vinha, porque lhe corria melhor por lá a vida que por cá. Eu, se fôr por vontade do senhor Simão, vou pôr uma lojinha tambem. Verá como eu amenho a vida. Affeita ao calor estou eu; v. s.^a não está; mas não ha de ter precisão, se Deus quizer, de andar ao tempo.

— E supponha, Marianna, que eu morro apenas chegar ao degredo?

— Não fallemos n’isso, senhor Simão...

— Fallemos, minha amiga, porque eu hei de sentir á hora da morte a pesar-me na alma a responsabilidade do seu destino... Se eu morrer?

— Se o senhor morrer, eu saberei morrer tambem.

— Ninguem morre quando quer, Marianna...

— Oh! se morre!... e vive tambem quando quer... Não m’o disse já a senhora D. Thereza?

— Que lhe disse ella?

— Que estava a passar quando v. s.^a chegou ao Porto, e que a sua chegada lhe dera vida. Pois ha muita gente assim, senhor Simão... E mais a fidalga é fraquinha, e eu sou mulher do campo, vezada a todos os trabalhos; e, se fosse preciso metter uma lanceta no braço e deixar correr o sangue até morrer, fazia-o como quem o diz.

— Oiça-me, Marianna, que espera de mim?

— Que hei de eu esperar!... Porque me diz isso o senhor Simão?

— Os sacrificios que Marianna tem feito e quer fazer por mim só podiam ter uma paga, embora m’os não faça esperando recompensa. Abre-me o seu coração, Marianna?

— Que quer que eu lhe diga?

— Conhece a minha vida tão bem como eu, não é verdade?

— Conheço, e que tem isso?

— Sabe que eu estou ligado pela vida e pela morte áquella desgraçada senhora?

— E d’ahi? quem lhe diz menos d’isso?!

— Os sentimentos do coração só os posso agradecer com amizade.

— E eu já lhe pedi mais alguma coisa, senhor Simão?!

— Nada me pediu, Marianna; mas obriga-me tanto, que me faz mais infeliz o pêso da obrigação.

Marianna não respondeu, chorou.

— E porque chora? — tornou Simão carinhosamente.

— Isso é ingratidão.... e eu não mereço que me diga que o faço infeliz.

— Não me comprehendeu... Sou infeliz por não poder fazêl-a minha mulher. Eu queria que Marianna podésse dizer: «Sacrifiquei-me por meu marido; no dia em que o vi ferido em casa de meu pae, velei as noites ao seu lado; quando a desgraça o encerrou entre ferros, dei-lhe o pão, que nem seus ricos paes lhe davam; quando o vi sentenciado á forca, endoideci; quando a luz da minha razão me tornou n’um raio de compaixão divina, corri ao segundo carcere, alimentei-o, vesti-o, e adornei-lhe as paredes nuas do seu antro; quando o desterraram, acompanhei-o, fiz-me a patria d’aquelle pobre coração, trabalhei á luz do sol homicida para elle se resguardar do clima, do trabalho, e do desamparo, que o matariam...»

O espirito de Marianna não podia altear-se á expressão do prêso; mas o coração sinil, esse adivinhava-lhe as ideias. E a pobre moça sorria e chorava a um tempo. Simão continuou:

— Tem vinte e seis annos, Marianna. Viva, que esta sua existencia não póde ser senão um supplicio occulto. Viva, que não deve dar tudo a quem lhe não póde restituir senão as lagrimas que lhe eu tenho custado. O tempo do meu desterro não póde estar longe; esperar outro melhor destino seria uma loucura. Se eu ficasse na patria, livre ou prêso, pediria a minha irmã que completasse a obra generosa da sua compaixão, esperando que eu lhe désse a ultima palavra da minha vida. Mas não vá comigo á África ou á India, que sei que voltará sósinha á pátria depois que eu fechar os olhos. Se o meu degredo fôr temporario, e a morte me guardar para maiores naufragios, voltarei á patria um dia. E preciso que Marianna aqui esteja para eu poder dizer que venho para a minha familia, que tenho aqui uma alma extremosa que me espera. Se a encontrar com marido e filhos, a sua familia será a a minha. Se a vir livre e só, irei para a companhia de minha irmã. Que me responde, Marianna?

A filha de João da Cruz, erguendo o olhos do pavimento, disse:

— Eu verei o que hei de fazer quando o senhor Simão partir para o degredo....

— Pense desde já, Marianna.

— Não tenho que pensar... A minha tenção está feita...

— Falle, minha amiga, diga qual é a sua tenção.

Marianna hesitou alguns segundos, e respondeu serenamente:

— Quando eu vir que não lhe sou precisa, acabo com a vida. Cuida que eu ponho muito em me matar? Não tenho pae, não tenho ninguem, a minha vida não faz falta a pessoa nenhuma. O senhor Simão póde viver sem mim? paciencia!... eu é que não posso...

Sosteve o complemento da ideia como quem se peja d’uma ousadia. O prêso apertou-a nos braços estremecidamente, e disse:

— Irá, irá comigo, minha irmã. Pense muito no infortunio de nós ambos d’ora em diante, que elle é commum, é um veneno que havemos de tragar unidos, e lá teremos uma sepultura de terra tão pesada como a da patria.

