O senhor que se degrada ao ponto de distinguir como mulher uma sua escrava é mais do que imoral, é um imprudente e desassisado que põe em desgoverno a própria casa, e levanta em trono de ignomínia a escravidão corrupta elevada a senhora.

Há em semelhante erro lamentável esquecimento do dever, e sacrifício de dignidade. A torpeza da escravidão é contagiosa e se inocula na vida doméstica do senhor que ousa expor-se ao contacto vergonhoso com a escrava. Acaba a disciplina e a ordem na casa: as outras escravas murmuram invejosas; a que foi distinguida levanta os olhos altanada, o senhor abaixa os seus em confusão e arrependimento.

Mas se o senhor é casado, e pratica essa escandalosa infidelidade à esposa, o mal é mil vezes maior, e raro falta o castigo que confunde os inocentes com o culpado. Esse senhor e marido louco não o pensa, mas no delírio dos sentidos ergue a escrava até a altura de sua pobre mulher, a quem portanto avilta e a si se rebaixa até as misérias daquelas a quem se igualou bebendo com ela no mesmo copo a embriaguez mais ignóbil.

Isto é assim sob o ponto de vista moral e dos costumes: basta um só erro, ainda mesmo filho do delírio, da vertigem de um momento para, conhecido, plantar a desconfiança e o constrangimento no leito conjugal, ignorado, deixar o remorso no coração do infiel; se porém o erro se repete, se o vício ou a corrupção, ou essa tantas vezes inexplicável aberração dos sentidos, essa malícia moral prendem o senhor à escrava e dela o tornam freqüente possuidor, o erro é crime e não há imaginação que possa medir as proporções de seus resultados desastrosos.

E o grande perigo não está no fato do adultério, que aliás de parte a parte é sempre igualmente condenável: o grande perigo está na condição da mulher, em quem se realiza o adultério; está na condição da escrava que, tendo feito dessa mulher inimiga natural, inimiga lógica e indecli­nável de seus senhores e especialmente de sua senhora, aproveita para a vingança, para as maldades, cujo limite ninguém pode marcar, o crime do senhor que infamemente a erige em rival de sua senhora, pelo só es­cândalo do adultério insistente com rival preferida.

Em circunstâncias tão inexprimíveis, pelo infinito horror da resultante afronta da família e escândalo da casa, a madre-fera escravidão exulta, pondo em torturas, envenenando, desonrando, desgraçando a vida dos senhores.

Dizei, se o ousais, que não é assim; negai que se tenham dado, que se dêem ainda hoje exemplos fatais de tão formidável infortúnio doméstico; e, se não ousais dizê-lo, se não podeis negá-lo, reconhecei que nos temos desmoralizado, que nos desmoralizamos pela influência da escravidão; que a escrava, como o escravo, são fontes de venenos abertas e conservadas em nossas casas; reconhecei sobretudo que no Brasil quem mais padece, quem mais se atormenta, quem mais se arrisca, quem mais vezes sofre vilipêndio pela existência da escravidão é a mulher livre; é a mãe de família, é a senhora, a pobre martirizada de todas as horas, a pobre vítima algu­mas vezes indignamente ultrajada na esteira da escrava.

Ainda um exemplo do adultério hediondo, que faz da escrava rival da senhora, rival preferida que desordena a casa, enluta a família, e é cratera aberta do vulcão que espalha a ruína.

Paulo Borges amava Teresa; mas, grosseiro escravo da sensualidade, so­fismava para desculpar-se do crime de lesa-fidelidade à esposa, contando que o mistério e o segredo escondessem sua degradação, a ofensa que irro­gara a sua mulher e jurando a si próprio que não seria duas vezes adúlte­ro, procurando Esméria.

O juramento se fundava em experiência inconfessável. Paulo Borges, como tantos outros, tinha, não raramente, se humilhado até a baixeza de escravas suas, que nem por isso se haviam levantado depois acima do des­prezo da sua condição.

Honrado e escrupuloso em seus negócios, Paulo Borges dava pouca im­portância à severidade dos costumes e reputando a castidade virtude so­mente imperiosa para as senhoras, julgava-se irrepreensível porque não se sujeitava a ligação alguma que não fosse passageira.

A sua moralidade era a de muitos: era um véu escondendo opróbrios, ou fraquezas indignas.

Paulo Borges procurou e possuiu facilmente Esméria.

O demônio da lascívia deu poder à crioula. Possesso da depravação, Paulo Borges, o senhor, amou fisicamente Esméria, a escrava.

A calculada extravagância de um dia tornou-se o vício, primeiro de muitos, depois de quase todos os dias.

O senhor, o velho senhor ficou escravo da sua escrava.