Paulo Borges era um rico fazendeiro do município de... na província do Rio de Janeiro; no tempo do começo deste romance, que é a história resumida do mais triste período de sua vida, contava ele quarenta e seis anos de idade. Imaginai um homem alto com os cabelos castanhos e crespos, mas nem sempre penteados, fronte um pouco baixa sob sobrancelhas bastas, olhos pretos e belos, nariz aquilino, boca rasgada, e lábios grossos e eróticos, rosto oval e de cor que devera ser branco-rosado, se o rigor do sol não o tivesse bronzeado; magro sem exageração ou antes seco de músculos, peitos largos e mãos engrandecidas e calejadas pelo trabalho, e tereis diante de vós Paulo Borges fisicamente considerado.

A simplicidade e quase pobreza do seu trajar que desconhecia o império das modas e a escolha de finos tecidos, seus modos rudes, sua atividade constante, uma certa aspereza artificial de gênio, presidindo ao governo e disciplina da fazenda; a frugalidade e a economia do seu viver, o escrúpulo religioso no cumprimento da palavra dada e a diligência excessiva no trabalho, mostravam nesse homem o tipo do lavrador honrado, mas sem­pre ambicioso de duplicar, de centuplicar seus capitais, o tipo do lavrador que hoje raramente se encontra, do pobre rico que se subtraía ao mundo, e só queria conhecer a roça e a casa, os escravos e a família, trabalhando sempre, gastando pouco, ajuntando muito, e não pesando a nenhum ou­tro homem como ele.

Paulo Borges casara-se aos quarenta anos de idade com uma senhora ainda jovem, simples de costumes, honesta, laboriosa, afeita à vida rural dos fazendeiros, e que trouxera ainda ao marido alguns contos de réis de dote: em seis anos Teresa já tinha dado a seu esposo dois filhos, cuja cria­ção não a poupava aos cuidados domésticos e aos que particularmente corriam por sua conta na fazenda, isto é a direção da dispensa, da enfermaria, e da grosseira rouparia dos escravos.

O casamento não modificara os costumes do fazendeiro; a sua voz retumbante anunciava ainda mais do que o sino da fazenda a alvorada e a hora do começo do trabalho: Paulo Borges tomava uma xícara de café que Teresa lhe trazia, e logo seguia para a roça, onde almoçava e jantava à sombra das árvores; muitas vezes armava-se da enxada ou da foice e excitava os escravos com o seu exemplo, e quando isso não fazia, dispunha no meio deles e em alta voz o serviço; o sol entrado, voltava para casa coberto de suor e pó, mas infatigável e feliz: era assim que passava anos inteiros, à exceção dos domingos e dias de guarda, nos quais ficava em casa, donde nunca ou só por extraordinária exceção saía, somente para casos de negócio importante.

Paulo Borges tinha essa espécie de preocupação que é um mau cálculo infelizmente muito comum entre os nossos fazendeiros e lavradores, empenho sempre ativo de comprar terras para estender as que já possui às vezes demais, e de multiplicar também a escravatura, esquecendo os meios de suprir muitos braços, poupando o capital: ainda bem que a força da necessidade e a lição da experiência têm já introduzido em muitas fábricas as máquinas e os processos que economizam tempo, gente e dinheiro, e na preparação e limpa das plantações e sementeiras os instrumentos que produzem igual resultado. Quanto ao gosto decidido de arredondar as terras possuídas, comprando novas e contíguas, o costume continua a ser lei.

Paulo Borges, pois, era dominado por esse fraco da sua natureza de lavrador mais que abastado: onde havia terras a vender junto ou perto das suas, ele as tomava, ainda por elevado preço, imobilizando assim avultadas somas; se notícias lhe chegavam de arrematação de escravos na vila, ou de venda de alguns nas proximidades da sua fazenda, arrancava-se aos encantos da roça, e lá ia realizar a compra: jamais se ocupara de tomar informações sobre a moralidade, ou antes sobre os graus de desmoralização da gente que introduzia na sua fazenda, nem lhe importava a celebridade ruim de um ou outro escravo: não comprava homens, comprava máquinas; queria braços e não corações; além disso tendo fama, e gabando-se de senhor severo e forte, entrava nos seus timbres amansar os negros altanados e incorrigíveis.

Também na fazenda os castigos cruéis poucas vezes se observavam; porque a certeza deles nos casos graves desanimava os escravos mais audaciosos, que sabiam como o senhor nunca punia sem razão, e nunca perdoava, quando a tinha para castigar.

Cinco anos depois do seu casamento, Paulo Borges deixou de ir à roça uma manhã; deu suas ordens a um escravo que na sua falta servia de feitor, vestiu-se com algum esmero, e, almoço acabado, tomou o chapéu para sair.

– Isto é novidade grande, senhor Paulo – disse-lhe a mulher, que era sempre alheia aos negócios externos de casa.

– Há hoje arrematação de escravos na vila; são vinte e acostumados já à lavoura da cana e ao serviço do engenho...

– Já temos tantos... mais de cem...

– Tomara eu mil... tu me dás um filho de dois em dois anos, e aí es­tás a empurrar-me com o volume do terceiro que não tarda a saltar no mundo, e não queres que eu prepare futuro para a nossa ninhada?

Teresa sorriu-se convencida.

Paulo Borges montou a cavalo, partiu a galope, e à tarde voltou, tra­zendo diante de si vinte escravos, vinte homens, umas míseras máquinas vivas trazendo no rosto a expressão da indiferença estúpida e da imbecili­dade; outros cabisbaixos, apreensivos e profundamente melancólicos.

Entre eles vinha Pai-Raiol, um negro feio e já desfigurado por moléstia ou por castigos.

Teresa, que acudira a receber seu marido, ao correr com os olhos os seus novos escravos, sentiu um movimento de repulsão vendo o Pai-Raiol, e voltando o rosto, disse baixo a Paulo Borges:

– Que má cara tem este negro!

Pai-Raiol ouviu a observação da senhora, que o apontara com o dedo; mas ficou imperturbável, frio, indiferente, como se nada tivesse ouvido.