Desde este dia, um secreto jubilo endoidecia o coração de Marianna. Não inventemos maravilhas de abnegação. Era de mulher o coração de Marianna. Amava como a fantasia se compraz de idear o amor d’uns anjos que batem as azas de baile em baile, e apenas quedam o tempo preciso para se fazerem vêr e adorar a um reflexo de poesia apaixonada. Amava, e tinha ciumes de Thereza, não ciumes que se refrigeram na expansão ou no despeito, mas infernos surdos, que não rompiam em lavareda aos labios, porque os olhos se abriam promptos em lagrimas para apagal-a. Sonhava com as delicias do desterro, porque voz humana alguma não iria lá gemer á cabeceira do desgraçado. Se a forçassem a resignar a sua ingloria missão de irmã d’aquelle homem, resignal-a-ia, dizendo: «Ninguem o amará como eu; ninguém lhe adoçará as penas tão desinteresseiramente como o eu fiz.»

E, comtudo, nunca vacillou em aceitar da mão de Thereza ou da mendiga as cartas para Simão. A cada vinco de dôr que a leitura d’aquellas cartas sulcava na fronte do prêso, Marianna, que o espreitava disfarçada, tremia em todas as fibras do seu coração, e dizia entre si: «para que ha de aquella senhora amargurar-lhe a vida!»

E amargurava acerbamente a desditosa menina!

Resurgiram n’aquella alma esperanças, que não deviam durar além do tempo necessario para que a desillusão lhe acrisolasse o infortunio. Imaginara ella a liberdade, o perdão, o casamento, a ventura, a corôa do seu martyrio. As suas amigas matizavam-lhe a tela da fantasia, umas porque não conheciam a atroz realidade das coisas, outras porque fiavam em demasia nas orações das virtuosas do mosteiro. Se os vaticinios das prophetisas se realisassem, Simão sahiria da cadêa, Thadeu de Albuquerque morreria de velhice e de raiva, o casamento seria um acto indisputavel, e o ceu dos desgraçados principiaria n’este mundo.

Porém Simão Botelho, ao cabo de cinco mezes de carcere, já sabia o seu destino, e achára util prevenir Thereza, para não succumbir ao inevitavel golpe da separação. Bem queria elle alumiar com esperanças a perspectiva negra do degredo; mas froixos e frios eram os allivios em que não era parte a convicção nem o sentimento. Thereza não podia sequer illudir-se, porque tinha no peito um despertador que a estava acordando sempre para a hora final, embora o semblante enganasse a condolencia dos estranhos.

E então era o expandir-se em lastimas nas cartas que escrevia ao seu amigo; invocações a Deus, e sacrilegas apostrophes ao destino; branduras de paciencia e impetos de cólera contra o pae; o afferro á vida que lhe foge, e súpplicas á morte, que a não livra das torturas da alma e do corpo.

No termo de sete mezes o tribunal de segunda instancia commutou a pena ultima em dez annos de degredo para a India. Thadeu de Albuquerque acompanhou a Lisboa a appellação, e offereceu a sua casa a quem mantivesse de pé a forca de Simão Botelho. O pae do condemnado, segundo o assustador aviso que seu filho Manoel lhe dera, foi para Lisboa luctar com o dinheiro e as ponderosas influencias que Thadeu de Albuquerque grangeára na casa da supplicação e no desembargo do paço. Venceu Domingos Botelho, e instigado mais do seu capricho, que do amor paternal, alcançou do principe regente a graça de cumprir o condemnado a sua sentença na prisão de Villa Real.

Quando intimaram a Simão Botelho a decisão do recurso e a graça do regente, o prêso respondeu que não aceitava a graça; que queria a liberdade do degredo; que protestaria perante os poderes judiciarios contra um favor que não implorára, e que reputava mais atroz que a morte.

Domingos Botelho, avisado da rejeição do filho, respondeu que fizesse elle a sua vontade; mas que a sua victoria d’elle, sobre os protectores e os corrompidos pelo ouro do fidalgo de Vizeu, estava plenamente obtida.

Foi aviso ao intendente geral da policia, e o nome de Simão Botelho foi inscripto no catalogo dos degredados para a India.

IX. A verdade é algumas vezes o escolho de um romance.

Na vida real, recebemol-a como ella sáe dos encontrados acasos, ou da logica implacavel das coisas; mas, na novella, custa-nos a soffrer que o author, se inventa, não invente melhor; e, se copía, não minta por amor da arte.

Um romance, que estriba na verdade o seu merecimento, é frio, é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos, nem tira a gente, sequer uma temporada, em quanto elle nos lembra, d’este jogo de nora, cujos alcatruzes somos, uns a subir, outros a descer, movidos pela manivella do egoismo.

A verdade! se ella é feia, para que offerecêl-a em paineis ao publico!?

A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de ferro, que o prendem ao barro d’onde sah

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iu, ou pezam n’elle e o submergem no charco da culpa primitiva, para que é emergil-o, retratal-o, e dal-o á venda!?

Os reparos são de quem tem o juizo no seu logar; mas eu que perdi o meu a estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é pintal-a, como ella é, feia e repugnante.

A desgraça afervora ou quebranta o amor?

Isso é que eu submetto á decisão do leitor intelligente. Factos e não theses é que eu trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as funcções opticas do apparelho visual.

Ao cabo de dezenove mezes de carcere, Simão Botelho almejava um raio de sol, uma lufada de ar não coada por ferros, o pavimento do ceu, que o da abobada do seu cubiculo pesava-lhe sobre o peito.

Ancia de viver era a sua; não era já ancia de amar.

Seis mezes de sobresaltos diante da forca deviam distender-lhe as fibras do coração; e o coração, para o amor, quer-se forte e tenso de uma certa rijeza, que se ganha com o bom sangue, com os anceios das esperanças, e com as alegrias que o enchem e reforçam para os revezes.

