X.

 

A 17 de Março de 1807 sahiu dos carceres da Relação Simão Antonio Botelho, e embarcou no caes da Ribeira, com setenta e cinco companheiros. O filho do ex-corregedor de Vizeu, a pedido do desembargador Mourão Mosqueira, e por ordem do regedor das justiças, não ia amarrado com cordas ao braço d’algum companheiro. Desceu da cadêa ao embarque, ao lado de um meirinho, e seguido de Marianna, que vigiava os caixões da bagagem. O magistrado, fiel amigo de D. Rita Preciosa, foi a bordo da nau, e recommendou ao commandante que distinguisse o degredado Simão, consentindo-o na tolda, e sentando-o á sua mesa. Chamou Simão de parte, e deu-lhe um cartuxo de dinheiro em ouro, que sua mãe lhe enviava. Simão Botelho aceitou o dinheiro, e na presença de Mourão Mosqueira pediu ao commandante que fizesse distribuir elos seus companheiros de degredo o dinheiro que lhe dava.

— É demente o senhor Simão?! — disse o desembargador.

— Tenho a demencia da dignidade: por amor da minha dignidade me perdi: quero agora vêr a que extremo de infortunio ella póde levar os seus amantes. A caridade só me não humilha, quando parte do coração e não do dever. Não conheço a pessoa, que me remetteu este dinheiro.

— É sua mãe — tornou Mosqueira.

— Não tenho mãe. Quer v. ex.^a remetter-lhe esta esmola rejeitada?

— Não, senhor.

— Então, senhor commandante, cumpra o que lhe peço, ou eu atiro com isto ao rio.

O commandante aceitou o dinheiro, e o desembargador sahiu de bordo como espantado da sinistra condição do moço.

— Onde é Monchique? — pergutou Simão a Marianna.

— É acolá, senhor Simão — respondeu, indicando-lhe o mosteiro, que se debruça sobre a margem do Douro, em Miragaya.

Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um vulto[1].

Era Thereza.

Na vespera recebêra ella o adeus de Simão, e respondêra enviando-lhe a trança dos seus cabellos.

Ao anoitecer d’aquelle dia, pediu Thereza os sacramentos, e commungou á grade do côro, onde se foi amparando á sua criada. Parte das horas da noite passou-as sentada ao pé do sanctuario de sua tia, que toda a noite orou. Algumas vezes pediu que a levassem á janella que se abria para o mar, e não sentia ali a frialdade da viração. Conversava serenamente com as freiras, e despedira-se de todas, uma a uma, indo, por seu pé, ás cellas das senhoras entrevadas, para lhes dar o beijo da despedida.

Todas cuidavam em reanimal-a, e Thereza sorria, sem responder aos piedosos artificios com que as boas almas a si mesmas queriam simular esperanças. Ao abrir da manhã, Thereza leu uma a uma as cartas de Simão Botelho. As que tinham sido escriptas nas margens do Mondego, enterneciam-na a copiosas lagrimas. Eram hymnos á felicidade prevista: eram tudo que mais formoso póde dar o coração humano, quando a poesia da paixão dá côr ao pensamento, e uma formosa e inspirativa natureza lhe empresta os seus esmaltes. Então lhe acudiam vivas reminiscencias d’aquelles dias: a sua alegria doida, as suas dôces tristezas, esperanças a desvanecerem saudades, os mudos colloquios com a irmã querida de Simão, o ceu aromatico que se lhe ampliava á aspiração sôfrega de vagos desejos, tudo, emfim, que lembra a desgraçados.

Emmassou depois as cartas, e cintou-as com fitas de sêda desenlaçadas de raminhos de flôres murchas, que Simão, dois annos antes, lhe atirára da sua janella ao quarto d’ella.

As petalas das flôres soltas quasi todas se desfizeram, e Thereza, contemplando-as, disse: «Como a minha vida...» e chorou, beijando os calices desfolhados das primeiras que recebêra.

Deu as cartas a Constança, e encarregou-a de uma ordem, a respeito d’ellas, que logo veremos cumprida.

