Não era só Teresa que padecia pelo frenesi da paixão criminosa e torpe que escravizava o senhor aos pés imundos da escrava.

O castigo do depravado começara cedo, começara logo após ao esquáli­do domínio do seu vício miserável.

Para não deixar em amplo gozo de liberdade a crioula banida do servi­ço doméstico e entregue à ociosidade, Paulo Borges abandonava freqüen­temente a direção do trabalho de suas roças que notavelmente se ames­quinharam: debalde contratou ele um feitor, cujos olhos e interesse não eram os do fazendeiro. Em sua ambição de grandes lucros e de riqueza, o depravado sofria, impacientava-se; mas não podia vencer os assomos da paixão esquálida.

E isso era o de menos: o adúltero era pai, amava seus filhos, e via-se priva­do do antigo e suavíssimo encanto que o transportava, quando de manhã antes de sair para roça, quando ao anoitecer e de volta da roça a carinhosa esposa e mãe lhe apresentava os três anjinhos, fruto de seu amor hones­to e puro.

Esses gozos Paulo Borges não desfrutava mais: se queria ver os filhos, precisava pedi-los, e então era uma escrava que os trazia confusos, tristes pela ausência da mãe, e olhando espantados, desconfiados para o pai que os abraçava e beijava sem a santa expansão de outro tempo e com o con­frangimento do remorso de quem sabe que quem ultraja a mãe ultraja os filhos.

Um dia Paulo Borges perguntou a Luís:

– Que faz tua mãe?...

– Chora muito – respondeu o menino.

O adúltero empalideceu: duas grossas lágrimas caíram de seus olhos so­bre a cabeça do filho.

– E por que chora ela? – tornou.

– Mamãe não diz, chora sem falar.

– Mas então...

– Papai não vê mamãe... papai é mau...

Paulo Borges entregou o menino à escrava, e fugiu a soluçar, a maldizer do seu destino e a praguejar contra a escrava-demônio por quem se achava dominado; fugiu, correu para o campo, e viu Esméria à porta da senzala: ao aspecto da escrava que o alucinara, avançou furioso para ela, e chegando com andar acelerado, parou a dois passos, fitou na crioula enraivecido olhar e disse:

- Demônio!

Esméria pareceu tomada de espanto; depois serenou, respondeu:

– É melhor assim.

Paulo Borges bateu com o pé e perguntou:

– Que dizes tu, demônio?

– Que é melhor assim: é preciso que meu senhor acabe isto.

— E há de acabar... sim...

– Não fui eu que tive a culpa... – disse Esméria. – Eu sabia que era negra escrava... não é a escrava que chama o senhor... bem sabe... minha senhora me estimava, e agora...

– Ela tem razão... não hei de atormentá-la mais por tua causa...

– Sei que ela tem razão... fui falsa a minha senhora; porque não pude resistir ao mandado de meu senhor... é preciso que isto acabe... por isso eu queria pedir hoje a meu senhor que me vendesse...

Paulo Borges fez um leve movimento de surpresa e desagrado: começava a esquecer os filhos e o dever.

– Pensas que não sou capaz de fazê-lo? – perguntou.

– Peço a meu senhor que me venda: um de meus antigos senhores moços me comprará, se eu for chorar a seus pés... sei que o ano passado ele herdou fortuna.

– Vender-te-ei a outro! – bradou Paulo Borges.

– Ainda assim; peço venda a meu senhor.

E isso dizendo, a crioula voltou-se e foi sentar-se tristemente a um canto da senzala.

Sem ressentir-se do desrespeito com que a escrava o deixara e fora sentar-se, Paulo Borges daí a pouco entrou na senzala, e perguntou em tom menos iracundo:

– Que aconteceu de novo, Esméria?...

A crioula levantou-se, enlaçou as mãos na altura do baixo ventre, arqueando os braços de modo a tornar salientes os seios mal encobertos, e ostensiva a parte anterior do tronco, e pondo os olhos no chão, disse:

– Não há nada de novo: fui lançada fora da casa, onde eu trabalhava de dia, e minha senhora tão boa tem razão de me aborrecer...

– Mas não te atormenta ao menos...

– Antes me atormentasse! Já não vejo mais, senão de longe os meus senhores-moços, e atirada no campo...

– Não trabalhas, vives como forra... e te queixas!

– No outro tempo eu era perfeita escrava, agora não sei que sou: meu senhor me tomou para si; mas deixou-me de noite abandonada na senzala, negra escrava entre os seus parceiros que são atrevidos...

