Alberto era um homem negro de natureza nobre e altiva, mas já estra­gada pelos venenos da escravidão: como os outros escravos seus parceiros, já tinha manchado as mãos com o furto, os lábios com a mentira, o cora­ção com o desenfreamento da luxúria torpe, o estômago e a cabeça com o abuso da aguardente. De suas grandes qualidades por assim dizer inatas, só restavam os vestígios nos defeitos opostos: da altivez tirara e conservara o ódio aos senhores que lhe impunham o aviltamento do cativeiro força­do; da sua nobreza e dignidade pessoal apenas lhe ficara a flama vingativa do insulto recebido, e a arrogância da consciência da própria força ma­terial,

Não querendo vingar-se do Pai-Raiol com o açoite do senhor, Alberto não o fazia por sentimento generoso e fraternal, mas só porque tinha em principal aversão o domínio do senhor, e em única estima pessoal o orgulho e a jactância da sua força física.

Trabalhando assíduo e diligente para escapar ao castigo que se ufanava de nunca ter provado, refreando seus ímpetos de vingança contra o Pai-Raiol para não se expor ao açoite, embora ele dissesse que tinha medo de si, o que podia ser e era a justa apreciação das fúrias possíveis de um orgulho que se firmava na convicção do poder de seus músculos hercúleos, ele dava testemunho do cálculo que o egoísmo, aliás justificável, estabelece sobre o receio das punições e das conseqüências de um ato violento e arre­batado.

Ao menos, porém, nessa destruição de grandiosos sentimentos, o escravo africano, Alberto, pudera salvar e manter a fidelidade mais exem­plar aos parceiros, e a repugnância mais invencível às ciladas covardes que a traição costuma armar às escondidas.

Alberto, negro sem educação, escravo, e portanto homem condenado às misérias e aos vícios inerentes à baixa condição imposta, era pelo estra­go e depravação de suas qualidades capaz de ações atrevidas e criminosas; levado pelo rancor e pela cólera ousaria matar o seu inimigo, mas sem dúvida o atacaria de frente e mediria suas forças com ele.

Ainda aí havia orgulho e ostentação de sua força física e de sua coragem de Hércules; mas em todo caso não havia torpeza e infâmia de assasino de emboscada.

Esméria conhecia o caráter, a capacidade, e os defeitos do tio Alberto, e inspirada de súbito pela declaração franca de sua inimizade hostil ao Pai-Raiol, viu nele um recurso poderoso contra o feiticeiro, de cujo poder e influência tirânica desejava subtrair-se; foi por isso que emprazou Alberto para uma entrevista mais cautelosa e oportuna.

Mas então já outra preocupação se apoderara do ânimo da perversa crioula. O Pai-Raiol tinha-lhe lembrado o mal que a existência dos filhos legítimos de seu senhor faria ao filho que em breve ela daria à luz. A medida que nisso meditava, esvaecia-se a compaixão que ela mostrara ter das três pobres crianças já pois destinadas a seguir o caminho de sua infeliz mãe.

A cegueira de Paulo Borges chegara ao ponto de entregar aos cuidados da crioula os seus três inocentes filhos, que haviam de ser mártires, sendo ainda anjos.

Esméria hesitava ainda, receosa de uma grave contrariedade possível: a miserável afligia-se com a dúvida sobre a cor da criança que do seu seio devia nascer, e com a apreensão das conseqüências do desengano patente que bem poderia ferir os olhos do senhor.

Enfim, e mais cedo do que calculava, a crioula teve o seu parto e entusiasmou-se, conhecendo que o filho denunciava pela cor a paternidade de Paulo Borges.

Desde esse dia Esméria-mãe adotou a idéia horrorosa do Pai-Raiol a sentença de morte dos filhos de Teresa foi lavrada pela escrava deles ciumenta, e refervente em duplicada ambição.

Paulo Borges, o principal causador de tantas desgraças, nem teve tempo de experimentar as desconsolações e a tristeza que sente por força o pai recebendo ainda um castigo da sua escandalosa sensualidade, ao considerar a desigualdade das condições de seus filhos, e a irremediável inferioridade social do fruto do ventre cativo em comparação dos outros.

Quando chegou a outra lua nova, Esméria ainda se achava de cama ou resguardada; mas a infelicidade doméstica resultante do adultério e da corrupção de Paulo Borges poupou-a a um dos três assassinatos premeditados: o mais novo dos míseros órfãos, tendo perdido sua mãe, passara amamentar-se aos peitos de uma escrava designada sem estudo, e sem justificada preferência para esse delicadíssimo mister, e bebendo as sobras no leite impuro o veneno da sífilis, morrera exatamente naquela outra lua nova marcada para o seu martírio.

Depois passou cerca de um mês, e a serpente silvou.

Pai-Raiol dois dias antes da terceira lua nova se havia recolhido à enfermaria: o seu estado excluía toda suspeita de manha: tinha febre, claros sintomas de irritação intestinal; mas o escravo enfermeiro não viu que ele deitava fora os remédios que lhe mandavam dar e que às ocultas mas­tigava raízes que levara consigo.

