I.

Em que se trava conhecimento com dois mancebos de boas prendas.
 

Raiava o ano de 1609.

A primeira manhã de janeiro, esfolhando a luz serena pelos horizontes puros e diaphanos, dourava o cabeço dos montes que cingem a linda Bahia do Salvador, e desenhava sobre o matiz de opala e purpura o soberbo panorama da antiga capital do Brasil.

A cidade nascente apenas, mas louçã e gentil, elevando aos ares as grimpas de suas torres, olhando o mar que se alisava a seus pés como uma alcatifa de veludo, era então, pelo direito da beleza e pela razão da progenitura, a rainha do império selvagem que dormia ainda no seio das virgens florestas.

A natureza preparara no grupo de outeiros apinhados um trono de relva sobre o qual a linda cidade dominava o oceano, sorrindo ao nauta que da extrema do horizonte a saudava com um olhar amigo, para dar-lhe o bom-dia se chegava, e enviar-lhe o ultimo adeos quando se partia.

Despertando com os primeiros raios da alvorada, a população baihana recobrava a atividade depois do repouso. As casas se abriam para receber o ar e a luz da manhã; a pouco e pouco os mil rumores do dia, que são a voz das cidades, iam enchendo o espaço antes ocupado pelo silencio e pelas trevas.

Os mesteirais e vilãos já percorriam as ruas, não com a calma e regularidade de homens que vão ao trabalho ou ao cumprimento da obrigação diaria, mas com a agitação doce e a jovial soffreguidão de quem busca o prazer e corre apoz uma alegre esperança.

Vestidos com maior apuro do que punham nos trajes domingueiros, homens e mulheres saudavam-se entre si com tal effusão, desejando as boas sahidas e estreias de ano; apertavam as mãos com tamanha cordialidade, que percebia-se na disposição geral dos animos a doce influência de um motivo qualquer de regozijo público.

Com efeito não era a festa do anno bom a causa unica da jovial expansão; outra havia. Aquelle dia estava marcado para os festejos com que a Bahia desejava solenizar a chegada do novo Governador geral do Estado do Brasil, D. Diogo de Menezes e Siqueira, que depois de haver permanecido um ano na Capitania de Pernambuco para dispor sobre coisas da administração, aportara finalmente à capital no dia 17 de dezembro de 1608.

Não havia exemplo de semelhantes demonstrações em uma cidade onde os governadores e capitães-generais, revestidos de poderes absolutos, eram recebidos com desconfiança, e muitas vezes despedidos com alegria. Mas D. Diogo de Menezes, depois Conde da Ericeira, e um dos abalizados varões que governaram o Estado do Brasil, merecia pelo seu nobre caráter e espírito superior uma demonstração especial da parte dos bahianos.

Comtudo, essa unica circunstancia não bastara para excitar na classe rica o desejo de receber o novo governador com festas publicas, si o interesse, primeira lei das acções humanas, não inspirasse o mesmo pensamento como um hábil expediente de política colonial.

Durante o tempo que se demorára em Pernambuco, D. Diogo de Menezes tinha revelado sua força de vontade; e mostrára o firme proposito de repellir a intervenção que o Bispo D. Constantino Barradas e a Companhia de Jesus exerciam anteriormente sobre o governo temporal. A luta se travara com uma questão de etiqueta e precedência, a que dera logar a procissão do Corpo de Deus celebrada em Olinda.

Justamente n’essa epocha os senhores de engenho, que formavam a classe nobre e rica da Bahia, sustentavam contra os jesuitas a grande questão da servidão dos indios; e comprehendiam a vantagem de ter de seu lado um homem como D. Diogo de Menezes, cujo voto authorizado devia pesar nas decisões do Conselho da India e no animo de El-Rei D. Filippe III.

Por isso, chegado que foi o Governador, se concertaram para fazer-lhe uma recepção brilhante. Em quatorze dias estavam concluídos todos os preparativos e aprestos necessários para solenizar com a entrada do ano os benefícios do novo governo.

O programa do festejo primava pela variedade e boa escolha. Depois da missa cantada, seguida de Te Deum, havia alardo da gente de guerra e companhias de ordenanças em frente aos paços; à tarde devia correr-se no Terreiro do Colégio uma luzida cavalhada com a qual se dariam jogos, torneios e alcanzias; à noite danças pelas ruas e arcos de luminárias concertados com palmeiras ou festões de flores na Praça do Governador.

