Às oito e meia horas da noite, Esméria pôs à mesa a ceia costumada de Paulo Borges que comeu com apetite.

Depois da ceia a crioula trouxe e serviu o café: Paulo Borges pediu a caixa de tabaco que deixara no quarto, e enquanto a crioula foi buscá-la, ele levantou-se pronto, e atirou pela janela o café contido na xícara.

Esméria ao chegar com a caixa de tabaco, viu a sua vítima com a xícara voltada nos lábios, como a derramar as últimas gotas do líquido envene­nado.

Nessa noite a crioula tinha fervido no café não uma, porém duas raí­zes. No estado de fraqueza em que se achava, Paulo Borges, se tivesse bebido o café, dormiria para não tornar a acordar.

– Já bebeu o café?... – perguntou Esméria.

– Já; estava excelente: agora o que tenho, é vontade de dormir.

– Que sono! O senhor já não faz caso de mim...

– Que queres, crioula?... Não me posso vencer: é um sono de bêba­do, ou de envenenado...

Esméria riu-se; e disse como de mau modo:

– É sono de velho.

Paulo Borges não respondeu e foi deitar-se resolvido a velar, e a fingir-se adormecido; no fim, porém, de poucos minutos sono irresistível pesou sobre suas pálpebras, e ele dormiu profundamente.

Esméria que estava ao lado do mísero fazendeiro, levantou-se à meia­-noite, e ansiosa e trêmula não por medo de Paulo Borges, a quem deixa­va soporificado e talvez próximo a morrer; mas pelas apreensões e temores do combate e da morte, de que ela tinha de ser testemunha nessa noite, abriu cuidadosa uma janela da sala de jantar, para onde pé por pé se diri­gira, e saltou para fora, cerrando depois a janela.

Passados breves minutos, Lourença entrou no quarto do senhor, to­mou-lhe os braços e os sacudiu com força até obrigá-lo a despertar.

Paulo Borges acordou, e sentando-se na cama forçado pela insistência dos esforços da velha escrava, perguntou:

– Quem é? Que é?...

– Esméria já saiu, saltando pela janela – respondeu Lourença. – Se o senhor quer, Lourença o acompanha até a senzala do Pai-Raiol.

O fazendeiro cedendo ao excitante do ciúme, da cólera, e do instinto da própria conservação pôs-se em pé, vestiu-se, tomou duas pistolas que sempre tinha carregadas, e em súbito acesso da antiga energia, disse à velha negra:

– Vamos; acompanha-me.

E saiu com Lourença ao lado pela porta da frente da casa que abriu, e deixou cerrada.

Lourença era velha e Paulo Borges já privado de forças: caminhavam ambos a passos vagarosos e apoiando-se um no outro.

– Se houver perigo – disse Paulo Borges – , tu chamarás o feitor.

– Não há de haver perigo – respondeu Lourença – , basta que senhor ouça o que eles disserem... e amanhã senhor, mandará segurar em Esméria e Pai-Raiol.

– Dizes bem – tornou o fazendeiro convicto de sua fraqueza.

Paulo Borges deixou-se guiar pela velha, que, fazendo grande volta conduziu o senhor, menos exposto a ser descoberto, pela encosta de elevado outeiro até chegar à parede do fundo da senzala do Pai-Raiol.

Sabe-se que as senzalas têm uma única porta que abre para a frente.Agora algumas breves palavras sobre o teatro da última e lúgubre cena o deste drama sinistro.

A senzala do Pai-Raiol era isolada e levantava-se no cabeço desse outeiro que por detrás docemente se ia debruçando até a planície: pela frente três braças de terreno separavam a palhoça do negro de um fundo precipício; o pequeno monte acabava ali quase em ponta mais que íngreme, escarpado; a alguns palmos abaixo do solo mostravam-se as espinhas agudas da rocha, saliências desiguais, triangulares, tortuosas, pontudas, e no fundo, aos pés do outeiro o rio a correr, gemendo, sobre pedras cortantes e separadas em multidão de pedaços de granito.

