O Pai-Raiol não temia nem a bulha, nem a inveja dos escravos seus parceiros, a quem chamara sapos, e pouco se lhe dava de que soubessem de seus grosseiros amores aqueles a quem dera o nome de tigres que na terra do cativeiro não atacam de noite.

O que em seus cálculos ele procurava, era esconder, quanto possível fosse, as suas relações freqüentes e íntimas com Esméria que aliás uma ououtra vez tinha sido vista em sua senzala, como na de muitos outros.

Era igualmente fingido o ciúme que manifestara ameaçador: procurava de novo Esméria menos como mulher, do que como instrumento de plano celerado; mas para subjugá-la, infundia-lhe o terror.

A crioula viva e sagaz, que conhecia perfeitamente o antigo amante,descria a sua paixão; por vício porém e por medo sujeitava-se a ele, doidejando a imaginar as conseqüências da renovação de seus laços íntimos.

Como quer que fosse, o Pai-Raiol e Esméria viram renascer a sua antiga união de breves semanas, que então se tornou mais duradoura e mais firme.

As precauções recomendadas pelo Pai-Raiol não lhe aproveitaram por muitos dias. Esméria, temendo o amante ou dele satisfeita, tornou-se mais esquiva aos outros escravos que a espiaram e descobriram a sua convivência noturna com o silencioso, misantropo e feio negro da senzala dantes solitária.

O Pai-Raiol não gostou; mas sujeitou-se a essa contrariedade, e a sua ligação com Esméria não foi mais dissimulada: os senhores fingiam ignorá-la; ou toleravam-na não se ocupando dela; os escravos parceiros, tendo certo respeito ao amante, deixaram-no em tranqüilo gozo do seu amor.

Entretanto e por isso mesmo que o segredo desaparecera, o negro tornou-se mais exigente e aos domingos e dias santificados reclamava com renitência a companhia de Esméria, que raramente podia condescender nesse ponto, presa como se achava ao serviço interno da casa da família.

– Esméria trabalha sempre? Em quê? – perguntou-lhe uma noite Pai-Raiol.

– Cozinho; quando não cozinho, engomo; quando não cozinho, nem engomo, cuido das crianças, meus senhores-moços.

– E não tem domingo?

– Nunca.

– O cachorro é melhor; passeia, quando quer: o negro da roça é pior do que o cachorro; mas é melhor que Esméria, porque tem domingo.

– É assim mesmo – disse a crioula tristemente.

– Mas Esméria vive contente...

– Seria pior andar triste: guardo a tristeza e a raiva aqui.

E a escrava apontou para o coração.

Pai-Raiol soltou horrível risada, arreganhando a fenda que lhe separa­va pelo meio o lábio superior.

– De que ri você, Pai-Raiol?

– Do coração de negra escrava.

Esméria ressentiu-se e murmurou:

– Também é negra e vil a fornalha, porém às vezes dela salta a brasa, ou rompe a labareda que queima...

O Pai-Raiol calou-se.

Dias depois na tarde de um domingo ele viu de longe Esméria que car­regava o menino Luís, acompanhando os senhores em passeio pelo campo, e notou que Paulo Borges e Teresa por vezes se voltavam de preferência para outra escrava, que levava nos braços o filhinho nascido de poucos meses.

Pai-Raiol ficou meditando profundamente, e à noite, quando Esméria veio encontrá-lo, disse a esta:

– Menino Luís, pequeno tigre, pesa muito: por que Esméria não carrega o outro que nasceu?

– Porque eu não escolho: carrego aquele que me mandam carregar.

– Luís é mau.

– E o outro? Quem assevera que há de ser bom?

– Pai-Raiol não diz; mas o tigre velho gosta de brincar com ele.

– Que tenho eu com isso?

– Chega muito ao pé da negra que carrega...

– Deixá-lo chegar.

– Esméria negra é mais bonita do que sua senhora branca.

A crioula compreendeu em toda sua extensão a idéia perversa do Pai­Raiol e a ela abriu o coração sensual, ambicioso, atrevidamente vaidoso e não menos vingativo.

Teresa não era uma senhora formosa; mas, posta mesmo de lado a su­perioridade física de raça, era bem-feita, engraçada e mimosa de rosto e de figura a não admitir comparação com a crioula.

Todavia Esméria estava convencida de que era, como acabava de dizer o negro, muito mais bonita e elegante do que sua senhora. Essa petulante convicção é especialmente nas escravas crioulas mais comum do que se cuida. Os senhores imorais são muitas vezes os culpados de semelhante presunção.

Mas Esméria fingira não entender o conselho do Pai-Raiol.

– E que vale ser eu mais bonita? – perguntou.

– Precisa que o senhor veja, que velho tigre chegue perto.

– E para quê?

– Esméria sabe.

– Sou negra e escrava.

– Negra também é mulher, e escrava que amansa e abraça o senhor corta as unhas do tigre.

– Mas, Pai-Raiol, você que me quer sua companheira é quem me lembra que eu seja de meu senhor?... Para quê?

– Pai-Raiol sabe que Esméria engana, quando pode: pois engana com o senhor... é bom... é melhor

– Por quê?...

– Amansa velho tigre... faz chorar velha tigre... faz bulha em casa... vira a cabeça do senhor... é bom

– Se porém ele me tomasse... havia de querer que eu fugisse de Pai-Raiol.

– Esméria fugia... mas Pai-Raiol chama, quando quer... quando a porta da senzala de Esméria tem risco de carvão, Esméria vem: se não vem, Pai-Raiol mata.

– Por que me ameaça?... Antes quero viver, como vivo.

– Pai-Raiol não quer. Esméria precisa amansar tigre velho: depois Pai-Raiol ensina mais.

A crioula passou a noite sem poder dormir. O dia seguinte era santificado, e ao romper da aurora os dois escravos saíram a passear juntos, enquanto Esméria esperava a hora de começar o seu serviço na casa da família.

O passeio tomou a direção dos fundos da casa dos senhores. O negro insistia ainda no conselho ou ordem que dera a Esméria, a qual continuava a fingir-se hesitante.

Por acaso os dois viram diante de si uma linda ninhada de pintainhos que a galinha-mãe cacarejando conduzia pelo campo.

O terrível negro, que conhecia a influência do terror, aproveitou o ensejo e disse à crioula:

– Pai-Raiol pode muito, e sabe matar com os olhos: Esméria quer ver?

A crioula não respondeu; mas o negro fixou os olhos na ninhada de pintainhos, como se os quisesse absorver nas órbitas.

O Pai-Raiol não tinha idéia alguma do magnetismo; mas extraordinariamente dotado de força magnética que só empregava para fazer mal, sabia que lhe era fácil servir-se do olhado, adjetivo que exprime uma reali­dade que, por inexplicável à ignorância, põe em tributo de quiméricos temores a imaginação dos supersticiosos.

Esméria considerava, contemplava ansiosa o negro que, imóvel e de olhos fitos, mirava a ninhada infeliz.

De repente o primeiro pintainho caiu, depois sucessivamente todos os outros foram também caindo.

– Pai-Raiol, quando quer, mata com os olhos – disse o negro, vol­tando-se.