Era um gosto ver o menino aguador que em 1589 os passeadores de Burgos encontravam todas as tardes diante do Palácio Velasco; tão gentil se mostrava ele de sua pessoa, e tão prendado de sua graça infantil.
Chamava-se Vilarzito; tinha 12 anos; herdara o nome e o ofício do pai, que o deixara só no mundo. A mãe, essa nem lograra, mísera e mesquinha, beijar o filho que fora todos os seus extremos. Era mulher de muita religião e especial devota do grande São Inácio de Loiola. Sempre que ia à igreja, ficava horas e horas em doce arroubo dos sentidos diante de um grande quadro a óleo, onde tinham representado a imagem em pé, do Santo, ao vulto natural. Quando Deus lhe destinou marido, ela não cessava de rogar ao céu um favor:
— Meu divino Santo Inácio, se de todo não vos desprezais desta serva indigna, e que por vossa intercessão Nosso Senhor Jesus Cristo me abençoe em o fruto das minhas entranhas, fazei que esse filho seja a cópia vossa humilde, assim na compostura das feições, como na vida e obras.
Se exalçara o céu esta prece fervorosa, quem o podia saber? Em tão verdes anos não era natural que se conjeturasse coisa certa sobre o menino. Inteligência e ambição foram sim precoces nele; tinha a nobreza do parecer; e estreou na vida, como o soldado de Pampelune, pelas armas.
Seu primeiro sonho fora o herói popular da sua pátria, o Cid campeador, tão celebrado nas lendas castelhanas: cantando as trovas do romanceiro, o menino sentiu borbulhar o sangue nas veias, e intumescer-lhe o seio de uma nobre emulação. Com os primeiros reais que apurou, mercando copos de água nevada, o aguadorzito comprou uma espada. Era esta de tamanho desmedido para um homem que fosse, quanto mais para um menino; e tão comida já de óxido, que o armeiro a tinha entre os ferros-velhos.
— Bem pode ser a espada de Mudarra, a velha espada ferrugenta! disse o menino consigo, e acariciou os punhos.
Nesse dia a calçada do Palácio Velasco não o viu, e as damas de Burgos notaram a falta do esperto e vivo rapazito que as divertia com seus repentes chistosos, e sabia oferecer um copo de água nevada com tão fino donaire para admirar em um menino de rua.
Vilarzito tivera mais que fazer. Escondido em um pardieiro, o futuro êmulo do Cid esgrimia e ferralhava a valer contra as velhas paredes. O entusiasmo lhe duplicava as forças; a ferrugenta espada coruscava no ar, ferindo fogo no cimento empedernido. Enfim o ardor guerreiro sucumbiu à fadiga; o rapazito caiu extenuado sobre a relva e dormiu ao sol, como os cameleões.
Dormindo sonhou torneios e batalhas. Na seguinte manhã tornou à ocupação habitual; mas bem se via pelo nenhum cuidado que dava ao seu mister de aguador, que outro cuidado o tinha. As damas passavam e ele dantes tão pressuroso em servi-las, quase nem as olhava agora.
Decorreram dias. Era sobre tarde: Vilarzito cismava melancólico na calçada. Achegou-se um homem de guerra, munido de grandes bigodes.
— É servido você, cavalheiro, de um copo de água? Mais fresca não a há em Sierra Nevada! gritou o menino, com seu gesto mais amável, correndo para o soldado.
Este tinha sede e aceitou. Os espanhóis passavam então na Europa por grandes bebedores de água, pelo que incorreram no desprezo dos alemães.
Vilarzito examinava o cavalheiro enquanto ele bebia. Achou-lhe o porte desempenado, o talhe longo ainda que franzino, a barba espessa, e o arreganho marcial; porém mais que tudo o impressionara um gilvaz que debruava o rosto moreno desde o ângulo direito da fronte até o meio da face esquerda.
— Como se chama você, cavalheiro? perguntou afinal o menino.
— Pois não conheces o famoso Capitão D. Aníbal Aquiles de la Fuerte Espada, para as damas o gracioso Acutilado, e para os homens o terrível Acutilador?... Sou eu, o próprio que tens a honra de refrescar!... Oh! que é lá isso?... Não tremas, chiquito! És um pirralho, e mesmo que foras um homem, tão pouco! D. Aníbal só acutila os fortes! Aos fracos protege!