Cahiu a forca pavorosa aos olhas de Simão; mas os pulsos ficaram em ferros, o pulmão ao ar mortal das cadêas, o espirito intanguido na glacial estupidez d’umas paredes salitrosas, e d’um pavimento, que resôa os derradeiros passos do ultimo padecente, e d’um tecto que filtra a morte a gottas d’agua.

O que é o coração, o coração dos dezoito annos, o coração sem remorsos, o espirito anhelante de glorias, ao cabo de dezoito mezes de estagnação da vida?

O coração é a viscera, ferida de paralysia, a primeira que fallece suffocada pelas rebelliões da alma que se identifica á natureza, e a quer, e se devora na ancia d’ella, e se estorce nas agonias da amputação, para as quaes a saudade da felicidade extincta é um cauterio em braza, e o amor que leva ao abysmo pelo caminho da sonhada felicidade, não é sequer um refrigerio.

Ao deslaçar da garganta a corda da justiça, Simão Botelho teve uma hora de desafôgo, como que sentia o patibulo lascar entre os seus braços, e então convidou o coração da mulher, que o perdêra, a assistir ás segundas nupcias da sua vida com a esperança.

Depois, a passo igual, a esperança fugia-lhe para as areias da Asia, e o coração intumecia-se de fel, o amor afogava-se n’elle, morte inevitavel, quando não ha abertura por onde a esperança entre a luzir na escuridão intima.

Esperança, para Simão Botelho, qual?

A India, a humilhação, a miseria, a indigencia.

E os anhelos d’aquella alma tinham mirado a ambições de um nome. Para a felicidade do amor invidava as forças do talento; mas, além do amor, estava a gloria, o renome, e a vã immortalidade, que só não é demencia nas grandes almas, e nos genios que se presentem viver nas gerações vindouras, e se preluzem n’ellas. Mas grinaldas de amor a escorrerem sangue dos espinhos, essas instillam veneno corrosivo no pensamento, apagam no seio a faisca das nobres affoitezas, apoucam a ideia que abrangêra mundos, e paralysam de mortal spasmo os estos do coração.

Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito mezes de carcere, com o patibulo ou o degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o melhor da alma.

A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava responder, retrahia-se recriminado pelos dictames da razão.

D’além, d’aquelle convento onde outra existencia agonisava, gementes queixas te vinham espremer fel na chaga; e tu, que não sabias, nem podias consolar, pedias palavras ao anjo da compaixão para ella, e recebias as do demonio do desespêro para ti.

Os dez annos de ferros, era que lhe quizeram minorar a pena, eram-lhe mais horrorosos que o patibulo. E aceital-o-ias, por ventura, se amasse o ceu, onde Thereza bebia o ar, que nos pulmões se lhe formava em peçonha? Creio: — antes a masmorra, onde póde ouvir-se o som abafado de uma voz amiga; antes os paroxismos de dez annos sobre as lages humidas d’uma enxovia, se, na hora extrema, a ultima faisca da paixão, ao bruxolear para morrer, nos alumia o caminho do ceu por onde o anjo do amor desditoso se levantou a dar conta de si a Deus, e a pedir a alma do que ficou.

Thereza pedira a Simão Botelho que aceitasse dez annos de cadêa, e esperasse ahi a sua redempção por ella.

«Dez annos! — dizia-lhe a inclausurada de Monchique — Em dez annos terá morrido meu pae, e eu serei tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdôe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vaes ao degredo, para sempre te perdi, Simão, porque morrerás, ou não acharás memoria de mim quando voltares.»

Como a pobre se illudia nas horas em que as debeis forças de sua vida se lhe concentravam no coração!

As ancias, a lividez, o deperecimento tinham voltado. O sangue, que creára novo, já lhe sahia em golfadas com a tosse.

Se por amor ou piedade o condemnado aceitasse os ferrolhos tres mil seiscentas e cincoenta vezes corridos sobre as suas longas noites solitarias, nem assim Thereza sosteria a pedra sepulcral que a vergava d’hora a hora.

«Não esperes nada, martyr — escrevia-lhe elle. — A lucta com a desgraça é inutil, e eu não posso já luctar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada n’este mundo. Caminhemos ao encontro da morte... Ha um segredo que só no sepulcro se sabe. Vêr-nos-hemos?

Vou. Abomino a patria, abomino a minha familia, todo este solo está aos meus olhos coberto de forcas, e quantos homens fallam a minha lingua, creio que os ouço vociferar as imprecações do carrasco. Em Portugal, nem a liberdade com a opulencia; nem já agora a realisação da esperanças que me dava o teu amor, Thereza!

Esquece-te de mim, e adormece no seio do nada. Eu quero morrer, mas não aqui. Apague-se a luz de meus olhos; mas a luz do ceu, quero-a! quero vêr o ceu no meu ultimo olhar.

Não me peças que aceite dez annos de prisão. Tu não sabes o que é a liberdade captiva dez annos! Não comprehendes a tortura dos meus vinte mezes. A voz unica que tenho ouvido é a da mulher piedosa que me esmola o pão de cada dia, e a do aguazil que veio dar-me a sarcastica boa-nova de uma graça real que me commuta o morrer instantaneo da forca pelas agonias de dez annos de carcere.

Salva-te, se pódes, Thereza. Renuncia ao prestigio d’um grande desgraçado. Se teu pae te chama, vai. Se tem de renascer para ti uma aurora de paz, vive para a felicidade d’esse dia. E senão, morre, Thereza, morre, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as fibras laceradas pela dôr, é o esquecimento que salva das injurias a memoria dos padecentes.»

