No curto período de dez dias passados depois daquele em que a escrava recebera para si e para seu filho o benefício imenso da emancipação, Paulo Borges o benfeitor, mas insensato amante da crioula, decaíra de a inspirar as mais tristes apreensões.

O abatimento de suas forças físicas era evidente, e o do seu espírito acompanhava na mesma proporção o outro; seus olhos se encovavam, a sua magreza era progressiva, o seu andar tornava-se vagaroso e hesitante, e ainda mesmo de dia a frouxidão e o sono o perseguiam.

Esméria acusava o infeliz de preguiçoso, instava com ele para que não desamparasse a roça, e fosse ativo como dantes.

O sábio curandeiro, a quem a crioula não cessava de presentear, e a quem havia tomado por padrinho do filho, apoiava com vigor os conselhos da comadre, receitava o que melhor lhe parecia; mas em suas confidências a Esméria, e em conversação com os vizinhos, declarava que Paulo Borges, o seu velho amigo e estimado compadre, estava com amolecimento cerebral.

A todos espantavam os sucessivos e rápidos golpes descarregados pela infelicidade sobre a casa de Paulo Borges, onde em poucos meses a morte devorara a esposa, três filhos, e prestes ia devorar o fazendeiro. Já havia desconfianças e murmurações nas vizinhanças.

Um lavrador pobre, foreiro de Paulo Borges, encontrando a este no caminho da roça, não se pôde conter ao vê-lo tão abatido e desfigurado, e, pedindo-lhe perdão da liberdade que tomava, aconselhou-o a mudar de cozinheiro.

O mísero condenado riu-se tristemente e agradeceu o interesse que por ele tomava o lavrador; assegurando, porém, que a pessoa que preparava as suas refeições era digna de toda a confiança.

Essa pessoa era Esméria.

Entretanto a suspeita do lavrador ficara no espírito de Paulo Borges, que debalde procurava esquecê-la e que a pesar seu observava com olhar dúbio a fisionomia da crioula, quando chamado por ela se sentava à me­sa, e principiava a comer.

A impassibilidade, o aspecto perfeitamente tranqüilo de Esméria aca­bavam sempre por sossegar a vítima, que se arrependia da sua descon­fiança.

A crioula esperava paciente o progresso da moléstia de seu antigo se­nhor; mas o Pai-Raiol começava a ter pressa, e a exigir obediência.

Ela compreendeu que era tempo de entender-se com Alberto, que talvez já se supusesse esquecido.

Os escravos da fazenda tiveram de fazer serão à noite. O fazendeiro, escravo da mais absurda rotina, ainda mandava descaroçar o milho pelas mãos dos escravos, julgando ganhar tempo, porque empregava nesse ser­viço duas horas em cada noite, duas horas que de outra sorte seriam de descanso para a escravatura.

Esméria, desde que Paulo Borges tomara o costume de adormecer fácil e freqüentemente, acompanhava-o sempre para ativar e fiscalizar o serão.

Nessa noite ela procurou chamar a atenção de Alberto que trabalhava defronte do Pai-Raiol: quando se achava pelas costas deste, ralhava injus­tamente e excitava a trabalhar aquele, que aliás não levantava a cabeça; mas quando, ao rodear o numeroso bando de escravos sentados em círcu­lo, passava junto de Alberto sempre tocava-o com o pé.

O negro conservava-se imóvel e como insensível.

Paulo Borges sentara-se e adormecera; a crioula deixou-o dormir.

Alberto levantou-se enfim: depois do Pai-Raiol e de alguns outros já despedidos, concluíra ele também a sua tarefa e logo foi despejar no mon­te o milho que descaroçara.

Esméria, que o esperava, murmurou-lhe rapidamente:

– À meia-noite na sua senzala.

Alberto respondeu com um movimento da cabeça, deixando-a cair de modo à encostar o queixo no peito.

Paulo Borges não inspirava mais receio algum à crioula: dormia sempre até que ela o acordava à força de manhã.

À meia-noite Esméria entrou na senzala de Alberto.

– Pensei que a senhora não vinha mais – disse este.

– A senhora? Que é isto?

– Já não somos iguais: eu sou escravo e...

– Pode ser meu senhor, se quiser.

– Cansei de esperá-la. Sei que Pai-Raiol ainda a chama.

– E eu confesso que ainda tenho ido falar-lhe.

O negro pareceu indignado.

– Vim contar-lhe tudo – continuou a crioula. – Chegou o tempo, em que só você, tio Alberto, pode me livrar daquele demônio.

– Livrá-la como?

– Matando-o: com ele, é matá-lo, ou deixar-se matar.

– Por que então você vai encontrar e se entregar a Pai-Raiol?

– Deixe-me contar-lhe tudo: você, tio Alberto, é incapaz de me fazer mal, e por isso eu lhe direi tudo.