A lua era plena e bela.

Paulo Borges e a negra tinham os ouvidos pregados à parede de barro amassado do fundo da senzala, cuja porta se achava trancada.

Dentro da senzala havia a luz do fogo de um braseiro.

Na frente e a medir o precipício via-se imóvel a figura de um negro agigantado.

Paulo Borges e Lourença no fundo e o negro imóvel na frente da senzala não se tinham descoberto, não se podiam ver.

Por mais baixo que Pai-Raiol e a crioula se falassem, o sussurro de suas vozes chegava fora, e ao mais leve descuido as palavras eram entendidas, graças à grosseira construção da senzala.

Pai-Raiol parecia ralhar com Esméria, que se desculpava.

As palavras— raiz— tigre velho— morte— haviam destacadamente che­gado aos ouvidos de Paulo Borges, que tremia convulso.

Por fim o negro malvado irritara-se e com voz menos contida, dissera em tom de senhor:

– Pai-Raiol quer!

– Uma semana ainda! – exclamou a crioula.

– Não: amanhã de noite três raízes, e o tigre velho morre...

– Tenha pena...

– Depois d’amanhã Esméria é senhora de tudo...

– E Pai-Raiol? – perguntou a crioula traiçoeira, elevando a voz.

– No outro dia Pai-Raiol fica também senhor; porque gosta de Esméria.

– E eu também gosto do Pai-Raiol.

– Mas se Esméria não faz, Pai-Raiol mata.

– Farei tudo! – disse a crioula, abraçando e beijando o negro.

Mas Pai-Raiol em vez de pagar-lhe os afagos, desviou-se, soltou risada que não pôde abafar, e logo cerrou os dentes com força e a ponto de fazê­-los ranger.

– De que ri assim? Que é isso?

– No outro dia...

– Sim... no outro dia?

– Pai-Raiol há de surrar tio Alberto.

Um golpe violento dado por potente ombro fez em pedaços a porta da senzala, e Alberto que se mostrou ao clarão da lua, bradou com raiva:

Cão danado! A hora chegou: mas traze faca, porque eu trago faca.

Pai-Raiol deu um salto, armou-se de um machado, e por momentos mediu com os olhos vesgos o inimigo.

Paulo Borges tinha caído por terra.

Alberto afastou-se alguns passos e disse:

– Sai para fora, ou vou lá dentro agarrar-te.

O Pai-Raiol não reconheceu a soberba generosidade de Alberto que, reputando-se superior em forças, não queria abusar dos estreitos limites da senzala, e dava à destreza as vantagens do espaço; mas aproveitou-se do que supunha erro e imprudência do inimigo, e rápido e com o macha­do erguido tomou em dois pulos campo no terreiro.

Imediatamente o combate se travou furioso.

Pai-Raiol tinha força e agilidade; conhecendo porém o Hércules, con­fiou ainda mais na agilidade do que na força, e empenhou-se em escapar e furtar-se enquanto pudesse à luta corpo a corpo.

Mas ele não contava com a ligeireza e velocidade de movimentos de Alberto.

Pai-Raiol saltando, iludindo com negaças o inimigo, manejava o ma­chado, como espada em mão de hábil esgrimador; Alberto atacava, fugin­do com o corpo aos golpes do machado, e tentando sempre chegar com as mãos ao seu adversário.

O Hércules soberbo deixara a faca na cintura, e só o corte do machado do Pai-Raiol em contínuo e variado movimento brilhava aos raios da lua.

Esméria chorava à porta da senzala, observando o combate.

Paulo Borges e Lourença arrastando-se pelo chão e metidos entre as ervas e a grama tinham chegado até o ponto, em que expondo apenas as frontes e os olhos podiam testemunhar o duelo grosseiro, mas terrível.

Paulo Borges fazia votos pela vitória de Alberto.