As palavras unicas de Thereza, em resposta áquella carta, significativa da turvação do infeliz, foram estas: «Morrerei, Simão, morrerei. Perdôa tu ao meu destino... Perdi-te... bem sabes que sorte eu queria dar-te... e morro, porque não posso, nem poderei jámais resgatar-te. Se pódes, vive; não te peço que morras, Simão; quero que vivas para me chorares. Consolar-te-ha o meu espirito... Estou tranquilla... Vejo a aurora da paz... Adeus até ao ceu, Simão.»

Seguiram-se a esta carta muitos dias de terrível taciturnidade. Simão Botelho não respondia ás perguntas de Marianna. Dil-o-ieis arrobado nas voluptuosas angustias do seu proprio aniquilamento. A creatura, posta por Deus ao lado d’aquelles dezoito annos tão attribulados, chorava; mas as lagrimas, se Simão as via, tiravam-no da mudez socegada para impetos de afflicção, que a final o extenuavam á força de convulsões.

Decorreram seis mezes ainda.

E Thereza vivia, dizendo ás suas consternadas companheiras, que sabia ao certo o dia do seu trespasse.

Duas primaveras vira Simão Botelho pelas grades do seu carcere. A terceira já inflorava as hortas, e esverdeava as florestas do Candal.

Era em Março de 1807.

No dia 10 d’esse mez recebeu o condemnado intimação para sahir na primeira embarcação que levava ancora do Douro para a India. N’esse tempo vinham aqui os navios buscar os degredados, e recebiam em Lisboa os que tinham igual destino.

Nenhum estorvo impedia o embarque de Marianna, que se apresentou ao corregedor do crime como criada do degredado, com passagem paga por seu amo.

— E a passagem vale-a bem! — disse o galhofeiro magistrado.

Simão assistiu no encaixotar de sua bagagem, n’uma quietação terrivel, como se ignorasse o seu destino.

Quiz muitas vezes escrever a derradeira carta á moribunda Thereza, e nem signaes de lagrimas podia já enviar-lhe no papel.

— Que trevas, meu Deus! — exclamava elle, e arrancava a mãos cheias os cabellos — Dai-me lagrimas, Senhor! deixai-me chorar, ou matai-me, que este soffrimento é insupportavel!

Marianna contemplava estarrecida estes e outros lances de loucura, ou os não menos medonhos da lethargia.

— E Thereza! — bradava elle, surgindo subitamente do seu spasmo — E aquella infeliz menina, que eu matei! Não hei de vêl-a mais, nunca mais! Ninguem me levará ao degredo a noticia da sua morte! E quando a eu chamar para que me veja morrer digno d’ella, quem te dirá que eu morri, ó martyr!

X. A 17 de Março de 1807 sahiu dos carceres da Relação Simão Antonio Botelho, e embarcou no caes da Ribeira, com setenta e cinco companheiros. O filho do ex-corregedor de Vizeu, a pedido do desembargador Mourão Mosqueira, e por ordem do regedor das justiças, não ia amarrado com cordas ao braço d’algum companheiro. Desceu da cadêa ao embarque, ao lado de um meirinho, e seguido de Marianna, que vigiava os caixões da bagagem. O magistrado, fiel amigo de D. Rita Preciosa, foi a bordo da nau, e recommendou ao commandante que distinguisse o degredado Simão, consentindo-o na tolda, e sentando-o á sua mesa. Chamou Simão de parte, e deu-lhe um cartuxo de dinheiro em ouro, que sua mãe lhe enviava. Simão Botelho aceitou o dinheiro, e na presença de Mourão Mosqueira pediu ao commandante que fizesse distribuir pelos seus companheiros de degredo o dinheiro que lhe dava.

— É demente o senhor Simão?! — disse o desembargador.

— Tenho a demencia da dignidade: por amor da minha dignidade me perdi: quero agora vêr a que extremo de infortunio ella póde levar os seus amantes. A caridade só me não humilha, quando parte do coração e não do dever. Não conheço a pessoa, que me remetteu este dinheiro.

— É sua mãe — tornou Mosqueira.

— Não tenho mãe. Quer v. ex.^a remetter-lhe esta esmola rejeitada?

— Não, senhor.

— Então, senhor commandante, cumpra o que lhe peço, ou eu atiro com isto ao rio.

O commandante aceitou o dinheiro, e o desembargador sahiu de bordo como espantado da sinistra condição do moço.

— Onde é Monchique? — pergutou Simão a Marianna.

— É acolá, senhor Simão — respondeu, indicando-lhe o mosteiro, que se debruça sobre a margem do Douro, em Miragaya.

Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um vulto.

Era Thereza.

Na vespera recebêra ella o adeus de Simão, e respondêra enviando-lhe a trança dos seus cabellos.

Ao anoitecer d’aquelle dia, pediu Thereza os sacramentos, e commungou á grade do côro, onde se foi amparando á sua criada. Parte das horas da noite passou-as sentada ao pé do sanctuario de sua tia, que toda a noite orou. Algumas vezes pediu que a levassem á janella que se abria para o mar, e não sentia ali a frialdade da viração. Conversava serenamente com as freiras, e despedira-se de todas, uma a uma, indo, por seu pé, ás cellas das senhoras entrevadas, para lhes dar o beijo da despedida.

Todas cuidavam em reanimal-a, e Thereza sorria, sem responder aos piedosos artificios com que as boas almas a si mesmas queriam simular esperanças. Ao abrir da manhã, Thereza leu uma a uma as cartas de Simão Botelho. As que tinham sido escriptas nas margens do Mondego, enterneciam-na a copiosas lagrimas. Eram hymnos á felicidade prevista: eram tudo que mais formoso póde dar o coração humano, quando a poesia da paixão dá côr ao pensamento, e uma formosa e inspirativa natureza lhe empresta os seus esmaltes. Então lhe acudiam vivas reminiscencias d’aquelles dias: a sua alegria doida, as suas dôces tristezas, esperanças a desvanecerem saudades, os mudos colloquios com a irmã querida de Simão, o ceu aromatico que se lhe ampliava á aspiração sôfrega de vagos desejos, tudo, emfim, que lembra a desgraçados.

