Domingos Caetano tinha morrido ao anoitecer: ao pronunciamento do novo ataque seguiu-se logo a morte, quase sem agonia.

Quando Simeão chegou à casa, já havia cessado aquela desordenada e completa abstração do mundo, com que a dor suprema dos que ficam atesta o corte violento e profundo dos laços que os ligavam àquele que se fora.

Na casa havia pranto, consternação, luto; mas o frenético desespero da primeira hora do triunfo da morte já tinha passado; a dor desafogava-se em lágrimas, rompia pelas válvulas dos gemidos e dos lamentos; mas já havia consciência da dor.

E no seio da família consternada, um nobre mancebo cumpria o dever de velar por todos e de pensar na vida, contemplando a morte.

Hermano viu abraçadas com o cadáver de Domingos Caetano a sogra e a esposa que lhe ficavam confiadas: em poucos dias tinha sabido amar o pai de Florinda, como se lhe conhecesse as virtudes durante um século; chorou-o por amor, vendo-o morrer; mas combateu e domou os excessos da dor pela religião do dever: foi homem.

Simeão, chegando à fazenda, preparou como pôde a máscara do sentimento para disfarçar a indiferença malvada da sua ingratidão.

O aspecto do cadáver do homem que se conheceu, compunge aos próprios que o não amaram vivo: Simeão teve lágrimas, vendo o corpo inanimado de Domingos Caetano; aproveitando as lágrimas, ululou, fez-se arrancar à força do quarto mortuário, e representou enfim a comédia da dor.

Depois observou, viu e refletiu.

O roubo por astúcia era impossível: a família do morto não ficara sem pai: havia um cão fiel e insone, velando à porta do lar: era a fidelidade do genro de Angélica, e do marido de Florinda.

Simeão baniu de seu ânimo a falsa esperança do roubo, maldizendo do seu passeio, que o não deixara explorar a hora doida e desesperadora que preside às agonias do moribundo, e ao despedaçamento dos corações da família.

A idéia da alforria absorveu a alma do escravo.

Não ousou perguntar se o velho deixara testamento: contava com este, sabia da sua existência; ardia porém por conhecer-lhe as disposições: en­tretanto considerava-se emancipado.

Apurou o ouvido, e teve a certeza de que se encontrara o testamento de Domingos Caetano.

Melhor e ainda mais animador anúncio do que isso, um parente da ca­sa, ao vê-lo em hipócrita aflição, lhe dissera, batendo-lhe no ombro:

– Tens razão de chorar, crioulo! Teu senhor te amava muito, e não se esqueceu de ti.

Simeão expandiu-se internamente: ao menos era certa a liberdade.

Animado com a segurança da emancipação, dobrou as aparências do sentimento.

Sacrílego e perverso, confundiu fementidos gemidos com a desolação de suas senhoras naquela cruelíssima hora de segunda, derradeira, inexprimível morte, nessa hora do selo, do reconhecimento forçado da morte, quando o cadáver sai de casa, quando o préstito do enterro piedoso rouba à família o nada, que inda é muito a seus olhos, quando a reza fúnebre do sacerdote parece um adeus, o último, que em nome do finado recebem os que o choram.

O sacrílego viu sair enfim o caixão que levava Domingos Caetano ao cemitério, e respirou livre do labor da comédia que representava.

Ansioso esperou a solene declaração da sua alforria; a noite veio, e ele não dormiu.

Não despertou; levantou-se aos primeiros anúncios do dia: saudou sor­rindo a aurora da sua emancipação.

Mas o sol brilhava, e ninguém lhe dizia: – és livre.

Simeão começava a respirar afrontado.

Ao meio-dia Hermano chamou-o, e ele acudiu pressuroso.

– Simeão – disse Hermano, mostrando-lhe o testamento de Domin­gos Caetano – meu sogro lembrou-se de ti.

E leu-lhe a respectiva verba testamentária.

Simeão ficava escravo de Angélica e a ela recomendado com afetuoso interesse, devendo entrar no gozo de plena liberdade por morte de sua senhora.

O crioulo caiu das nuvens. Era ainda escravo, embora condicional­mente.