Não era preciso tanto para excitar a imaginação viva da mocidade baiana e fazer girar como corrupios todas as comadres devotas e mexeriqueiras, de que a metrópole brasileira já naquele tempo estava abundantemente provida.

A Bahia não passava então de uma pequena cidade habitada por cerca de mil e quinhentas almas; mas seus vizinhos eram abastados e gostavam do luxo; havia muitos colonos ricos de fazendas de raiz, peças de prata e ouro, jaezes de cavalo e alfaias de casa; alguns tinham o melhor de cinco mil cruzados de renda, e diz Gabriel Soares, “tratavam suas pessoas mui honradamente com muitos cavalos, criados e escravos”.

Esses cabedais que atualmente parecem mesquinhos, eram naquele tempo avultados; a facilidade com que se adquiriam e o gênio natural da população inclinada ao fausto e prodigalidade alimentavam na Bahia e Pernambuco um luxo superior ao de Lisboa, e entretinham o gosto pelas festas e divertimentos.

Não há pois admirar se a Capital do Brasil despertou quinta-feira, 1.º de janeiro de 1609, possuída do alvoroto agradável que produz uma esperança prestes a realizar-se, e precede a satisfação de um desejo afagado de nossa alma.

Às seis horas o sino pequeno da Sé, tangido rapidamente, soltou os alegres repiques, que pelo som argentino parecem as vozes travessas dos anjos do Senhor, chamando os fiéis; os ecos vibrando no ar foram apressar as palpitações de muito coração que os esperava com impaciência.

Quase ao mesmo tempo o carrilhão do Colégio dos Jesuítas retroando pelo espaço acompanhava o canto matutino da torre episcopal; suas notas graves, sombrias e plangentes, unindo-se aos repiques das outras igrejas, formavam o concerto majestoso com que a religião da luz e da verdade saúda o nascimento do dia. Apenas a primeira badalada do sino repercutiu nos ares e a larga portada da Sé abriu de par em par, o grupo de velhas beatas, que tinham amanhecido no adro da igreja, envoltas em longas mantilhas de rebuço, esgueirou-se pela teia das naves e lá foi tomar lugar no cruzeiro.

Em pouco as lájeas do vasto pavimento se iam cobrindo daquelas trouxas negras ou pardas de seda e burel, que nem longes tinham de vulto humano; da massa enorme elevou-se um sussurro, a princípio imperceptível, e foi crescendo, como se um enxame de vespas esvoaçasse pelo âmbito da igreja.

Nesse momento invadiu o altar uma corporação, que hoje tem perdido muito da sua primitiva importância social, mas que no século XVII representava um papel distinto em todas as carolices e galhofas da época; doze meninos do coro, metidos em sacos de lã vermelha, espalharam-se pelo corpo da igreja armados do competente acendedor.

Foi um rebuliço: os rapazes travessos, rindo como perdidos, pisavam de propósito os vestidos das velhas devotas, que se conchegavam resmoneando uma ladainha de imprecações; a mocidade imprudente não respeitava a velhice; os ânimos se exacerbavam, o sangue fervia; afinal, esgotado de parte a parte o rosário das injúrias consagradas pelo estilo, os dois campos lançaram mutuamente o último e o mais terrível dos insultos.

Os rapazes soltaram a palavra infamante de barata, a que as velhas retorquiram com o epíteto não menos afrontoso de formigão: e depois disso, como não havia despique possível de tão grande provocação, a não serem as vias de fato que o respeito do lugar impedia, cada uma das duas hostes inimigas retraiu-se e voltou silenciosamente a suas ocupações.

Era tempo; porque a igreja enchia-se de fiéis, e no adro viam-se já as cadeirinhas e palanquins que traziam à missa as donas e filhas dos ricos senhores da Bahia.

Tinham parado na calçada dois moços, ambos na flor da idade, ambos elegantes e bem parecidos, mas tão dessemelhantes no trajar, como no molde da beleza varonil.

O mais velho, que teria vinte e dois anos, era moreno. A fisionomia franca e aberta, as cores frescas e rosadas, o porte firme e direito sobre uma estatura regular, mostravam compleição vigorosa; mas sua expressão ressumbrava tanta graça, o sorriso que lhe brincava nos lábios era tão faceiro, havia tal donaire nos seus movimentos, que a força muscular desaparecia sob a flor da feliz organização, como a robustez do tronco sob a virente folha.

