Era meia-noite, quando os cães latiram com furor.

Hermano acordou ao grito de alerta das suas sentinelas, e quis levantar-se do leito; mas o latir dos cães serenou tão depressa e o braço de Florinda pousava tão suave e meigo sobre o seu ombro, que ele não se animou a perturbar o sono da esposa, e em breve adormeceu.

À uma hora da noite soou três vezes seguidas perto da casa o piar sinistro de uma coruja.

Eufêmia, que velava, ergueu-se da esteira e foi, pé por pé, mas trêmula, até a cozinha, que era vasta e que, além da porta fortíssima, tinha ainda uma janela pesada, larga, e inabalável; assegurando-se pelo ouvido atento de não ter sido seguida, estendeu o braço e arranhou a porta.

De fora arranham também a porta.

Eufêmia dirigiu-se então à janela, desprendeu sem ruído as duas traves de ferro, com o vestido envolveu a enorme tranca igualmente de ferro para ver se abafava o ranger daquele grilhão da fortaleza, hesitou... tremeu... reanimou-se, e suspendendo a respiração e com ímpeto nervoso deu a volta e destrancou a janela que se abriu em par.

Saltaram logo para dentro quatro homens; o Barbudo, que trazia es- pingarda e uma grande faca, dois escravos da fazenda seduzidos por Si- meão, e este desprendendo ameaçadores machados.

Fora murmuravam surdamente vozes sinistras. Os quatro assaltantes deixavam sócios a cobrir-lhes a retirada.

Os cães não latiam mais; Simeão os tinha trancado facilmente em seu quarto.

O Barbudo passou uma lanterna furta-fogo a Simeão que marchou adiante, ensinando o caminho.

O que em seguida se passou foi horrível.

Chegados à sala de jantar o crioulo mostrou ao lado direito a porta do aposento de Hermano e de Florinda; dois dos perversos, o Barbudo e um dos negros colocaram-se aos lados dessa porta: o outro negro recebeu a lanterna e seguiu a Simeão que avançou para a frente e entrou no quarto de dormir de sua senhora.

Angélica dormia profundamente, e diante dela em uma esteira resso­nava a sua escrava estimada, a mãe de Eufêmia.

Simeão aproximou-se do leito, e sem compaixão da fraqueza, sem lembrança dos benefícios, filho celerado da escravidão que é horror, de­mônio da ingratidão e da perversidade, levantou o machado, e descarre­gou-o sobre a cabeça de Angélica, que morreu sem expirar.

O machado partira pelo meio a cabeça da protetora e segunda mãe do assassino; mas ao ruído do golpe a velha escrava despertando assombrada, e vendo a cena atroz, soltou um grito pavoroso:

– Simeão!

O negro da lanterna deu tão forte pontapé no estômago da velha escrava que a estirou no chão sem sentidos.

Hermano despertara ao estrépito, percebera luz, adivinhara perigo, e saltando da cama tomara um revólver, e com tanta rapidez se lançou fora do quarto, que escapou aos golpes desfechados pelos dois ladrões que o esperavam à porta.

Mas o Barbudo se atirou sobre o mancebo, e a luta começou; luta desi­gual de um contra quatro, de um, a quem o revólver falhara, pois que o tinham nesse dia descarregado traiçoeiramente, contra quatro armados e ferozes.

Florinda apareceu em desalinho e ululante, e caiu de joelhos a pedir a vida do marido...

Simeão a viu nesse desalinho, e correu para ela, agarrou-a, e ultrapas­sando todos os furores do crime, injuriou-a com o contacto de suas mãos devassas e de seus lábios torpes.

Aos gritos de Florinda e à enormidade do insulto, Hermano, já esfa­queado e banhado em sangue, em um arrojo de desesperação, sublime, incrível, com a raiva a lampejar-lhe nos olhos, Hércules de um momento, escapou-se aos braços dos três malvados, a um atirou por terra, a outro ar­rancou a faca, e de um salto foi cravá-la em Simeão que lhe ultrajava a esposa.

Logo porém o Barbudo desfechou um tiro, tiro providencialmente pie­doso; porque a bala atravessou dois corações, e Hermano e Florinda caíram mortos ao lado um do outro.

Simeão ficara ferido no ombro.

Tudo isto se passou em dez minutos ao menos.

Mas aos gritos de Florinda, e ao tiro que a matara e ao marido acordou o feitor da fazenda que tocou a rebate, chamando os escravos, que nem todos ausentes, e muitos dos presentes alheios ao atentado, acudiram trazendo por armas foices e machados.

Simeão, esquecendo o golpe que recebera, e o sangue que do ombro lhe corria, deixou um dos negros na sala onde estavam os dois cadáveres e com o Barbudo e o outro negro que levava a lanterna, voltou ao quarto da senhora assassinada, arrombou facilmente a gaveta da velha mesa, e apoderando-se de uma grossa chave, foi ao fundo do quarto, arrancou precipitado uma cortina de chita que cobria pequena parte da parede e mostrando em grande vão que havia nesta uma caixa de jacarandá chapeada de ferro, abriu rápido duas fechaduras, e escancarou a caixa que estava cheia de pequenos sacos contendo moedas de ouro e prata.

Os três ladrões lançaram-se ao tesouro: ao ruído da colheita dos despojos correu o outro escravo que ficara na sala; imediatamente porém rompeu a vozeria e o estrépito do combate ao pé da casa.

Os quatro miseráveis seguidos de Eufêmia, todos carregados de ouro e prata, fugiram precipitados pela porta da cozinha, e ganharam o campo abandonando os cúmplices, que se batiam.

Só de muito longe assobiaram repetidas vezes anunciando a retirada, e metendo-se logo pelo mato, cada qual cuidando exclusivamente de si.

Simeão contara demais com as suas forças: ferido, e tendo perdido muito sangue, caiu desanimado, quando procurava saltar a cerca da fazenda.