– Fale – disse o negro soberbamente.

Esméria confiou a Alberto os sinistros segredos de suas relações com o Pai-Raiol; o seu império sobre as serpentes, o poder assassino do seu olhar, a sua ciência de feiticeiro, os crimes de que o sabia ou o suspeitava perpetrador, o domínio absoluto que pelo terror ele exercia sobre ela, o seu plano para entronizar-se como senhor na fazenda, e a sua conseqüente ordem para o envenenamento de Paulo Borges, a que por medo e cega e obrigada obediência ela se estava prestando.

A crioula somente esquecera os envenenamentos de Teresa, dos dois filhos desta e das três crianças escravas.

Alberto ouvira silencioso a história que Esméria lhe contara; depois refletiu por algum tempo, e levantando a cabeça, disse:

– Que me importa! O senhor vai morrer, como a mulher e os filhos morreram: não fui eu que os matei; não sou eu que o mato: que me importa?... Isso é lá com ele... nem o seguro, nem o empurro.

Triste, mas verdadeira observação! A natureza nobre e generosa de Alberto estava já tão estragada pelo vírus moral da escravidão, tão envenenada pelo aborrecimento em que o escravo, pelo fato de ser escravo, tem ao senhor pelo fato de ser senhor, que o assassinato de Teresa e de seus filhos e o novo envenenamento, o envenenamento de Paulo Borges, não inspirara horror ao altivo negro, que indiferente dissera apenas: “que importa! Não fui eu que os matei; não sou eu que o mato: que me importa?!!!”

Como a escravidão corrompe, faz apodrecer, e inocula ferocidade, e torna tigre ou hiena o homem escravo!

Esméria estremecera, ouvindo ao inteligente negro a explicação da morte das suas vítimas.

– Tio Alberto – exclamou ela chorando – , juro que não fui eu quem matou minha senhora, e meus senhores-moços; se morreram envenenados, não fui eu que os envenenei; foi talvez alguma negra que o Pai-Raiol governa também.

– Que me importa!

– Se você quer, livre-me do Pai-Raiol, que eu estou pronta a poupar a vida do senhor... a salvá-lo...

– Que me importa que morra ou que se salve? Depois dele virá outro sempre senhor, sempre um branco a oprimir o negro...

– E se for um negro?

– Hem?...

– Se for o Pai-Raiol?

Alberto, que estava sentado, levantou-se de um salto.

– Pai-Raiol!

Eu lhe contei tudo: ele me domina pelo terror, não posso resistir ao seu poder... o senhor morrerá... meu filho e eu herdaremos a fazenda... Pai-Raiol impor-se-á, e eu me curvarei... Pai-Raiol será o senhor, envene­nará meu filho... e o tio Alberto será escravo de Pai-Raiol...

– Não! – exclamou o negro. – O que você acaba de dizer é verdade; eu matarei Pai-Raiol.

Os olhos da crioula brilharam com fogo infernal.

– E o senhor? – perguntou ela.

– Que me importa! – repetiu Alberto.

– E talvez já seja tarde para salvá-lo! – disse Esméria. – Os venenos do Pai-Raiol são terríveis! Oh, tio Alberto, livre-me desse demônio de feiticeiro, e em breve senhora aqui, você há de ser meu único senhor...

O negro olhou suspeitoso, mas soberbo para a crioula, e viu a lascívia abrasando-lhe o rosto.

Para o escravo a lascívia é que é amor.

Alberto contava trinta anos de idade e havia vinte que era escravo: Es­méria fora a sua paixão mais pronunciada, e ainda então depois de aman­te do senhor, mas penetrando em sua senzala, despertava nele o antigo ardor do negro escravo apaixonado.

– Vá-se: o senhor a espera e desconfia – disse ele tremendo.

– Não o senhor dormirá até a hora em que eu quiser acordá-lo – res­pondeu a crioula apertando com ânsia ambas as mãos de Alberto.

O Hércules negro abraçou a Dejanira negra.

Esméria e Alberto se separaram pouco antes de amanhecer o dia.

Tinham ambos ficado de perfeita inteligência: a crioula conseguira assenhorear-se da vontade de Alberto, e fazê-lo adotar todas as suas idéias.

O negro deixava indiferentemente à mercê de Esméria a vida do senhor, a quem não segurava, nem empurrava.

Na seguinte noite a crioula tinha de ir à senzala do Pai-Raiol, e Alberto esperaria o momento da sua retirada para provocar frente a frente o seu inimigo e matá-lo.

Depois... provavelmente Paulo Borges morreria...

Depois, Esméria e Alberto não se separariam mais...

Por fim de contas, Alberto mostrava que era escravo, e estragado pela escravidão em que caíra havia vinte anos.