Mais de uma vez parentes e amigos de Domingos Caetano e Angélica disseram a um ou outro, mostrando Simeão:

– Estão criando um inimigo: a regra não falha.

E Domingos respondia:

– Coitado! Ele é tão bom!

E Angélica dizia sorrindo-se:

É impossível que nos seja ingrato.

– Ainda não houve um que o não fosse! – tornavam-lhes debalde; porque os senhores de Simeão nem por essas já triviais advertências menos condescendentes e afetuosos se mostravam com o seu crioulo estimado.

Breve reflexão de passagem.

As apreensões da ingratidão e da inimizade desses escravos, crias predi­letas aquecidas no seio da família, têm por certo o fundamento da mais triste experiência; mas a sanção da regra sem o estudo e reconhecimento da causa do mal tenderia a fazer apagar as santas inspirações da caridade, e a empedernir os corações de todos os senhores de escravos.

Fora absurdo pretender que a ingratidão às vezes até profundamente perversa dos crioulos amorosamente criados por seus senhores é neles ina­ta ou condição natural da sua raça: a fonte do mal, que é mais negra do que a cor desses infelizes, é a escravidão, a consciência desse estado violen­ta e barbaramente imposto, estado lúgubre, revoltante, condição ignóbil, mãe do ódio, pústula encerradora de raiva, pantanal dos vícios mais tor­pes que degeneram, infeccionam, e tornam perverso o coração da vítima, o coração do escravo.

No amor dos senhores o crioulo estimado viu, sentiu, gozou os reflexos das flamas vivificantes, generosas, sagradas da liberdade: mas vem um dia em que ele se reconhece escravo, coisa e não homem, apesar da afeição, das condescendências, dos caridosos benefícios do senhor – amigo, da se­nhora – segunda mãe; vem a primeira hora sinistra em que ele, que até então vivera em sonhos e ilusões, desperta com a certeza horrível de que é um condenado daquém-berço; condenado sem crime; tendo alma e con­siderado simples matéria ambulante; coisa, animal, que se vende, como a casa, como o boi e como a besta; finalmente miserável e perpétuo des­terrado em deserto sem horizonte, tendo vida e não vivendo para si, dese­jando sem esperanças, não possuindo de seu nem o pleno direito dos três amores mais santos: o de filho, o de esposo, e o de pai; máquina para ca­var com a enxada, homem desnaturado, miséria respirante e movente que os próprios cães distinguem pela marca do desprezo social.

O crioulo escravo e estimado, por isso mesmo que tem mais aguçada a inteligência, e por isso mesmo que deram-lhe as mostras dos gozos e da superioridade, mas não lhe deram a condição e a educação próprias do homem livre, pesa melhor que os escravos brutais o preço e o encanto da verdadeira liberdade; no meio dos benefícios compreende que lhe falta um que vale mais do que todos os outros somados e multiplicados; feliz pelos favores que recebe, pelos dons da afeição de que é objeto, esbarra sempre diante da realidade da escravidão, que o abate, avilta e moral­mente o aniquila: deseja e não tem, quer e não pode, sonha e não realiza o bem supremo da terra, escravo se reconhece e bebe o ódio, os maus cos­tumes, o veneno, a perversidade da escravidão.

O crioulo escravo e estimado, em quem o amor e as condescendências do senhor animam e atiçam expansões naturais do amplo gozo da liberda­de, mistura nos dias da reflexão mais sombria e triste a lembrança dos sa­bores do reflexo da liberdade com a ameaça e os negros horrores da escra­vidão; habituado à impunidade garantida pela afeição, ousa muito e abu­sa ainda mais; como predileto da família, e escravo, portanto infecciona­do de todos os vícios e ferozes impulsos da madre-fera escravidão, insolen­te e malcriado, nem perfeitamente livre, nem absolutamente escravo, bom juiz odiento, pois que conhece as duas condições, e da melhor é bas­tardo, e da pior legítimo filho, o crioulo escravo e estimado de seu se­nhor, torna-se em breve tempo ingrato e muitas vezes leva a ingratidão a perversidade, porque é escravo.

Mas a sua ingratidão e a sua perversidade não se explicam pela nature­za da raça, o que seria absurdo; explicam-se pela condição de escravo, que corrompe e perverte o homem.

O crioulo amorosamente criado pela família dos senhores seria talvez o seu melhor amigo, se não fosse escravo.