O verdadeiro merecimento tem seus privilégios.

Eram muitos os mancebos que ardiam por valer um olhar e um sorriso de Florinda: talvez alguns se achavam realmente cativos de sua beleza; outros, menos apaixonados pela mulher, ambicionavam-lhe a riqueza; mas não houve um só que desconhecesse o acerto da escolha feita pelo coração da menina.

Hermano era brilhante sem jaça: gentil, delicado em seu trato, honesto e laborioso, de gênio suave e de força e coragem provadas, estava talhado para a vida rude do fazendeiro ativo, e para chefe de uma família honrada.

O dia do casamento de Hermano e Florinda foi de esplêndida festa na fazenda: embalde a oposição da esposa e da filha, embalde os rogos do noivo, Domingos Caetano o quis assim.

– Quero festa e alegria, porque é imenso o favor que mereci de Deus – dissera ele. – Morrer com a certeza de deixar com protetor zeloso e seguro minha mulher e minha filha não é morrer de todo, é viver no futuro, é viver além do túmulo: o mais feliz sou eu! Festejem-me! Alegrem-se: porque é a minha última festa.

E como Florinda se alvoraçara dolorosamente com a idéia da última festa, o pobre pai arrependido da verdade, apadrinhara-se com a mentira não-pecado, santa mentira do amor paterno, e rindo mal, e a fingir esperanças, e a zombar de si mesmo, chamara a filha e lhe dissera, embusteiro sublime, com jubilosa voz:

– Enganei-me: não será a última... hei de ter outra, quando for o padrinho do teu primeiro filho... depois sim... mas depois de abençoá-lo muitas vezes... morrerei então.

E Florinda saíra para chorar às escondidas a enganosa esperança de seu pai; e o pobre velho, ficando a sós, também chorara o triste engano, com que consolara a filha.

Enfim o dia das núpcias chegou: o casamento de Hermano e Florinda foi celebrado na capela da fazenda. Domingos Caetano, conduzido em uma cadeira, assistiu a ele, abençoou e abraçou os noivos, e disse grave­mente a Hermano:

– Meu filho, és mais que marido, és pai desta família.

O concurso dos parentes e amigos foi numeroso.

Houve festa para todos na fazenda. Os noivos e connvidados tiveram banquete suntuoso e animado baile à noite.

O velho paralítico apareceu um instante à mesa para saudar seus filhos, e uma hora ao baile para excitar a dança e a alegria. Todo o mais tempo fi­cou no seu quarto, e à esposa, à filha, ao genro, a quantos o iam ver, dizia contente:

– Estou melhor... muito melhor... este casamento me faz bem...

Ele porém sofria sempre e muito: só na alma se sentia melhor.

Mas a família, os parentes e os amigos não esqueceram o estado do ve­lho paralítico e penante: às onze horas da noite puseram termo ao baile e dissolveram a reunião.

Entretanto a festa era geral na fazenda.

Para os escravos dispensados de todo o serviço nesse dia tinham sido mortos quatro bois, e se haviam distribuído em abundância garrafas de vinho e de aguardente.

À noite em três senzalas diversas ferviam três fados, e o canto rasgado e alto dos tocadores de viola em desafio ecoava ruidoso.

Os sentimentos generosos, o cuidado estremecido da família, dos pa­rentes e dos amigos tinham marcado cedo a terminação do baile.

A indiferença brutal dos escravos prolongava os fados, aturdindo a fa­zenda com a tempestade de suas músicas e de seus cantos selvagens.

E de espaço em espaço os escravos gritavam em coro:

– Viva sinhá-moça!

Esses gritos eram como hinos brilhantes aos ouvidos de Domingos Cae­tano o qual absolutamente proibira que se perturbassem os folguedos dos escravos que festejavam o casamento da sua Florinda.

Bom, mas inexperiente velho!

Os escravos aplaudiam sinceramente apenas a carne fresca assada, as sobras do banquete, o vinho e a aguardente em abundância, em que se fartavam. Todos eles gritavam – viva sinhá-moça – como indiferente­mente soltariam qualquer outro grito, que os animasse a beber, e ne­nhum deles por um só e breve momento pensara no incômodo que a sua gritaria podia causar ao senhor doente.

Pouco, menos que pouco, nada lhes importavam a sorte e a vida de Domingos Caetano, a boa ou má fortuna de Florinda, e a felicidade de Hermano.

No marido da senhora-moça viam um novo senhor, e antes da festa que os fazia olvidar tudo, alguns deles tinham perguntado a outros:

– Será melhor ou pior senhor?

E não poucos haviam respondido:

– Mais ou menos chicote, será sempre cativeiro.

O que se podia traduzir assim:

– Sempre escravidão, sempre ódio.

E os fados estrepitosos avançavam pela noite, impedindo o sono do velho doente.

Soavam de contínuo os gritos: – viva sinhá-moça!

Mas se chegasse às senzalas dos fados a notícia da morte do senhor, da senhora, ou da sinhá-moça festejada, e com a notícia não viesse a ordem da cessação da gritaria e das danças bacanais, os fados continuariam sem atenção às lágrimas e ao luto dos senhores, e talvez fosse tal infortúnio o incentivo para maior alegria.

Às duas horas da madrugada terminaram os fados dos escravos por ordem que Angélica mandara, escondendo-a à condescendência e à tolerância festivais do pai que abençoava por todos os modos o feliz casamento da filha.

Mas além das duas horas da madrugada velavam ainda nesta noite um grande padecimento e dois grandes amores.

O grande padecimento de Domingos Caetano, que gastava na insônia os restos da vida em ruínas.

O grande amor da esposa, da companheira de longos anos, que se prendia àquela vida tão cara e tão prestes a desprender-se do corpo.

E grande amor dos noivos que, no egoísmo da glória desse amor, velava, esquecendo o mundo, o futuro, tudo... até o pai que se adiantava para a morte.

Perdão para esse egoísmo! E a embriaguez dos noivos.