Depois foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo reclinado sobre uma cadeira. Erguendo-se, quasi tirada pela violencia, aceitou uma chicara de caldo, e murmurou com um sorriso: «Para a viagem...»

Ás nove horas da manhã pediu a Constança que a acompanhasse ao mirante e, sentando-se em ancias mortaes, nunca mais desfitou os olhos da nau, que já estava de verga alta, esperando a leva dos degredados.

Quando viu, a dois a dois, entrarem amarrados, no tombadilho, os condemnados, Thereza teve um breve accidente, em que a já froixa claridade dos olhos se lhe apagou, e as mãos convulsas pareciam querer aferrar a luz fugitiva.

Foi então que Simão Botelho a viu.

E ao mesmo tempo atracou á nau um bote, em que vinha a pobre de Vizeu chamando Simão. Foi elle ao portaló, e estendendo o braço á mendiga, recebeu o pacotinho das suas cartas. Reconheceu elle que a primeira não era sua, pela lizura do papel; mas não a abriu.

Ouviu-se a voz de levar ancora, e largar amarras. Simão encostou-se á amurada da nau, com os olhos fitos no mirante.

Viu agitar-se um lenço, e elle respondeu com o seu áquelle aceno. Desceu a nau ao mar, e passou fronteira ao convento. Distinctamente Simão viu um rosto e uns braços suspensos das rêxas de ferro; mas não era de Thereza aquelle rosto: seria antes um cadaver que subiu da claustra ao mirante, com os ossos da cara inçados ainda das herpes da sepultura.

— É Thereza? — perguntou Simão a Marianna.

— É, senhor, é ella — disse n’um afogado gemido a generosa creatura, ouvindo o seu coração dizer-lhe que a alma do condemnado iria breve no seguimento d’aquella por quem se perdêra.

De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e avistou Simão um movimento impetuoso de alguns braços, e o desapparecimento de Thereza e do vulto de Constança, que elle entre-vira mais tarde.

A nau parou de fronte de Sobreiras. Uma nuvem no horisonte da barra, e o subito encapellamento das ondas, causára a suspensão por ordem do commandante. Em seguida, velejou da Foz uma catraia, com o piloto mór, que mandava lançar ferro, até novas ordens. Mais tarde, deferiu-se a sahida para o dia seguinte.

E, no entanto, Simão Botelho, como o cadaver embalsamado, cujos olhos reluzentes se cravam n’um ponto immoveis, lá tinha os seus immersos na interior escuridade do miradouro. Nenhum signal de vida, e as horas passaram até que o derradeiro raio do sol se apagou nas grades do mosteiro.

Ao escurecer voltou de terra o commandante, e contemplou, com os olhos embaciados de lagrimas, o desterrado, que contemplava as primeiras estrellas, eminentes ao mirante.

— Procura-a no ceu? — disse o nauta.

— Se a procuro no ceu! — repetiu machinalmente Simão.

— Sim!... no ceu deve ella estar.

— Quem, senhor?

— Thereza.

— Thereza!... Morreu?!

— Morreu, álem, no mirante, d’onde lhe estava acenando.

Simão curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente. O commandante lançou-lhe os braços e disse:

— Coragem, grande desgraçado, coragem! os homens do mar crêem em Deus! Espere que o ceu se abra para si pelas supplicas d’aquelle anjo!

Marianna estava um passo atraz de Simão, e tinha as mãos erguidas.

— Acabou-se tudo!... — murmurou Simão — Eis-me livre... para a morte... Senhor commandante — continuou elie energicamente — eu não me suicido. Póde deixar-me.

— Peço-lhe que se recolha á camara. O seu beliche está ao pé do meu.

— É obrigatorio recolher-me?

— Para v. s.^a não ha obrigações; ha rogos: peço-lh’o não mando.

— Vou, e agradeço a compaixão.

Marianna seguiu-o com aquelle olhar quebrado e mavioso do jáo, quando o poeta desembarcava, segundo a ideia apaixonada do cantor de Camões.

Encarou n’ella Simão, e disse ao commandante:

— E esta infeliz?

