A necessidade da alimentação dos vícios torna o vadio ladrão.

Domingos Caetano e Angélica fatigaram-se de duvidar, e cederam à evidência, reconhecendo que Simeão lhes furtava dinheiro e objetos de valor; mas em vez de castigá-lo com severidade, fracos ainda, quiseram ver no crime apenas uma extravagância da mocidade, e limitaram-se a re­preender com aspereza, e a impedir durante algumas semanas as saídas de Simeão.

A insuficiência do castigo serviu somente para irritar o crioulo que, res­sentido da privação de seus prazeres, maldisse dos senhores na cozinha, recrudescendo-lhe a raiva com as zombarias e as provocações dos par­ceiros.

A escravidão já tinha com o seu cortejo lógico e quase sempre infalível de todos os sentimentos ruins, de todas as paixões ignóbeis, estragado o crioulo que talvez houvesse nascido com felizes disposições naturais: o ódio aos senhores já estava incubado na alma do escravo; só faltava para desenvolvê-lo o calor mais forte da ação do domínio absoluto que desu­maniza o homem a ele sujeito.

Simeão acabava de contar dezenove anos e nunca houvera sofrido casti­go algum corporal. Vira por vezes o quadro repulsivo dessas punições que são indeclináveis nas fazendas, mas nem por isso menos contristadoras, e de cada vez que os vira, experimentara abalo profundo e seguido de me­lancolia que durava horas: não falava, não manifestava por palavras ou queixas o que sentia; mas dentro de si estava dizendo: “e também eu posso ser castigado assim!

Entretanto Domingos e Angélica eram senhores bons e humanos.

Um dia quase ao pôr-do-sol Florinda, que aliás protegia muito Simeão, surpreendeu-o, saindo do quarto de seus pais, e no ato de esconder um objeto no bolso.

O crioulo aproveitara a ocasião, em que Angélica e Florinda tinham ido passear à horta, para invadir o quarto do senhor, donde furtara uma corrente de ouro que dois dias antes Domingos comprara a um vendedor de jóias.

– Ainda um furto, Simeão!... – exclamou Florinda que de súbito acabava de chegar.

– E quem lhe disse que eu furtei?... – perguntou audaciosamente o crioulo.

A moça avançou um passo para o escravo e disse-lhe:

– Entrega-me o que furtaste: eu não direi nada e te perdoarei... tu és doido e queres ser desgraçado...

Em vez de obedecer sem insolência e de curvar-se agradecido diante do anjo do perdão, o crioulo recuou, dizendo em alta voz:

– É mentira! Eu não furtei.

À palavra mentira, Florinda estremeceu ferida pelo insulto.

– Atrevido! – bradou.

Uma escrava correu ao grito da senhora-moça.

– Tira do bolso desse miserável o que ele acaba de furtar!

A escrava ia cumprir a ordem; mas Simeão repeliu-a, e tirando a cor­rente do bolso, lançou-a de longe à parceira com movimento tão desastrado ou com tal propósito de ofensa, que a corrente foi cair aos pés de Florinda.

Nesse momento entravam Angélica e Domingos que chegara da roça, e tinha ainda na mão o açoite do cavalo.

– Que foi isto? – perguntou ele.

Florinda era uma santa: compadeceu-se do crioulo e calou-se; a escrava, porém, obedeceu e falou.

Ouvindo a relação do caso e do insulto feito à filha, Domingos Caeta­no, tomado de justa cólera, levantou o açoite e descarregou-o com vivaci­dade sobre as costas de Simeão.

Seis vezes e repetidamente os golpes se tinham repetido, quando Flo­rinda em pranto arrancou o açoite da mão de seu pai.

Simeão recebera as chicotadas imóvel, sem soltar um gemido, sem der­ramar uma lágrima, e sem pronunciar uma só palavra de arrependimento ou desculpa, e quando privado do açoite Domingos Caetano o ameaçava ainda, ele com os olhos turvos e como em olhar febril mediu de alto a bai­xo o senhor que tão justamente o castigara, e a senhora-moça que tão pie­dosa correra a poupá-lo a maior e bem merecida punição.

Foi nesse dia que se desenvolveu o ódio do escravo. O ingrato se tornou odiento e inimigo figadal de seus benfeitores.

Até os dezenove anos corpo virgem de castigos, Simeão vira enfim rea­lizada a sua terrível e sombria apreensão: também ele tinha provado o açoite da escravidão.

O pervertido crioulo não pesou nem por instantes as proporções do desrespeito audacioso, da injúria com que ofendera a senhora-moça, não se lembrou da reincidência do seu crime de furto, esqueceu, desprezou o generoso movimento com que Florinda o acudira, nem mesmo pareceu ter idéia da dor das chicotadas; mas a seus olhos só e incessante se mostra­va a imagem do açoite, quando atirado no ar, a cair-lhe sobre as espáduas, e a imprimir-lhe nas espáduas a marca da última abjeção.

Em falta de pundonor e de vergonha, que a escravidão não comporta, o escravo tem o rancor e o desejo da vingança.

Nas pontas do açoite está o emblema do rancor do escravo: às vezes há nas pontas do açoite marcas de sangue.

Tudo isto é repugnante, é repulsivo, é horrível; mas tudo isto se acha intimamente ligado com a escravidão, e absolutamente inseparável dela.

Onde há escravos é força que haja açoite.

Onde há açoite é força que haja ódio.

Onde há ódio é fácil haver vingança e crimes.

Simeão odiava pois seus senhores, a quem devia os cuidados zelosos de sua infância, amizade e proteção, e cegas condescendências que tanto lhe haviam suavizado a vida de escravo sem sofrimentos de escravo.

Simeão odiava o senhor, que o castigara com o açoite, odiava a senhora que nem sequer o castigara, e, inexplicável nuança ou perversão insensata do ódio, odiava mais que a todos Florinda, a senhora-moça, a santa meni­na que ofendida, insultada por ele, tão pronta lhe perdoara a ofensa, tão prestes se precipitara a livrá-lo do açoite.

O negro escravo é assim.

Se o não quereis assim, acabai com a escravidão.