No segundo dia Pai-Raiol estava bom, e fugindo da enfermaria, entrou na sua senzala, e no fim de poucos minutos saiu, e foi silvar como a ser­pente no fundo do quintal.

Pai-Raiol tinha desde algumas semanas um inimigo que de longe o perseguia, espiando-o, contrariando-o, provocando-o sem falar, mas se­guindo-o sempre a distância, como a sombra de seu corpo: era Alberto. Não temendo, mas também não ousando atacar de frente esse inimigo, esperando do tempo ocasião oportuna para propinar-lhe algum dos seus feitiços, o negro africano refalsado e feroz para escapar na lua nova à per­seguição de Alberto, fizera-se adoecer com a certeza de poder curar-se.

Alberto trabalhava na roça, quando a serpente silvou no fundo do quintal.

A crioula deixou o filho que dormia, e correu diligente, acudindo ao chamado.

As duas hidras se encontraram.

O negro afagou a crioula como costumava, insinuando-se possuído de paixão cada vez mais violenta. Depois começou a falar.

– Esméria, Pai-Raiol tem um inimigo e precisa cautela.

– Quem é? – perguntou Esméria com sobressalto simulado.

– Pai-Raiol sabe e há de matá-lo: ele mata com os olhos; mas ainda não quer.

A crioula ia falar; ele, porém, tomou-lhe a palavra.

– Escuta: Pai-Raiol e Esméria não podem mais falar aqui sem a espia no mato: é preciso andar depressa...

– Andemos...

– Pai-Raiol queria andar devagar; mas não pode... tem inimigo que espia... é preciso andar depressa...

– Andemos – repetiu a crioula.

– Escuta: esta raiz tem feitiço, mata criança em uma noite: Esméria deixa os meninos comerem fruta que faz indigestão, e dá café com esta raiz, eles morrem de indigestão. O filho de Esméria fica só e é rico.

A crioula não respondeu; porém não protestou, e recebeu com mão se­gura o pequeno embrulho que continha as raízes.

O negro celerado prosseguiu.

– Quando Pai-Raiol quer falar a Esméria, assobia como serpente, e Esméria, à meia-noite, vai à senzala de Pai-Raiol.

– E se o senhor se acordar?

O negro riu-se; e mostrou a Esméria outro, um segundo embrulho de papel que era maior e que sem dúvida guardava outras raízes.

– Pai-Raiol precisa andar depressa: cada raiz que ele dá aqui, faz o ti­gre velho dormir toda a noite: Esméria vem sem medo à senzala de Pai-Raiol; mas só à meia-noite por causa do inimigo.

– Faz dormir?... E como hei de dá-la?

– Esméria cozinha a raiz no café bem carregado.

A crioula tomou o embrulho com sofreguidão: a substância que podia fazer dormir assim Paulo Borges era um tesouro para a escrava, sua amásia.

O negro riu-se outra vez e disse:

– Uma raiz só faz dormir: duas sofrer muito: três hão de matar.

Esméria olhou para o Pai-Raiol, como se lhe perguntasse a explicação desse prudente aviso.

– Esméria não pode matar logo, continuou o negro; faz dormir o tigre velho, faz forrar o filho, fica forra também, faz o senhor escrever no papel testamento, dá o testamento para o Pai-Raiol guardar: depois cozinha três raízes no café do tigre velho.

Uma onda de suor frio banhou o corpo da crioula que instintamente e sem refletir, perguntou:

– E depois?...

O negro fitou em Esméria os seus olhos vesgos, incisivos e penetrante e adoçando quanto pôde a voz, disse:

– Esméria gosta do Pai-Raiol?

A crioula fez um esforço supremo de fingimento e com fogo e comoção respondeu, beijando a face do negro que ela aborrecia:

– Oh! Muito! Muito!

Ele beijou-a também com os seus três lábios repugnantes, e respondeu então à pergunta da crioula.

– Esméria sobe o morro de uma banda, e Pai-Raiol sobe da outra: em cima do morro Esméria encontra Pai-Raiol ao pé dela.

– Não entendo.

– Quando o tigre velho morrer, Esméria fica senhora da fazenda com seu filho, e forra Pai-Raiol, que também fica dono.

E o negro fixou ainda mais incisiva e profundamente seu olhar magnético no rosto da crioula e, no fim de alguns momentos, disse:

– Pai-Raiol quer.

– Pois sim! – exclamou a crioula, abraçando-se doida, e petulantemente com ele.

O negro arrancou-se dos braços da crioula, e fitando-a de novo, com olhar imponente de sua vontade, absoluto, imperioso disse ainda, dando à voz tom ameaçador:

– Pai-Raiol quer! E se Esméria não faz, Pai-Raiol mata.

A crioula como transportada, fora de si, possessa, lançou-se ao negro, abraçando-o, beijando-o e exclamando com ardor:

– Meu marido!... Meu marido!