– Queres dizer... desejas voltar a casa?... Mas dantes dormias como agora na senzala e não tinhas medo...

– Dantes eu não era de meu senhor e negra escrava abria a porta de minha senzala ao parceiro que me agradava.

Paulo Borges não se vexou da petulância com que a crioula dava teste­munho franco da antiga desenvoltura, que aliás não se desmentia ainda.

– Seja como for – disse ele – , não posso ofender mais minha mu­lher, fazendo-te entrar na casa contra suas ordens, e muito mais recolher-te de noite sob o mesmo teto em que ela dorme.

– É por isso que eu peço venda a meu senhor: é verdade que me pare­ce que já não ando boa... mas meu senhor pode mandar forrar seu filho...

O adúltero teve um sobressalto e turbou-se a esse anúncio que faz a glória do amor honesto; disfarçando como pôde sua perturbação, disse:

– Não te venderei. Tu me dirás quais são os escravos que te vão bater à porta de noite.

– Escrava como eles, e abandonada no meio deles, não hei de denunciá-los para que sejam açoitados por minha causa, expondo-me ao seu ódio e a sua vingança.

Paulo Borges irritou-se.

– Eles te perseguem e não os denuncias para serem castigados? É por­que gostas da perseguição e sem dúvida recebes os teus parceiros!

– Sou negra escrava lançada no campo: animal solto e livre, se eu me desforrasse do desprezo em que meu senhor me abandona, abrindo a por­ta da minha senzala aos negros meus parceiros e do meu gosto, faria mui­to bem.

O miserável senhor soltou dos lábios uma injúria indecente, e uma ridícula ameaça.

A crioula encolheu os ombros como se dissesse que me importa, e sem mudar a posição dos braços e das mãos, descansou o corpo sobre uma das pernas, fazendo avultar saliente a anca oposta.

– Que posso eu? – tornou ela. – Eu era de meus parceiros, meu se­nhor me tomou a eles; mas esquece-me, desampara-me, despreza-me de noite, e eles pensam que a noite lhes pertence: estou cansada de resistir; passo às vezes sem dormir até de manhã; pode isto continuar assim? Se ar- rombarem a porta da senzala?

– Gritarás – exclamou estupidamente o adúltero.

– Melhor é ceder – disse com desavergonhamento a crioula.

– O Pai-Raiol! – murmurou por entre os dentes Paulo Borges.

– Talvez entre muitos outros – respondeu Esméria. – Bem que Pai-Raiol mostre agora detestar-me e fuja de mim, como de inimigo de quem tem medo: o Pai-Raiol é um mau negro que, se puder, se vingará de mim; mas além dele há tantos!... A preferência que meu senhor me deu, me fez desejada; agora todos os escravos me acham bonita; em seus fados tenho cantigas de elogio, me chamam rainha das negras... eles, os meus parceiros, me festejam, se apaixonam por mim... vêm bater e chorar à porta da minha senzala, lembrar-me o que fui para eles, e o que eles foram para mim...

E a crioula insidiosa, olhando então fixamente o senhor, e lendo em sua fisionomia os efeitos do veneno que lhe lançava no coração, continuou com desfaçatez inaudita:

– Eu também sou negra e escrava, criada na vida solta, animal abandonado e livre no campo, e não quero enganar a meu senhor... assim como vivo, não me vencerei por muito tempo... eu aviso, sou negra e escrava, tenho maus costumes antigos... meu senhor não poderá depois queixar-se... peço perdão, mas confesso: uma noite já cheguei a pôr a mão na chave da porta... se isto continua; assim, em alguma outra noite, Esméria enganará seu senhor, e abrirá a porta...

Nova praga obscena foi a resposta do esquálido senhor.

A crioula fingiu-se alterada e sentida da injúria; começou a passear ao longo da senzala com arrebatamento e artificial comoção, dando ao corpo meneios indecentes, e pondo o vestido em desordem grosseiramente libidinosa.

A rusticidade sensual de Paulo Borges exaltava-se provocada, alucinada pelos trejeitos obscenos da negra que já o conhecia bem.

– Eu peço para ser vendida! Eu preciso sair desta fazenda! – exclamou ela, quase chorando.

Paulo Borges, o adúltero, Paulo Borges o desvairado se curvou ante a negra, sua escrava, e escreveu nos seus pés a sentença da última degradação da esposa virtuosa e honestíssima.

No dia seguinte, e a despeito da vontade expressa de Teresa, Esméria entrou pela porta da cozinha da casa da família de Paulo Borges, e teve ali quarto separado e distinto do dormitório das outras escravas internas.