Ninguém poderia ter marcado, nem o próprio Simeão seria capaz de determinar o dia em que lhe toldara as alegrias do coração inocente a pri­meira gota de fel destilado pela consciência da sua escravidão. Havia para ele na casa de seus amorosos senhores um céu e um inferno: na sala o néctar da predileção e da amizade, na cozinha o veneno da inveja e o golfão dos vícios: na cozinha a negra má e impiedosa castigou-lhe as travessuras e exigências incômodas e apadrinhadas pelos senhores, repetindo-lhe mil vezes:

– Tu és escravo como eu.

E o negro enfezado e ruim perseguia o crioulinho estimado com a ameaça lúgubre de um futuro tormentoso:

– Brinca para aí, pobre coitado! Hás de ver como é bom o chicote, quando cresceres...

E pouco a pouco Simeão abalado, incessantemente influenciado pela inveja e pelas maldades da cozinha, deixou-se tomar de um constrangi­mento leve, mas invencível, que foi o primeiro sinal da triste suspeita do abismo que o separava dos senhores.

A cozinha foi sempre adiantando a sua obra: quando conseguiram convencer, compenetrar o crioulinho da baixeza, da miséria da sua condi­ção, as escravas passaram a preparar nele o inimigo dos seus amantes pro­tetores: ensinaram-o a espiar a senhora, a mentir-lhe, a atraiçoá-la, ouvindo-lhe as conversas com o senhor para contá-las na cozinha; desmo­ralizaram-no com as torpezas da linguagem mais indecente, com os qua­dros vivos de gozos esquálidos, com o exemplo freqüente do furto e da embriaguez, e com a lição insistente do ódio concentrado aos senhores.

E a sala ajudou sem o pensar, sem o querer, a obra da cozinha.

Domingos Caetano e Angélica não destinavam Simeão para trabalha­dor de enxada, e não o fizeram aprender ofício algum, nem lhe deram ta­refa, e ocupação na fazenda: abandonando-o à quase completa ociosida­de, tolerando seus abusos com fraqueza e cega condescendência, e, o que é pior, simulando às vezes exagerada severidade esquecida logo depois, ameaçando sem realizar jamais a ameaça do castigo, dando enfim ao crioulo facilidades para o passeio, não raramente dinheiro para suas des­pesas fúteis, amando-o como filho adotivo, e conservando-o escravo, sem o querer, sem o pensar, auxiliaram as depravações da cozinha que perver­teram o vadio da fazenda.

E, maior imprudência ainda, ora Domingos, ora Angélica, cada qual por sua vez sorrindo ao pequeno Simeão, e falando aos amigos que, por favor e agrado a eles, o tratavam com prazenteiros modos, dizia sem cau­tela:

– Este não será de outro senhor.

E a promessa contida nas palavras referentes ao escravo ainda pequeno foi por muitas bocas traduzida com acerto ao escravo mais tarde jovem, por turvo juízo que encerrava esperança dependente de morte.

Diziam a Simeão:

– Feliz rapaz! Em seu testamento teu senhor te deixa forro.

E, por aborrecimento da escravidão, pelo anelo da liberdade completa, pelo encanto de chegar a ser dono de si próprio, Simeão escravo era já in­grato; porque não pensava mais que a morte de seu benfeitor fosse um su­cesso lamentável.

A venda rematou a obra começada pela cozinha e auxiliada pela sala.

Não podendo ter parte nos banquetes, nas reuniões festivas, nos diver­timentos da sociedade livre, vendo-os de longe, invejando-os, querendo arremedá-los, Simeão que pairava em uma condição média, mas artifi­cial, inconseqüente e falsa entre as flores da liberdade que não podia co­lher de todo e os espinhos da escravidão que embora não dilacerassem, es­picaçavam-lhe o coração, desceu da situação híbrida para o fundo do abis­mo: do fado da senzala da fazenda, passou depressa aos ajuntamentos da venda, e convivendo ali com os escravos mais brutais e corruptos, e com os vadios, turbulentos e viciosos das vizinhanças entregou-se a todos os de­boches, e se fez sócio ativo do jogo aladroado, da embriaguez ignóbil e da luxúria mais torpe.

Simeão foi desde então perfeito escravo.