Vilarzito não tremia; ficara enlevado:
— Com que é você o grande Acutilador?
— O maior e mais ilustre de todas as Espanhas, o que val dizer do mundo inteiro. Não admira que conheças a minha fama, pois ela enche o universo.
— Já esteve você na guerra, cavalheiro?
— Caramba! Se estive eu na guerra?... Pois nasci nela! Minha mãe me gerou na batalha de São Quintino entre dois cañonazos!
Vilarzito, satisfeito com esta resposta, perfilou-se:
— Muito bem, cavalheiro! Você me serve.
— Que vem a dizer? Eu te sirvo... Sangre de Cristo! Estás varrido, pirralho?
— Escute sempre, homem! Ando eu à procura de um cavalheiro; pois não há pajem sem seu cavalheiro, e eu me quero pajem. Você é valente; digo-lhe eu que me serve!
D. Aníbal soltou uma gargalhada homérica.
— Caramba!... Sempre hei ouvido, que são os pajens os que servem aos amos!
— Alguma vez vai o mundo às avessas, cavalheiro!
— É picante o caso! Quanto ganharei eu por ser teu cavalheiro, pois que sou eu quem te servirei?
— Ganhará você a fortuna de me ter por seu pajem, e por cima o gosto de me trazer bem vestido e acontiado!...
— Não queres também uma bolsa recheada de duros, bargante?
— Dinheiro!... Não é isso que me come, mas a fama!
O cavalheiro soltou segunda gargalhada:
— Vejam só, uma formiga de catarro!
— Capitão D. Aníbal Aquiles de La Fuerte Espada!... exclamou o menino com modos de gente. Mire você... Se me afronta, me dará satisfação e desagravo!...
— Sangre de Cristo! Eis um pícaro que me agrada! És meu pajem. Eu te sirvo...
— Tu me serves, atalhou o menino. Nós nos servimos!
— Também sabes as gramaticais?
— Quanto basta para escrever às damas.
— Às mil maravilhas!
Uma semana depois Vilarzito, em figura de pajem, se partia de Burgos, cavalgando após o Capitão D. Aníbal um sendeiro choutão, em cujas ancas chocalhava a velha espada ferrugenta.
O primeiro dia de viagem acabou sem novidade; o segundo foi pelo mesmo teor. O esperto pajem à cata de aventuras entristeceu; às vezes conversando com os seus alamares (naquele tempo não se usavam botões), murmurava entre dentes:
— Isto não me quadra.
Veio o terceiro dia: deixaram a pousada ao romper d'alva. Trotando, o pajenzito empenava o talhe delgado, e afagava o punho desmedido da catana com a mão pequerrucha. Tinha o pescoço teso, o nariz ao vento; farejava uma aventura.
A meia légua da pousada cruzaram com os viajantes dois cavaleiros. Saudaram cortesmente ao passar. D. Aníbal respondeu à saudação; o pajem ao contrário calcou o sombreiro sobre os olhos com um modo soberbo, desdenhoso, olhando de través.
Ou não viram, ou não deram a isso importância os dois cavaleiros, e seguiram seu caminho. Vilarzito embaçou com a história, mas logo tomou uma resolução.
— Espere você um tantinho, cavalheiro, enquanto eu torno.
— Onde vais tu, pajem?
O pajem já não ouvia a pergunta, porque dando de rédea ao sendeiro e fincando-lhe as esporas, fora-se no encalço dos dois cavaleiros.
— Cavaleiros! Cavaleiros!... Queiram parar.
— Que nos queres tu?
— Saibam que meu amo, o mui nobre Senhor D. Aníbal Aquiles de la Fuerte Espada, por fama o Acutilador, que ali espera firme como o rochedo, me manda a suas mercês, para dizer-lhes que são uns pícaros...
— Caramba! Engole a palavra, pajem!
— Engolir, eu! Pois não! Vou repeti-la três, cem, mil vezes!
Aqui passando da voz ao grito, o menino clamou a pleno pulmão:
— Uns pícaros!... Uns grandes pícaros!... Uns grandíssimos picarões!...
Os cavalheiros não puderam deixar de rir.
— E por que, perguntou um deles, nos maltrata esse cavalheiro, teu amo?
— Porque você não o saudou...
— Não o saudei! Mal fiz em catar-lhe cortesia, a um vilão ruim qual ele é.
