Simeão devia ter vinte anos: era um crioulo de raça pura africana, mas cujos caracteres físicos aliás favoravelmente modificados pelo clima e pe­la influência natural do país onde nascera, não tinham sido ainda afeiados pelos serviços rigorosos da escravidão, embora ele fosse escravo.

Havia em seus modos a expansão que só parece própria do homem li­vre: ele não tinha nem as mãos calejadas, nem os pés esparramados do ne­gro trabalhador de enxada: era um escravo de cabelos penteados, vestido com asseio e certa faceirice, calçado, falando com os vícios de linguagem triviais no campo, mas sem a bruteza comum na gente da sua condição; até certo ponto, pois, aceito, apadrinhado, protegido e acariciado pela fa­mília livre, pelo amor dos senhores.

A história de Simeão tem mil histórias irmãs até aos vinte anos, que ele conta; há de, portanto, trazer à memória mil histórias, como a sua, cheia de desgostos e de ressentimentos de ingratidão, que aliás, sem o pensar, os benfeitores cimentam. A história que vai seguir-se depois dos vinte anos talvez lembre alguma infelizmente mais ou menos semelhante, e cu­jo horror é somente um dos frutos e dos horrores da escravidão.

Sementeira de venenosos espinhos, a escravidão não pode produzir flo­res inocentes.

A história de Simeão ainda não criminoso é simples: muitos dos leito­res deste romance a encontrarão realizada, viva, eloqüentemente exposta no seio de seu lar doméstico.

Domingos Caetano teve de sua mulher muito e bem merecidamente amada uma filha que satisfizera os doces votos de ambos. Angélica, a no­bre esposa e virtuosa mulher, não pôde ter a dita de amamentar o seu an­jo, e confiou-o aos peitos de uma escrava que acabava de ser mãe como ela: a escrava que amamentara dois filhos, o próprio e o da senhora, morreu dois anos depois, e Angélica pagou-lhe a amamentação da sua queri­da Florinda, criando com amor maternal o crioulinho Simeão, colaço de sua filha.

A compaixão e o reconhecimento em breve se transformaram em ver­dadeira afeição: o crioulo era esperto e engraçado, começou fazendo rir, acabou fazendo-se amar. Simeão divertia, dava encanto às travessuras de Florinda: Domingos Caetano e Angélica o amaram em dobro por isso.

Até os oito anos de idade Simeão teve prato à mesa e leito no quarto de seus senhores, e não teve consciência de sua condição de escravo. Depois dos oito anos apenas foi privado da mesa e do quarto em comum; conti­nuou, porém, a receber tratamento de filho adotivo, mas criado com amor desmazelado e imprudente, e cresceu enfim sem hábito de traba­lho, abusando muitas vezes da fraqueza dos senhores, sem atingir a digni­dade de homem livre, e sem reconhecer nem sentir a absoluta submissão do escravo.

Era o tipo mais perfeito do crioulo, cria estimada da família.