Simeão andava triste e contrariado.

A liberdade com que contava, demorava-se; e o dinheiro para o jogo, para os fados devassos, e para a vida desenfreada ia escasseando.

Além disso o estado lamentável de Domingos Caetano exigia cuidada assíduos, companhia constante que o obrigavam a não se ausentar da fazenda.

Era raro que o deixassem sair de dia, e as noites já não bastavam ao crioulo vadio e altanado.

A moléstia de Domingos Caetano dera a Simeão pela primeira vez trabalho atarefado e longo.

O interesse que ele simulara por seu senhor, o concurso vigilante e dedicado que prestara ao tratamento do velho suposto moribundo nos dias e noites de mais iminente perigo, tinham recomendado o seu préstimo à família, que cheia de cega confiança o queria sempre junto do paralítico.

Simeão não ousava desmascarar-se, e submetia-se, embora às vezes murmurando, ao cumprimento do dever que lhe impunham.

O dever era santo, era todo de caridade, virtude que resume todos os mandamentos dados por Deus aos homens, como base de sua fraternidade na terra.

Mas esse exercício da caridade que em um homem livre fora virtude católica, no escravo era obrigação material, e portanto não falava nem ao coração, nem a consciência.

Simeão carregava seu senhor do leito para uma cadeira, da cadeira para o leito, como o burro carrega um fardo, e o boi puxa o carro.

O trabalho forçado fazia aumentar a aversão que ele votava aos senhores.

Quando o velho paralítico se arrastava agarrado ao seu braço, vinha-lhe às vezes o pensamento de fingir escorregar, e de cair para molestar o infeliz doente. Era só o cuidado da liberdade, da alforria que, conforme o pensar de todos, o esperava contida no testamento de Domingos, que o impedia de fazer aquele mal.

No entanto Simeão era sempre perverso e até por diversão ou por infa­me e audacioso e revoltante entretenimento ainda era perverso.

Desde o turvo dia do açoite seis vezes descarregado sobre suas costas, detestava Florinda; mas por satisfação do desrespeito, por luxo de ousadia e de descomedimento, por instinto brutal e gostosamente abusivo e inso­lente, também desde o acesso de dor enlouquecedora, em que vira no su­blime desalinho filial os seios nus e formosos da senhora-moça, Simeão, preso, à força contido ao lado do velho paralítico, tomava por distração, que aliás disfarçava, o estudar os encantos físicos, a graça do andar, e a gentileza de Florinda, fazendo dessas observações objeto de conversação, e de atrevidas e obscenas ilações no inferno da cozinha.

O crioulo malcriado e infrene pelos hábitos da impunidade não se atrevia, é certo, a sonhar desejo criminoso e horrível contra a pureza angé­lica da senhora-moça; mas no desprendimento licencioso da língua enve­nenada, e nas obscenas imaginações de escravo desmoralizado e só idea-dor de gozos materiais, apreciava a seu modo, e supunha exaltar, quando aviltava, as graças e os modos, o olhar, e o riso, as formas e os movimentos do corpo da senhora-moça; e no meio das risadas dos parceiros, fazia o elogio dos dotes físicos de Florinda, como se tratasse da escrava libidinosa e corrupta, com quem na noite antecedente dançara o fado que apenas precedera a lubricidade brutal.

A palavra sacrílega da escravidão que se aperta e não pode sair dos ho­rizontes baixos e sórdidos da imoralidade ofendia, ultrajava pois sem me­dir as proporções do ultraje a branca pureza da filha do senhor.

Simeão distinguia em Florinda a senhora-moça da mulher material­mente considerada, e aborrecendo a senhora-moça, divertia-se em ofen­der por palavras de induções profanadoras a mulher que era ainda um anjo de inocência.

O escravo nunca ou raramente ousa levantar os olhos sobre sua senhora e atentar contra sua honra; mas sua imaginação depravada muitas vezes se atreve a romper véus sagrados e a expor em nudez grosseira e escandalosa­mente ideado o corpo da esposa ou da filha de seu senhor.

A escravidão é serpente: sua língua derrama sempre veneno.