— Não o saudou como devia, apeando-se quando ele passava.
— Caramba! É ele o Santíssimo Sacramento? O perro! Apear-me eu quando ele passava!...
— É um bravo! Por isto e pelo mais pede ele desafronta da injúria que sofreu!
— Desafronta, quero eu!
— E eu primeiro!
Os dois cavalheiros picaram para D. Aníbal, desembainhando as espadas. Vilarzito os seguiu, gritando:
— Ei-los, cavalheiro. Vamos ensinar-lhes as regras da cortesia.
Os desconhecidos não deram tempo a explicações; o que primeiro chegou arremeteu contra D. Aníbal que mal teve tempo de defender-se. O segundo fora mero espectador, se Vilarzito estacando defronte dele com a farrusca em punho, o não obrigasse a pôr-se de guarda.
— Queda-te, menino, se não queres que te corte cerce as orelhas!
— Antes que tal gana te venha, te arrancarei os dentes, perro! Defende-te! dizia o menino esgrimindo.
O cavalheiro foi obrigado a defender-se com efeito para não ser ferido; em dois botes conseguiu desarmar o fedelho, que caiu ferido no braço. Seu companheiro acabava do estender o bravo Acutilador que jazia desmaiado, com um segundo gilvaz na face direita.
Os desconhecidos foram seu caminho.
Vilarzito desprezando as dores com o estoicismo admirável das crianças travessas e pertinazes, pôs o braço de tipoia; e assim mesmo, conseguiu pensar as feridas de D. Aníbal que voltara do desmaio.
— Vê o que fizestes, diabrete?...
— Vai tudo às maravilhas, cavalheiro, respondeu o menino. Você subiu um ponto na estima das damas; de acutilado passou a acutiladíssimo! Quanto a mim já tenho nome de guerra. Sou Vilarzito, o maneta.
E o pajem mostrou com orgulho o braço na tipoia.
Fora preciso o talento de Cervantes para contar as aventuras do pajem andante e seu cavaleiro. Da amostra e feliz estreia que aí fica tirem o mais. Basta saber que Vilarzito se acompanhou cerca de três anos de D. Aníbal, fraco espírito que o astucioso menino dirigia a seu bel-prazer. Estiveram juntos na batalha de Groningen em 1596, onde Maurício de Nassau bateu os espanhóis. Vilarzito fez proezas o concluiu esta célebre jornada salvando o cavalheiro, que por prêmio de tão assinalado serviço o elevou de pajem a escudeiro.
Assim marchavam as coisas quando acertaram, amo e escudeiro, de passar por Sevilha. O antigo aguadorzito não tinha visto ainda a maravilha da Andaluzia, com seu alcáçar mourisco, sua majestosa catedral, e suas calles magníficas.
Na tarde em que eles entraram, um grande ajuntamento de povo impedia o trânsito. Pararam como os outros passantes, para ver o que tanto excitava a atenção popular. Era uma botega ou oficina de pintor: havia sobre o cavalete uma grande tela recentemente acabada; defronte, apoiado na penumbra da porta um mancebo, trajando negro, mostrava-se em uma atitude modesta.
Francisco Pacheco, o criador da escola sevilhana e predecessor de Velasquez, Murilo e Zurbarán, terminara seu grande quadro de São Miguel. A multidão admirava com entusiasmo; os olhares iam da obra ao artista; e as saudações ruidosas que partiam de todos os pontos formavam um só grito:
— Divino!
Vilarzito admirou também, não o quadro, mas aquela admiração fervente de que era objeto o pintor. Nesse momento o menino sentiu fervilhar-lhe o sangue, mais ardente ainda do que o sentira outrora em Burgos, cantando o romanceiro do Cid.
— A glória!... murmurou ele. Em vão a hei buscado!... Está aqui!
Numa circunstância análoga Rafael Sanzio disse – Anch’io son’pittore! Era o grito da inspiração, a voz do gênio revelando uma vocação. No menino castelhano falou a vontade somente; seu grito era o da ambição precoce, intensa no querer, mas vaga ainda no objeto.
— Também serei pintor!
Significava isto: Também serei admirado assim, e por conseguinte famoso; também verei uma cidade grande, talvez uma nação, o mundo inteiro, agitar-se ao redor de mim, tendo na boca um só nome, o meu.