Emmassou depois as cartas, e cintou-as com fitas de sêda desenlaçadas de raminhos de flôres murchas, que Simão, dois annos antes, lhe atirára da sua janella ao quarto d’ella.

As petalas das flôres soltas quasi todas se desfizeram, e Thereza, contemplando-as, disse: «Como a minha vida...» e chorou, beijando os calices desfolhados das primeiras que recebêra.

Deu as cartas a Constança, e encarregou-a de uma ordem, a respeito d’ellas, que logo veremos cumprida.

Depois foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo reclinado sobre uma cadeira. Erguendo-se, quasi tirada pela violencia, aceitou uma chicara de caldo, e murmurou com um sorriso: «Para a viagem...»

Ás nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse ao mirante e, sentando-se em ancias mortaes, nunca mais desfitou os olhos da nau, que já estava de verga alta, esperando a leva dos degredados.

Quando viu, a dois a dois, entrarem amarrados, no tombadilho, os condemnados, Thereza teve um breve accidente, em que a já froixa claridade dos olhos se lhe apagou, e as mãos convulsas pareciam querer aferrar a luz fugitiva.

Foi então que Simão Botelho a viu.

E ao mesmo tempo atracou á nau um bote, em que vinha a pobre de Vizeu chamando Simão. Foi elle ao portaló, e estendendo o braço á mendiga, recebeu o pacotinho das suas cartas. Reconheceu elle que a primeira não era sua, pela lizura do papel; mas não a abriu.

Ouviu-se a voz de levar ancora, e largar amarras. Simão encostou-se á amurada da nau, com os olhos fitos no mirante.

Viu agitar-se um lenço, e elle respondeu com o seu áquelle aceno. Desceu a nau ao mar, e passou fronteira ao convento. Distinctamente Simão viu um rosto e uns braços suspensos das rêxas de ferro; mas não era de Thereza aquelle rosto: seria antes um cadaver que subiu da claustra ao mirante, com os ossos da cara inçados ainda das herpes da sepultura.

— É Thereza? — perguntou Simão a Marianna.

— É, senhor, é ella — disse n’um afogado gemido a generosa creatura, ouvindo o seu coração dizer-lhe que a alma do condemnado iria breve no seguimento d’aquella por quem se perdêra.

De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e avistou Simão um movimento impetuoso de alguns braços, e o desapparecimento de Thereza e do vulto de Constança, que elle entre-vira mais tarde.

A nau parou de fronte de Sobreiras. Uma nuvem no horisonte da barra, e o subito encapellamento das ondas, causára a suspensão por ordem do commandante. Em seguida, velejou da Foz uma catraia, com o piloto mór, que mandava lançar ferro, até novas ordens. Mais tarde, deferiu-se a sahida para o dia seguinte.

E, no entanto, Simão Botelho, como o cadaver embalsamado, cujos olhos reluzentes se cravam n’um ponto immoveis, lá tinha os seus immersos na interior escuridade do miradouro. Nenhum signal de vida, e as horas passaram até que o derradeiro raio do sol se apagou nas grades do mosteiro.

Ao escurecer voltou de terra o commandante, e contemplou, com os olhos embaciados de lagrimas, o desterrado, que contemplava as primeiras estrellas, eminentes ao mirante.

— Procura-a no ceu? — disse o nauta.

— Se a procuro no ceu! — repetiu machinalmente Simão.

— Sim!... no ceu deve ella estar.

— Quem, senhor?

— Thereza.

— Thereza!... Morreu?!

— Morreu, álem, no mirante, d’onde lhe estava acenando.

Simão curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente. O commandante lançou-lhe os braços e disse:

— Coragem, grande desgraçado, coragem! os homens do mar crêem em Deus! Espere que o ceu se abra para si pelas supplicas d’aquelle anjo!

Marianna estava um passo atraz de Simão, e tinha as mãos erguidas.

— Acabou-se tudo!... — murmurou Simão — Eis-me livre... para a morte... Senhor commandante — continuou elie energicamente — eu não me suicido. Póde deixar-me.

— Peço-lhe que se recolha á camara. O seu beliche está ao pé do meu.

— É obrigatorio recolher-me?

— Para v. s.^a não ha obrigações; ha rogos: peço-lh’o não mando.

— Vou, e agradeço a compaixão.

Marianna seguiu-o com aquelle olhar quebrado e mavioso do jáo, quando o poeta desembarcava, segundo a ideia apaixonada do cantor de Camões.

Encarou n’ella Simão, e disse ao commandante:

— E esta infeliz?

— Que o siga... — respondeu o compassivo homem do mar, que cria em Deus.

Simão recolheu-se ao beliche, e o commandante sentou-se em frente d’elle, e Marianna ficou no escuro da camera a chorar.

— Falle, senhor Simão! — disse o commandante — desafogue e chore.

— Chorei, senhor!

— Eu não tinha imaginado uma angustia igual á sua. A invenção humana não creou ainda um quadro tão atroz. Arripiam-se-me os cabellos, e tenho visto espectaculos horriveis na terra e no mar.

Acintemente, o commandante estava provocando Simão ao desabafo. Não respondia o degredado. Ouvia os soluços de Marianna, e tinha os olhos postos no masso das cartas, que pozera sobre uma banqueta.