Vestia gibão de gorgorão cor de pérola guarnecido na orla por delgado fio de ouro com que eram igualmente tecidos os passamanes, e calção de veludo turqui debruado nas costuras por fino cairel de prata. Torçal de seda escarlate suspendia-lhe ao flanco esquerdo o florete; o boné de veludo azul com um broche de rubi cingia os anéis dos cabelos negros; a meia cor de pinhão debuxava a perna bem contornada, e o sapato raso com espora afilada calçava um pé fino e aristocrático.

Naquele tempo em que a profusão de cores vivas e bordados era o toque da louçania, não se encontrara decerto um cavalheiro trajado com mais gentileza e primor; a riqueza apenas se mostrava, para não ofuscar o bom gosto na combinação artística das lindas cores, nem o esmero do corte e piques das roupas.

Também na Bahia não havia mancebo casquilho como Cristóvão de Garcia de Ávila, senhor de fazenda passante de cinquenta mil cruzados, e descendente de uma das famílias nobres que tinham vindo do Reino com Tomé de Sousa, em 1549.

Nesse momento, voltado para a Praça do Governador, ele enfiava o olhar pela rua que desembocava no Largo da Sé, e pela qual esperava despontasse alguma coisa, que visivelmente o interessava.

O outro moço contava apenas dezenove anos. Trajava tudo negro, de simplicidade extrema, mas de esquisita elegância. Um aljôfar isolado brilhava na touca de veludo preto; as preguilhas da mais fina lençaria de alvas deslumbravam; a espora ligeira que mordia o salto do borzeguim e a cruz da espada eram de aço, mas tão bem polido que cintilava como custosas pedrarias.

O cetim negro das vestes dava muito realce à sua bela cabeça erguida com meneio altivo, e à alvura rosada de sua tez. Os grandes olhos pardos tinham os raios profundos e reflexivos que desfere a inteligência nos momentos de repouso; o lábio superior, coberto pelo buço de seda que pungia, arqueava graciosamente com expressão grave; era de alta estatura, e tinha como seu companheiro o talhe esbelto, mão e pé de supremo esmero.

Mas o que especialmente o caracterizava, era uma sombra imperceptível, que às vezes deslizando pela fronte alta e inteligente, carregava ligeiramente as linhas do perfil e imprimia-lhe na fisionomia o cunho da vontade tenaz; nestes momentos sentia-se que a razão calma, firme, inflexível, dominaria, se preciso fosse, as expansões da mocidade.

Os dois cavalheiros continuavam a conversa começada quando se encontraram no adro da igreja.

— Perdes teu tempo, dizia Cristóvão de Ávila sem tirar os olhos do seu alvo predileto.

— Não sei em que melhor o possa empregar do que em praticar com um amigo, respondeu o cavalheiro sorrindo.

— Mal vais com disfarces que dalgo não servem, que de mais descobrir a verdade. Digo que perdes teu tempo, quando teimas que entre tantas damas gentis não haja uma por quem desejes esta tarde tirar uma argolinha, ou correr um passe d'armas.

— E para ti há alguma? perguntou o outro desviando de si a alusão.

— Bem sabes que sim. Não sou de segredos; tão santa coisa é o amor que Deus nos pôs n'alma, que não me peja de trazê-lo no rosto e à face de todos.

— Assim deve ser para quem é nobre e rico, e não teme repulsa; mas outros há que não têm direito de erguer a vista, embora mais alto que ela tragam o coração.

As últimas palavras foram pronunciadas com ligeiro assomo de orgulho ofendido, que imediatamente sufocado esvaeceu em sorriso melancólico.

— À fé que não te compreendo, Estácio. Tão nobre és, como os melhores, e rico; porque a ninguém mais que a ti, devem de pertencer as terras que teu avô Diogo Álvares conquistou ao gentio para El-Rei, de quem as houvemos nós e nossos pais.

O moço ia replicar, quando uma cadeirinha de cúpula dourada, que vinha das bandas do Terreiro do Colégio, carregada por dois negros vestidos à mourisca, com aljubas de lã escarlate, excitou vivamente sua atenção.

Cristóvão simulou não perceber o estremecimento de prazer que teve seu companheiro, e voltou o rosto sorrindo.

Nem um nem outro reparou em certa dama que nesse instante e acerca deles passava para a igreja, acompanhada por uma velha aia. Estava ela completamente velada com o espesso crepe da mantilha, de modo que era impossível distinguir feições. Vendo o gesto de Estácio, lançou rápido e furtivo olhar para descobrir a causa de sua emoção, e entrou na Sé murmurando consigo:

— É já rendido de amores!