Eis aí quem era, e o que era o crioulo que, trazendo o cavalo em que montava a correr à desfilada, acabava de chegar à venda.

Tinha ele virado o seu copo de aguardente, cujas gotas restantes atirara ao rosto do menino caixeiro.

Sem fazer caso da palavrosa represália do menino que se pagava da dor dos olhos tocados pela aguardente, dizendo-lhe injúrias, dirigiu-se ao grupo de jogadores do pacau e disse-lhes:

– Se vocês têm dinheiro, entro no jogo; mas há de ser jogo de arrebentar logo; porque estou apressado...

– Quanto trazes?

– Cinco mil-réis... são cinco paradas; quem topa?

Os jogadores hesitaram; dois deles, porém, fizeram sociedade contra Simeão, e travaram a batalha dos cinco mil-réis.

Os outros dois, já depenados de seus magros vinténs, ficaram a olhar.

O vendelhão e o homem barbudo que dormia, e então despertou, vieram apreciar o jogo de grossas paradas.

As cartas contrariaram a pressa de Simeão, equilibrando durante uma hora bem longa a fortuna dos contendores: por fim o crioulo, que não se deixava enganar pelos jogadores mais fraudulentos e melhores empalmadores, ganhou os cinco mil-réis aos dois associados, e não vendo dinheiro no balcão, voltou-lhes as costas.

– Que diabo de crioulo! – disse um dos jogadores infelizes. – Ou ele conhece as cartas, ou fez-se parceiro de S. Benedito nas horas do jogo. É o santo negro que ajuda os diabos negros!

Simeão pôs-se a rir e respondeu:

– Vocês não podem comigo hoje; estou em boa lua de felicidade: o velho lá ficou estirando as pernas...

– Como? – perguntou o vendelhão.

– Deu-lhe um ataque não sei de quê, dizem que é de cabeça, e deixei-o sem sentidos: é verdade! Eu não lhes disse que estava apressado?

Mandaram-me chamar o dr. Pereira.

A gente que ouvia Simeão, desatou a rir, ouvindo-o falar da pressa com que estava.

O velho da viola continuava a tocar imperturbavelmente.

– Então vai-se o Sr. Domingos Caetano? – disse o vendelhão. – Coitado! Não fazia mal a ninguém: e tu ficas forro, Simeão; era o que mais desejavas... olha, não te arrependas.

– Arrepender-me? Por quê? Tenho eu culpa do ataque de cabeça do velho? Se ele se vai, é que chegou a sua hora: boa viagem!

– Onde irás tu, forro, que aches a vida que tens tido escravo?

– Mas por que me conservou ele escravo?... O demônio que o leve, contanto que me deixe a liberdade ... bem pudera também deixar-me al­gum dinheiro... tem tanto e de sobra...

– Mesmo em casa?

– Oh lá! E eu o posso dizer que perfeitamente conheço os segredos...

O vendelhão interrompeu o crioulo.

– Vocês querem ver que o Simeão fica rico?

– E como?

– O diabo do crioulo é capaz de atacar a burra do velho apenas este passar à vida eterna...

Romperam algumas gargalhadas.

Simeão não riu; mas brilharam-lhe de súbito os olhos com flama sinis­tra.

Luzira-lhe na alma uma idéia satânica.

– Tenho pressa! – exclamou ele. – Vou chamar o doutor: mais uma pinga, e corro...

E Simeão, o crioulo estimado, que em hora de desespero da família a quem tudo devia, fora mandado a chamar o médico para acudir a Domin­gos Caetano moribundo, Simeão insensível, ingrato, e cruel parara à venda, bebera aguardente, jogara o pacau uma larga hora, conversara ainda depois, ostentando a sua indiferença pelo estado crítico do senhor, pedira mais aguardente, e já meio embriagado, e ridicularizando a pressa, com que devia levar socorros ao doente em perigo de morte, montou en­fim a cavalo, e a correr seguiu o seu caminho, sem dúvida porque não ti­nha mais parceiros endinheirados, com quem jogar, ou porque alguma nova idéia e inspiração o impeliam.

Gelo de indiferença pela vida ou morte do senhor em hora suprema em que a generosidade acorda no coração mais turvado pelo ressentimen­to, ingratidão franca e desalinhada aos favores do benfeitor no dia lutuoso da agonia, em que o próprio inimigo nobre se sensibiliza, e esquece dian­te da sepultura aberta as ofensas que recebeu do que está morrendo, gelo de indiferença selvagem, ingratidão perversa que não se encontram, se­não na alma do escravo!

Porquê?...

Perguntai-o às objeções, à aniquilação de todos os sentimentos instintivamente piedosos e fraternais, que a escravidão desumanizadora do homem esquece, afoga, mata em suas ignobilíssimas misérias.