O capitão proseguiu:

— Quando em Miragaya me contaram a morte d’aquella senhora, pedi a uma pessoa relacionada no convento, que me levasse a ouvir d’alguma freira a triste historia. Uma religiosa m’a contou; mas eram mais os gemidos que as palavras. Soube que ella, quando desciamos na altura do Oiro, proferira em alta voz: «Simão, adeus até á eternidade!» e cahiu nos braços d’uma criada. A criada gritou, e outras foram ao mirante, e a trouxeram meia-morta para baixo, ou morta, melhor direi, que nenhuma palavra mais lhe ouviram. Depois contaram-me o que ella penára em dois annos e nove mezes n’aquelle mosteiro. O amor que ella lhe tinha, e as mil mortes que ella ali padeceu, de cada vez que a esperança lhe morria, Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor é!

— Por pouco tempo... — disse Simão, como se o dissesse a si proprio, ou a propria imaginação o estivesse dialogando comsigo.

— Creio, creio, por pouco tempo — proseguiu o capitão; — mas se os amigos podessem salval-o, senhor, eu dar-lh’os-ia na India mais fieis que em Portugal. Prometto-lhe, sob minha palavra de honra, alcançar do visorei a sua residência em Gôa. Prometto segurar-lhe um decente principio de vida, e as commodidades que fazem a existencia tão saudavel como ella é na Asia. Não o intimide a ideia do degredo, senhor Simão. Viva, faça por vencer-se, e será feliz!

— O seu silencio, por piedade, senhor... — atalhou o degredado.

— Bem sei que é cêdo ainda para planisar futuros. Desculpe á sympathia, que me inspira, a indiscrição. Mas aceite um amigo n’esta hora atribulada.

— Aceito, e preciso d’elle.... Marianna! — chamou Simão — Venha aqui, se este cavalheiro o permitte.

Marianna entrou no quarto.

— Esta mulher tem sido a minha providencia — disse Simão — Porque ella me valeu, não senti a fome em dois annos e nove mezes de carcere. Tudo que tinha vendeu para me sustentar e vestir. Aqui vai comigo esta creatura. Seja respeitavel aos seus olhos, senhor, porque ella é tão pura como a verdade o deve ser nos labios d’um moribundo. Se eu morrer, senhor commandante, aceite o legado de a amparar com a sua caridade como se ella fosse minha irmã. Se ella quizer voltar á patria, seja o seu protector na passagem. — E estendendo-lhe a mão, disse com transporte: — Promette-me isto, senhor?

— Juro-lh’o.

O commandante, obrigado a subir ao tombadilho, deixou Simão com Marianna.

— Estou tranquillo pelo seu futuro, minha amiga.

— Eu já o estava, senhor Simão — respondeu ella.

Não se trocaram palavra por largo espaço. Simão apoiou a face sobre a mesa, e apertou com as mãos as fontes archejantes. Marianna, de pé, ao lado d’elle, fitava os olhos na luz mortiça da lampada oscillante, e scismava, como elle, na morte.

E o nordeste sibilava, como um gemido, nas gáveas da nau.

CONCLUSÃO. Ás onze horas da noite o commandante recolhêra-se n’um beliche de passageiro, e Marianna, sentada no pavimento, com o rosto sobre os joelhos, parecia sucumbir ao quebranto das trabalhosas e afflictivas horas d’aquelle dia.

Simão Botelho velava prostrado no camarote, com os braços cruzados sobre o peito, e os olhos fitos na luz que balançava, pendente d’um arame. O ouvido têl-o-ia talvez attento ao assovio da ventania: devia de soar-lhe como um ai plangente aquelle silvo agudo, voz unica no silencio da terra e do ceu.

Á meia noite estendeu Simão o braço tremulo ao masso das cartas que Thereza lhe enviára, e contemplou um pouco a que estava ao de cima, que era d’ella. Rompeu a obreia, e dispôz-se no camarote para alcançar o baço clarão da lampada.

Dizia assim a carta:

«É já o meu espirito que te falla, Simão. A tua amiga morreu. A tua pobre Thereza, á hora em que leres esta carta, se me Deus não engana, está em descanso.

Eu devia poupar-te a esta ultima tortura; não devia escrever-te; mas perdôa á tua esposa do ceu a culpa pela consolação que sinto em conversar comtigo a esta hora, hora final da noite da minha vida.

Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma, Simão? D’aqui a pouco perderás da vista este mosteiro; correrás milhares de leguas, e não acharás, em parte alguma do mundo, voz humana que te diga: «A infeliz espera-te n’outro mundo, e pede ao Senhor que te resgate.»

Se te podesses illudir, meu amigo, quererias antes pensar que eu ficava com vida e com esperança de vêr-te na volta do degredo? Assim póde ser, mas ainda agora, n’este solemne momento, me domina a vontade de fazer-te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade tem ás vezes vaidade de mostrar que o é, até não podêl-o ser mais! Quero que digas: Está morta, e morreu quando lhe eu tirei a ultima esperança.

Isto não é queixar-me, Simão, não é. Talvez que eu podesse alguns dias resistir á morte, se tu ficasses; mas, d’um modo ou d’outro, era inevitavel fechar os olhos quando se rompesse o ultimo fio, este ultimo que se está partindo, e eu mesma o oiço partir.

Não vão estas palavras accrescentar a tua pena. Deus me livre de ajuntar um remorso injusto á tua saudade.

