Três dias depois, Domingos Caetano recebeu todos os socorros da igreja, todos e até a extrema-unção, com a alegria de verdadeiro católico que festeja agradecido a sagrada visita do Senhor.

A mulher e a filha do paralítico não ousaram opor-se ao santo empenho do doente amado.

E o Nosso Pai foi recebido na casa sem coro de lágrimas, e com religiosos cantos de adoração católica.

Contrito e feliz na alma, Domingos Caetano voltou depois e ainda santamente o coração para a terra.

Paralítico, e embora certo de morte próxima, um esposo e pai, o chefe da família é ainda e sempre enquanto vivo a providência vidente que vela pelos seus: há nele o amor que só a morte apaga, e que durante os restos da mesquinha vida, todo se entrega aos cuidados que ainda são de si, sendo da família, e sendo dalém-túmulo.

Porque os pais não morrem de todo enquanto vivem os filhos, nos quais se revivem pelo amor.

Domingos Caetano ocupava-se incessante do futuro de Angélica e Florinda: ia deixá-las ricas, mas sós na terra, ricas e por isso mesmo mais expostas aos perigos, aos enganos e às perfídias do mundo: sentiu que fecharia os olhos com a consolação do viajante que dorme descansado o termo da viagem, se pudesse deixar Angélica e Florinda à sombra de um protetor natural e seguro: arrependeu-se de não ter mais cedo facilitado casamento de sua filha, cujo esposo seria o mais interessado diretor da casa e da família.

Adivinhando o que não lhe quisera dizer o médico, viu o anúncio da aproximação do passamento na agravação de seu mal: os restos de dúbio movimento, e de fraco sentimento do braço e perna condenados desde o ataque cediam à completa paralisia, morrendo antes da morte de seu dono; os outros sintomas, a que dantes pouca importância ligava, amiudavam-se: no rosto a súbita palidez, nas mãos e nos pés o suor e o frio do gelo lembravam-lhe a miúdo a sentença do médico; sua observação pláci­da, serena e dissimulada parava aí; mas em um certo mal-estar, e na respi­ração e em todas as forças da vida, que repetidamente por instantes pare­ciam suspender-se, ele pressentia a descarregar-se sobre sua cabeça o últi­mo golpe.

O bom velho conversou longamente com a esposa: provavelmente ne­nhum dos dois era estranho à suspeita de alguma suave afeição da filha; ambos se acharam de acordo sobre o merecimento daquele que conseguira a glória de falar, embora muito de longe, com a eloqüência dos olhos e sem a ousadia da palavra, ao coração angélico da sua Florinda.

O tempo urgia: o pai não podia esperar a espontânea confissão da fi­lha.

A apreensão da morte que avançava, impunha o dever de chamar o modesto e tímido ambicioso de amor à posse do tesouro ambicionado.

Havia pressa justíssima: pressa de esposo amante para a filha que ia ser órfã, de zeloso protetor para a esposa que ia ser viúva.

Na tarde do segundo dia depois daquele que fora sagrado pela visita do Senhor, Domingos Caetano, forjando amorosa e perdoável mentira, pretendeu experimentar sensíveis melhoras, e ostentando-as com fingido contentamento, encerrou-se no seu quarto com Angélica e Florinda.

Era a hora do crepúsculo, e o quarto cuja porta se fechara, e onde não se acendera luz, estava escuro, como se já fosse noite.

A instrução não dá, a educação apenas arremeda as delicadezas do sen­timento: a educação é mãe da cortesia, e adota como pode a delicadeza que é filha só do sentimento: há homens rudes que mal conhecem os lavores da sociedade, e que admiram pelo melindre e pelos delicados apu­ros do seu amor.

Domingos Caetano escolhera aquela hora do crepúsculo, que era noite no quarto fechado, para falar a Florinda sobre o seu casamento, ouvir-lhe talvez uma terna confissão, poupando-a à claridade da luz que multiplica os vexames e as confusões do pudor.

As confidências não foram longas.

O pai falou como amigo, a mãe animou a filha, e esta com voz trêmula e sumida e com virginal acanhamento disse o mimoso segredo do seu co­ração: Hermano de Sales amava-a, e ela era sensível ao seu amor.

Hermano era filho de um lavrador vizinho, que dispunha de poucos meios, mas de subida reputação de honestidade: trabalhador ativo como seu pai, agradável de figura e de trato, estimado geralmente no lugar pela nobreza de seu caráter, o mancebo era digno de Florinda.

Domingos Caetano abençoou o amor de sua filha, e anunciou-lhe que seu casamento com Hermano se realizaria dentro de duas semanas.

O pobre pai paralítico tinha pressa.