Apesar da demora cruel de Simeão, o médico ainda chegou a tempo.

Domingos Caetano estava privado da voz e dos sentidos e, em comatoso­ sono precursor da morte próxima, alvoroçava a esposa e a filha com a idéia tremenda do seu último transe. Quatro dias permaneceu ele nesse estado desesperador até que enfim seus lábios se moveram, sua boca obe­deceu ao coração que despertava para a vida, e dois nomes se lhe ouviram a custo pronunciados: “Angélica.... Florinda...”

Esses nomes mal ouvidos foram os primeiros raios duvidosos da aurora da esperança mais suave, ainda porém trêmula.

É inútil descrever as angústias e a consternação de Angélica e Florinda e a dor de seus parentes e amigos nesses quatro dias, e principalmente nessas quatro noites, em que a cada momento se afigurava o começar da agonia do velho moribundo: foram dias e noites de torturas de todos os instantes, de lágrimas e de orações que na esposa e na filha se misturavam com aqueles acessos de aflitivo desespero que Deus perdoa aos amores santos da terra.

Mas, embalde a violência da dor, o esquecimento de tudo que não era o ameaçado da morte, o pranto que enchia os olhos, o desatino da cons­ternação, Angélica e Florinda viram e não puderam esquecer mais, e to­dos admiraram a constante dedicação com que Simeão estivera sempre ao lado de seu senhor moribundo.

No meio da aflição geral, o crioulo parecia dominar-se com enérgica vontade para melhor servir, e sério, silencioso e grave, em pé a alguns pas­sos do leito de Domingos Caetano, atravessou as noites sem dormir, ten­do apenas por duas vezes cedido à fadiga, reconquistando as forças em breve sono de dia.

Simeão teria sido o enfermeiro de seu senhor, se Angélica e Florinda cedessem a alguém o cumprimento desse dever.

Mais de uma voz tinha dito e repetido:

– Excelente crioulo! Como ama a seu senhor! Há poucos assim. As aparências dissimulavam os sentimentos do escravo.

Simeão contava com a morte de Domingos Caetano, e tão inteligente como desmoralizado e corrompido, fizera suas reflexões e procedia em conseqüência.

Desde muito tempo desejava que chegasse o dia do falecimento do senhor, calculando com a verba testamentária que o deixaria liberto: esse dia chegava enfim, ele dentro de si o festejava; mas, tendo acabado de conceber criminoso projeto, convinha-lhe fingir-se compungido e triste, não afastar-se um só momento da casa.

O sarcasmo grosseiro do vendelhão que provocara as gargalhadas dos vadios reunidos na venda, lembrara ao crioulo um atentado que se lhe afigurava de fácil execução.

O escravo já não se contentava com a liberdade, queria também dinheiro.

A morte, que se demorava, impunha-lhe privação de passeios, de deboches, e da prática dos seus vícios; não lhe seria difícil escapar-se da fazenda com pretextos fúteis, ou sem eles; Simeão, porém, não queria que o senhor morresse em sua ausência; conhecendo perfeitamente os escaninhos da casa, sabia onde Domingos Caetano tinha encerradas grandes somas de dinheiro, e planejara aproveitar a desordem e as convulsões da família na hora terrível do passamento para roubar quanto pudesse.

Eis o segredo da aparente dedicação do escravo.

Simeão velava, é certo, diante do leito de seu senhor moribundo: afetava tristeza e gravidade de dor concentrada; mas seus olhos fitos no corpo de Domingos Caetano somente procuravam os sinais do progresso do mal e da aproximação da morte, que lhe prometia liberdade e riqueza roubada.

Nesse longo velar, olhando o senhor, Simeão às vezes lembrava os benefícios, as provas de amizade que recebera do velho que ia morrer; logo porém, sufocava o natural assomo de generoso sentimento, recordando o açoite que caíra sobre suas espáduas, e prelibando a liberdade que em breve devia gozar. Sem poder vencer-se, por momentos sensibilizava-se ao aspecto do corpo quase cadáver, e ao ruído abafado do soluçar da família; mas, só por momentos homem, era horas, dias e noites simples escravo, e ainda ao aspecto do corpo quase cadáver do senhor, e ao ruído abafado do soluçar da família ocultava sob a exterioridade mentirosa de compunção e tristeza, o gelo, a indiferença ingrata e os instintos perversos escravidão.

O aborrecimento que ele já votava ao senhor dormia resfriado pela morte, que presumia próxima; a morte, porém, era condição do sono do aborrecimento, e o senhor moribundo somente podia merecer do escravo o olhar fixo de vigia, insensível ao doloroso transe, esperando com aborrecido cansaço a última cena de um caso fastidioso.

Simeão foi ator nesse teatro de reais e despedaçadoras aflições, em que só ele tinha papel estudado. Os transportes de dor, em que se estorciam Angélica e Florinda, não o comoveram. Viu sem se enternecer as lágrimas que Angélica chorara de joelhos, abraçando os pés de seu marido quase agonizante, e em um momento supremo, em que a todos se afigurou derradeiro transe de Domingos Caetano, e quando Florinda nesse desespero que olvida tudo, tudo e até o pudor de donzela, quando Florinda desca­belada, delirante se lançava no leito de seu pai, e era dali arrancada por parentes, contra quem se debatia em desatino, ele, o escravo, o animal composto de gelo e ódio, ele teve olhos malvados, sacrílegos, infames que pastassem publicamente nos seios nus, nos seios virginais da donzela que se deixava em desconcerto de vestidos pelo mais sagrado desconcerto da razão.

Simeão, escravo, contando com a liberdade, e calculando com o roubo de sacos de prata e ouro, velava sinistro ao lado de seu senhor agonizante, estudando-lhe na desfiguração, na decomposição do rosto, e no arfar do peito os avanços da morte, que era o seu desejo.

E a esposa e a filha do velho que parecia agonizante, e os parentes e os amigos que tinham acudido ao anúncio do grande infortúnio, diziam, vendo Simeão vigilante e dedicado junto de seu senhor:

– Que agradecido crioulo! Há poucos assim.

Mas no entanto Simeão era mais do que nunca ingrato e perverso.

Não condeneis o crioulo; condenai a escravidão.

O crioulo pode ser bom, há de ser bom amamentado, educado, rege­nerado pela liberdade.

O escravo é necessariamente mau e inimigo de seu senhor.

A madre-fera escravidão faz perversos, e vos cerca de inimigos.