Se eu podesse ainda vêr-te feliz n’este mundo; se Deus permittisse á minha alma esta visão!... Feliz, tu, meu pobre condemnado!... Sem o querer, o meu amor agora te fazia injuria, julgando-te capaz de felicidade! Tu morrerás de saudade, se o clima do desterro te não matar ainda antes de succumbires á dôr do espirito.

A vida era bella, era, Simão, se a tivessemos como tu m’a pintavas nas tuas cartas, que li ha pouco. Estou vendo a casinha que tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de arvores, flôres e aves. A tua imaginação passeava comigo ás margens do Mondego, á hora pensativa do escurecer. Estrellava-se o ceu, e a lua abrilhantava a agua. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silencio, e animada por teu sorriso inclinava a face ao teu seio, como se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li nas tuas cartas; e parece que cessa o despedaçar da agonia em quanto a alma se esta recordando. N’outra carta me fallavas em triumphos e glorias e immortalidade do teu nome. Também eu ia após da tua aspiração, ou adiante d’ella, porque o maior quinhão dos teus prazeres de espirito queria eu que fosse meu. Era criança ha tres annos, Simão, e já entendia os teus anhelos de gloria, e imaginava-os realisados como obra minha, se me tu dizias, como disseste muitas vezes, que não serias nada sem o estimulo do meu amor.

Ó Simão, de que ceu tão lindo cahimos! Á hora que te escrevo estás tu para entrar na nau dos degredados, e eu na sepultura.

Que importa morrer, se não podemos jámais ter n’esta vida a nossa esperança de ha tres annos?! Poderias tu com a desesperança e com a vida, Simão? Eu não podia. Os instantes do dormir eram os escassos beneficios que Deus me concedia; a morte é mais que uma necessidade, é uma misericordia divina, uma bemaventurança para mim.

E que farias tu da vida sem a tua companheira de martyrio? Onde irás tu aviventar o coração que a desgraça te esmagou, sem poder esmagar a imagem d’esta docil mulher, que seguiu cegamente a estrella da tua malfadada sorte?

Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma vez visses passar rapidamente a minha imagem por diante dos teus olhos enxutos? Soffre, soffre ao coração da tua amiga estas derradeiras perguntas, a que tu responderás, no alto mar, quando esta carta lêres.

Rompe a manhã. Vou vêr a minha ultima aurora... a ultima dos meus dezoito annos!

Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre d’uma agonia longa. Todas as minhas angustias lhe offereço em desconto das tuas culpas. Se algumas impaciencias a justiça divina me condemna, offerece tu a Deus, meu amigo, os teus padecimentos para que eu seja perdoada.

Adeus; á luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão.»

Erguei-se Simão Botelho, olhou em redor de si, e fitou com spasmo Marianna, que levantava a cabeça ao menor movimento d’elle.

— Que tem, senhor Simão? — disse ella, erguendo-se.

— Estava aqui, Marianna?... não se vai deitar?!

— Não vou: o commandante deu-me licença de ficar aqui.

— Mas ha de assim passar a noite?! Rogo-lhe que vá, porque não é necessario o seu sacrificio.

— Se o não incommodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.

— Esteja, minha amiga, esteja... Poderei subir ao convez?

— Quer ir ao convez, senhor Botelho? — disse o commandante lançando-se do beliche.

— Queria, senhor commandante.

— Iremos juntos.

Simão ajuntou a carta de Thereza ao maço das suas, e subiu cambaleando. No convéz sentou-se n’um monte de cordame, e contemplou o mirante de Monchique, que avultava negro ao sopé da serra penhascosa em que actualmente vai a rua da Restauração.

O capitão passeava da prôa á ré; mas com o ouvido fito aos movimentos do degredado. Receára elle o proposito do suicidio, porque Marianna lhe incutira semelhante suspeita. Queria o maritimo fallar-lhe palavras consoladoras, mas pensava comsigo: «O que ha de dizer-se a um homem que soffre assim?» E parava junto d’elle algumas vezes, como para desviar-lhe o espirito d’aquelle mirante.

— Eu não me suicido! — exclamou abruptamente Simão Botelho — Se a sua generosidade, senhor capitão, se interessa em que eu viva, póde dormir descansado a sua noite, que eu não me suicido.

— Mas mereço-lhe eu a condescendencia de descer comigo á camara?

— Irei; mas eu lá soffro mais, senhor.

Não replicou o commandante, e continuou a passear no convez, apesar das rajadas de vento.

Marianna estava agachada, entre os pacotes da carga, a pouca distancia de Simão. O commandante viu-a, fallou-lhe, e retirou-se.

Ás tres horas da manhã Simão Botelho segurou entre as mãos a testa que se lhe abria abrazada pela febre.

Não pôde ter-se sentado, e deixou cahir meio corpo. A cabeça, ao declinar, pousou no seio de Marianna.

— O anjo da compaixão sempre comigo! — murmurou elle — Thereza foi muito mais desgraçada...

— Quer descer ao camarote? — disse ella.

— Não poderei... Ampare-me, minha irmã.

Deu alguns passos para o alçapão, e olhou ainda para o mirante. Desceu a ingreme escada, apegando-se ás cordas. Lançou-se sobre o colchão, e pediu agua, que bebeu insaciavelmente. Seguiu-se a febre, o estorcimento, e as ancias, com intervallos de delirio.

De manhã veio a bordo um facultativo, por convite do capitão. Examinando o condemnado, disse que era «maligna» a doença, e que bem podia ser que elle achasse a sepultura no caminho da India.

Marianna ouviu o prognostico, e não chorou.

Ás onze horas sahiu barra fóra a nau. Ás ancias da doença accresceram as do enjoo. A pedido do commandante, Simão bebia remedios, que bolsava logo, revoltos pelas contracções do vomito.