— Que o siga... — respondeu o compassivo homem do mar, que cria em Deus.

Simão recolheu-se ao beliche, e o commandante sentou-se em frente d’elle, e Marianna ficou no escuro da camera a chorar.

— Falle, senhor Simão! — disse o commandante — desafogue e chore.

— Chorei, senhor!

— Eu não tinha imaginado uma angustia igual á sua. A invenção humana não creou ainda um quadro tão atroz. Arripiam-se-me os cabellos, e tenho visto espectaculos horriveis na terra e no mar.

Acintemente, o commandante estava provocando Simão ao desabafo. Não respondia o degredado. Ouvia os soluços de Marianna, e tinha os olhos postos no masso das cartas, que pozera sobre uma banqueta.

O capitão proseguiu:

— Quando em Miragaya me contaram a morte d’aquella senhora, pedi a uma pessoa relacionada no convento, que me levasse a ouvir d’alguma freira a triste historia. Uma religiosa m’a contou; mas eram mais os gemidos que as palavras. Soube que ella, quando desciamos na altura do Oiro, proferira em alta voz: «Simão, adeus até á eternidade!» e cahiu nos braços d’uma criada. A criada gritou, e outras foram ao mirante, e a trouxeram meia-morta para baixo, ou morta, melhor direi, que nenhuma palavra mais lhe ouviram. Depois contaram-me o que ella penára em dois annos e nove mezes n’aquelle mosteiro. O amor que ella lhe tinha, e as mil mortes que ella ali padeceu, de cada vez que a esperança lhe morria, Que desgraçada menina, e que desgraçado moço o senhor é!

— Por pouco tempo... — disse Simão, como se o dissesse a si proprio, ou a propria imaginação o estivesse dialogando comsigo.

— Creio, creio, por pouco tempo — proseguiu o capitão; — mas se os amigos podessem salval-o, senhor, eu dar-lh’os-ia na India mais fieis que em Portugal. Prometto-lhe, sob minha palavra de honra, alcançar do visorei a sua residência em Gôa. Prometto segurar-lhe um decente principio de vida, e as commodidades que fazem a existencia tão saudavel como ella é na Asia. Não o intimide a ideia do degredo, senhor Simão. Viva, faça por vencer-se, e será feliz!

— O seu silencio, por piedade, senhor... — atalhou o degredado.

— Bem sei que é cêdo ainda para planisar futuros. Desculpe á sympathia, que me inspira, a indiscrição. Mas aceite um amigo n’esta hora atribulada.

— Aceito, e preciso d’elle.... Marianna! — chamou Simão — Venha aqui, se este cavalheiro o permitte.

Marianna entrou no quarto.

— Esta mulher tem sido a minha providencia — disse Simão — Porque ella me valeu, não senti a fome em dois annos e nove mezes de carcere. Tudo que tinha vendeu para me sustentar e vestir. Aqui vai comigo esta creatura. Seja respeitavel aos seus olhos, senhor, porque ella é tão pura como a verdade o deve ser nos labios d’um moribundo. Se eu morrer, senhor commandante, aceite o legado de a amparar com a sua caridade como se ella fosse minha irmã. Se ella quizer voltar á patria, seja o seu protector na passagem. — E estendendo-lhe a mão, disse com transporte: — Promette-me isto, senhor?

— Juro-lh’o.

O commandante, obrigado a subir ao tombadilho, deixou Simão com Marianna.

— Estou tranquillo pelo seu futuro, minha amiga.

— Eu já o estava, senhor Simão — respondeu ella.

Não se trocaram palavra por largo espaço. Simão apoiou a face sobre a mesa, e apertou com as mãos as fontes archejantes. Marianna, de pé, ao lado d’elle, fitava os olhos na luz mortiça da lampada oscillante, e scismava, como elle, na morte.

E o nordeste sibilava, como um gemido, nas gáveas da nau.

  1. Quando escrevi este livro, ainda existia o mirante. Agora, lá, ou aí por perto, está um salão de baile em que dançam nos dias santificados marujos e as damas correspondentes. - (Nota da 5ª edição).