Cinco minutos talvez durava já o estéril manejo de saltos e negaças, de ataques e de golpes perdidos no ar; mas o Hércules negro cansou de esperar, e afrontando o machado atirou-se frente a frente ao Pai-Raiol com ímpeto tão pouco esperado, que o instrumento da morte caiu sobre ele, quando seu corpo já estava pregado ao corpo de Pai-Raiol.

A decisão da luta pareceu então depender da posse do machado: os dois negros disputaram com desesperado esforço a arma formidável; mas em breve Alberto, dando forte joelhada no estômago do Pai-Raiol, e ao mesmo tempo com igual força, puxando o machado, arrancou-o das mãos do inimigo, que recuara a cambalear.

Em vez de ferir logo de morte a Pai-Raiol, o soberbo Hércules atirou o machado no despenhadeiro, e perguntou:

– Cão danado! Trazes faca?

O Pai-Raiol que redobrara de fúria, tendo já recobrado o fôlego, respondeu com voz de surdo trovejar:

– Não; mas Pai-Raiol mata sem faca.

Alberto puxou a faca da cinta e a fez voar pelos ares.

– Braço a braço agora! E no fim a morte de um de nós dois no fundo do precipício!

Os dois negros se arrojaram um sobre o outro, e a luta se tornou medonha: agarrados ambos, ferindo-se com as unhas e com os dentes, e em violento combate, em que as mãos como os pés, as pernas como os braços de ambos se enlaçavam, se estiravam, se retorciam no empenho que cada qual tinha de submeter o outro, Alberto e Pai-Raiol eram como dois cães de fila, ou como duas panteras que se tivessem aferrado.

Evidente se patenteava a resolução de cada um dos lutadores; porque ambos mediam às vezes o espaço que os separava do abismo: era horrível o silêncio dos negros assim agarrados: só se ouviam dois arquejos que se misturavam ferozes.

Esméria teve medo e fugiu a correr.

Paulo Borges horrorizou-se e incapaz de levantar-se e de andar, disse a Lourença que fosse chamar o feitor e gente para prender os dois escravos.

Mas Alberto vira Esméria fugir medrosa e, envergonhado da prolonga­da luta, fez um esforço supremo, e caiu sobre o Pai-Raiol, a quem lançara por terra.

O Hércules dominou o negro malvado, que todavia resistiu ainda, cra­vando as unhas no pescoço de Alberto; este, porém, não só empregou esse mesmo recurso; mas ainda com um dos joelhos sobre o estômago do inimigo já sua presa, de todo o submeteu.

Um ronco lúgubre anunciador de agonia saiu do peito de Pai-Raiol, cujas mãos inertes caíram, desgarrando as dez unhas do pescoço de Alberto.

O vencedor inundado pelo próprio sangue e pelo sangue do inimigo, retirou então do estômago deste seu joelho rochedo, e ouviu por breve instante e com assanhada fúria o estertor do moribundo que estava a seus pés, e arquejante de fadiga, mas raivoso ainda, curvou-se de novo, levantou e­m seus braços de Hércules o corpo do negro odiado, e avançando dois passos, atirou-o no fundo de pedregoso precipício.

O eco do baque do corpo do Pai-Raiol, que tombando de ponta de rocha ­em ponta de rocha caíra sem dúvida despedaçado no rio que corria embaixo por entre pedras escalavradas, completou a vingança terrível de Alberto, que enxugando com a manga da camisa o sangue que lhe saía do pescoço ferido, retirava-se ofegante para sua senzala, quando o feitor e alguns escravos que chegavam, o cercaram e prenderam.

O Hércules negro não procurou resistir; estendeu os braços para rece­ber as cordas, dizendo:

– Sim! Eu matei Pai-Raiol.

Mas Paulo Borges surgiu então do meio das ervas e da grama, e ainda trêmulo e sobressaltado exclamou:

– Soltem esse negro, que salvou-me do meu assassino: amanhã eu lhe darei carta de liberdade.

E acrescentou sem hesitar:

Vão prender Esméria, a cúmplice de Pai-Raiol...