A custo conseguiu D. Aníbal que Vilarzito se apartasse daquela rua, para ir à próxima venda, onde contava pousar. O menino dormiu mal; se dormiu, teve sonhos brilhantes. Ao romper d'alva já ele estava de pé à beira do leito do cavalheiro, esperando que abrisse os olhos.
— Cavalheiro, venho apresentar-lhe minhas despedidas.
— Han!... Que dizes tu, escudeiro?... respondeu D. Aníbal bocejando ainda.
— Não sou mais escudeiro, pois me parto de sua companhia.
— Como! Queres deixar-me?
— Já o deixei, cavalheiro!
— Porém... estás sonhando! Ainda não acordaste bem.
— Acordei ontem, cavalheiro! E não dormi até agora!
Pedidos, promessas e ameaças, foi tudo baldado. Vilarzito partiu-se por uma vez da companhia do cavalheiro; tinha seu plano combinado. Dirigiu-se à oficina de Pacheco.
— Deus o salve, mestre!
— E lhe dê sua bênção, filho! respondeu o pintor.
— Não tem você, mestre, necessidade de um aprendiz?
— Aprendizes não faltam, porém resta saber se são capazes de aprender.
— Sinto eu que sou! Senti ontem vendo a sua obra, e admirando-a, mestre!
Vilarzito ficou na oficina como aprendiz. Cedo revelou seu talento; mas era esse unicamente para um gênero ainda não cultivado, a caricatura. Incapaz de uma obra séria, o menino estragava qualquer esboço que lhe davam a encher. O mestre arrenegava-se, e o aprendiz vingava-se caricaturando-o a carvão pelos muros da cidade. O mesmo fazia com todos os que lhe caíam no desagrado, fossem de qualquer categoria.
Um belo dia, em que ele escapulira da oficina em virtude de um forte repelão, desabafava conforme o costume a sua zanga pelas paredes. Nisso parou juntou um cavalheiro de 50 anos, na aparência homem de guerra, e bem maltratado dela:
— Que fazes tu aí, muchacho?
— Não tem olhos você, cavalheiro, para ver? Estou pintando; é bem claro!
— Bem vejo que estás borrando essa parede; porém te pergunto eu que pretendes tu que sejam estas figuras de animais com rosto de gente!
O menino encarou com o cavalheiro:
— Este gato é meu mestre, o grande Pacheco, quando lhe chegam a mostarda ao nariz; crescem-lhe as unhas, e bufa como se ficara espritado. Este ratinho que zomba do gato e lhe rói os bigodes, aqui o tem você em pessoa diante de si.
— És tu, maroto?
— D. Maroto, senhor cavalheiro, entre gente limpa assim se usa.
O cavalheiro riu de boa vontade. O menino prosseguiu, fitando-lhe as feições com um olhar, em que a atenção perspicaz era disfarçada sob uns ares de escarninha malícia.
— Mas ainda falta ao meu quadro para o completar, uma terceira figura, mui interessante. Quer vê-la você?
— Qual ela é?
— Espere um pouquito.
Em dois traços de carvão o menino desenhou no muro uma figura de jumento com um rosto que bem podia ser o do cavalheiro ali presente:
— Vê. É um asno com cara de perguntador! disse o menino dando um salto para trás.
Mas o cavalheiro, lesto e ágil apesar dos cinquenta, já o tinha filado pela orelha!
— Caramba! Vou te levar a teu mestre, grande pícaro, para que ele mire as tuas obras.
— Vejo bem que fiz mal em pintá-lo de asno, pois é um leão! disse o menino forcejando por escapulir.
— Tenho uma só mão, pequeno; mas desta nem o diabo te pode tirar. Sossega!
O cavalheiro seguiu com o menino para a oficina.
Bem se conhecia pela expressão de sua fisionomia aberta, que em vez de irritá-lo, a travessura de Vilarzito o divertia.
— Viva, mestre!... disse o cavalheiro entrando, D. Miguel de Cervantes Saavedra tem a honra de saudar o primeiro pintor de Sevilha, D. Francisco Pacheco.
O mestre inclinou-se:
— A honra é para D. Francisco Pacheco, pois recebe em sua casa o valeroso Capitão de Lepante, o mais glorioso poeta e escritor de todas as Espanhas.
— Aqui vos trago, mestre, o vosso aprendiz, que achei apresentando-vos em figura de gato e a mim de jumento.