Ao segundo dia de viagem Marianna disse a Simão:

— Se o meu irmão morrer, que hei de eu fazer áquellas cartas que vão na caixa?

Pasmosa serenidade a d’esta pergunta!

— Se eu morrer no mar — disse elle — Marianna atire ao mar todos os meus papeis; todos; e estas cartas que estão debaixo do meu travesseiro tambem.

Passada uma ancia, que lhe embargara a voz, Simão continuou:

— Se eu morrer, que tenciona fazer, Marianna!

— Morrerei, senhor Simão.

— Morrerá?!.. Tanta gente desgraçada que eu fiz!...

A febre augmentava. Os symptomas da morte eram visiveis aos olhos do capitão, que tinha sobeja experiencia de vêr morrerem centenares de condemnados, feridos da febre no mar, e desprovidos de algum medicamento.

Ao quarto dia, quando a nau se movia ronceira defronte de Cascaes, sobreveio tormenta subita. O navio fez-se ao largo muitas milhas, e perdido o rumo de Lisboa, navegou desnorteado para o sul. Ao sexto dia de navegação incerta, por entre espêssas brumas, partiu-se o leme defronte de Gibraltar. E, em seguida ao desastre, aplacaram as refegas, desencapellaram-se as ondas, e nasceu, com a aurora do dia seguinte, um formoso dia de primavera. Era o dia 27 de Março, o nono da enfermidade de Simão Botelho.

Marianna tinha envilhecido. O commandante, encarando n’ella, exclamou:

— Parece que volta da India com os dez annos de trabalhos já passados!...

— Já acabados... de certo... — disse ella.

Ao anoitecer d’esse dia o condemnado delirou pela ultima vez, e dizia assim no seu delirio:

«A casinha, defronte de Coimbra, cercada de arvores, flôres e aves. Passeavas comigo á margem do Mondego, á hora pensativa do escurecer. Estrellava-se o ceu, e a lua abrilhantava a agua. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silencio, e, animada por teu sorriso, inclinava a face ao teu seio como se fosse o de minha mãe... De que ceu tão lindo cahimos... A tua amiga morreu... A tua pobre Thereza.............................

E que farias tu da vida sem a tua companheira de martyrio?... Onde irás tu aviventar o coração que a desgraça te esmagou... Rompe a manhã... Vou vêr a minha ultima aurora... a ultima dos meus dezoitos annos. Offerece a Deus os teus padecimentos para que eu seja perdoada... Marianna...»

Marianna collou os ouvidos aos labios roixos do moribundo, quando cuidou ouvir o seu nome.

«Tu virás ter comnosco; ser-te-hemos irmãos no ceu... O mais puro anjo serás tu... se és d’este mundo, irmã; se és d’este mundo, Marianna...»

A transição do delirio para a lethargia completa era o annuncio infallivel do trespasse.

Ao romper da manhã apagára-se a lampada. Marianna sahira a pedir luz, e ouvira um gemido estorturoso. Voltando ás escuras, com os braços estendidos para tactear a face do agonisante, encontrou a mão convulsa, que lhe apertou uma das suas, e relaxou de subito a pressão dos dedos.

Entrou o commandante com uma lampada, e approximou-lh’a da respiração, que não embaciou levemente o vidro.

— Está morto!... — disse elle.

Marianna curvou-se sobre o cadaver, e beijou-lhe a face. Era o primeiro beijo. Ajoelhou depois ao pé do camarote com as mãos erguidas, e não orava nem chorava.

Algumas horas depois, o commandante disse a Marianna:

— Agora é tempo de dar sepultura ao nosso venturoso amigo ... É ventura morrer quando se vem a este mundo com tal estrella... Passe a senhora Marianna ali para a camara, que vai ser levado d’aqui o defuncto.

Marianna tirou o masso das cartas debaixo do travesseiro, e foi a uma caixa buscar os papeis de Simão. Atou o rolo no avental, que elle tinha d’aquellas lagrimas d’ella choradas no dia da sua demencia, e cingiu o embrulho á cintura.

Foi o cadaver envolto n’um lençol, e transportado ao convez.

Marianna seguiu-o.

Do porão da nau foi trazida uma pedra, que um marujo lhe atou ás pernas com um pedaço de cabo. O commandante contemplava a scena triste com os olhos humidos, e os soldados, que guarneciam a nau, tão funeral respeito os acurvava, que insensivelmente se descobriram.

Marianna estava, no entanto, encostada ao flanco da nau, e parecia estupidamente encarar aquelles empuxões, que o marujo dava ao cadaver para segurar a pedra na cintura.

Dois homens ergueram o cadaver ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para o arremessarem longe. E antes que o baque do morto se fizesse ouvir na agua, todos viram, e ninguém já pôde segurar Marianna, que se atirára ao mar.

Á voz do commandante desamarraram rapidamente o bote, e saltaram homens para salvar Marianna.

Salval-a!...

Viram-na, um momento, bracejar, não para resistir á morte, mas para abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe atirou aos braços. O commandante olhou para o sitio d’onde Marianna se atirára, e viu, enleado no cordame, o avental, e á flor d’agua um rolo de papeis que os marujos recolheram na lancha. Eram, como sabem, a correspondencia de Thereza e Simão.


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Da familia de Simão Botelho vive ainda, em Villa Real de Traz-os-Montes, a senhora D. Rita Emilia da Veiga Castello Branco, a irmã predilecta d’elle. A ultima pessoa fallecida, ha vinte e seis annos, foi Manoel Botelho, pae do author d’este livro.

FIM.