— Não sei já o que faça, D. Miguel de Cervantes; a menos de lhe cortar pé e mão, não há poder com ele.
— Quereis vós um conselho, ainda que não pedido?
— Embora, será melhor agradecido.
— Deixai-o dar pasto ao seu gênio. Há de sair daí alguma coisa. Vossa arte, mestre, assim como tem os seus Virgílios e Horácios, por que não terá seus Plautos e Marciais?...
O imortal autor do D. Quixote, em que já ele trabalhava nessa época, tomou-se de simpatia por Vilarzito. O pequeno caricaturista a carvão também de sua parte começou a admirar o grande caricaturista a pena, que ia dar ao mundo a sua sátira-epopeia. O fel de ironia que vazava desse grande espírito, embebeu-se n'alma infantil e foi a pouco e pouco corroendo as suas doces ilusões. O menino descreu das glórias que sonhara; e acabou por imaginar que não havia maior do que aluí-las a todas pelo sarcasmo e escárnio.
Lá num certo dia, acordou com esta ideia:
— Vou-me a Salamanca!... Serei poeta satírico!
E de feito partiu-se e foi ter a Salamanca. Cursou as aulas de humanidades, como jogara espada e manejara os pincéis: com ardor febril, vontade firme, e superior engenho. Fez versos; encheu as paredes de sonetos e glosas escritas a carvão, como as caricaturas de Sevilha. Seria sem dúvida, poeta como Lope de Vega, Cervantes, Quevedo, se por infelicidade não sobreviesse novo acidente para dar outro curso aos ímpetos dessa impaciente ambição.
Começava de cursar a aula de cosmografia; a descoberta do Novo Mundo, recente de um século apenas, dava aos provectos tema vasto para eruditas e compendiosas dissertações. Vilarzito tinha ouvido falar da América, como terra de ouro, e de Cristóvão Colombo, como um piloto feliz.
Quando sua jovem inteligência, exercitando-se nas controvérsias de história e cosmografia, começou de entrever a parte que tivera o gênio naquela portentosa descoberta, seu entusiasmo pelas grandes coisas, que o espírito satírico amortecera, mas não extinguira, acendeu de novo, e talvez mais intenso. Se antes fora chama fugace, parecia agora ardente labareda de um incêndio. Deparou-lhe o destino uma vida de Cristóvão Colombo, escrita pelo filho Fernando. O moço escolar devorou o livro; quando o terminou, tinha na cabeça um vulcão de ideias; corriam lavas do cérebro em ebulição; dos olhos incendidos saltavam chispas de fogo. Esteve assim nessa febre d’alma um dia inteiro; saiu dela para exclamar com o tom de um inspirado:
— Por que não descobrirei eu também um mundo? Deve de haver um terceiro, ainda desconhecido, por essa imensidade dos mares!...
E tinha razão. Esse terceiro mundo existia; já ele começara então de surgir do infinito, filho do oceano de quem derivou o nome. Mas a glória de o descobrir, a providência não a reservara para o humilde aguador de Burgos, agora estudante em Salamanca. Não obstante, uma semana inteira andou aquele pensamento a tumultuar-lhe no cérebro. Ao cabo, parece que tomou uma resolução:
— Colombo se partiu de Palos. Vou-me eu também a Palos. À la ventura!
Vilarzito tinha dois meios de viajar; ou se oferecia por pajem a algum cavalheiro, ou tratava com os almocreves para lhes tocar as mulas de carga. Desta vez foi o último expediente o que mais pronto lhe apareceu; de recova em recova, topou afinal com uma que fazia o serviço entre Sevilha e Palos. Sua tenção era embarcar aí como grumete do primeiro navio que o recebesse, e atirar-se à vida do mar. Um dia, não muito longe, havia de subir a sargento-mor e ter ao seu mando uma nau ou mesmo uma galé. Então se lançaria pela amplidão do oceano, e iria buscar o seu mundo, ainda que o ocultasse uma dobra do infinito.
Terminava ele sua viagem, quando a sorte o levou à margem do Tinto, na tarde de 25 de abril de 1597.
Ia descobrir um mundo; encontrou no caminho uma mulher.
Quantas coisas grandes da terra, quantas glórias e cometimentos ilustres, não nascem dos orvalhos que esparge um sorriso de amor? Mas também quantas ambições ardentes e nobres estímulos têm seu eclipse na luz de uns lindos olhos?