A insolente e inqualificável ameaça de Dermany tinha sublevado o co­ração de Cândida: na grandeza do seu amor, que ainda resistia ao conhe­cimento da indignidade do homem amado, ela sentira o enorme insulto feito à sua delicadeza, o menosprezo do seu pudor, o desprezo da sua in­dividualidade nesse egoísmo enregelado de especulador imoral, que se mostrava pronto a patentear o erro fatal que a aviltava, a documentá-lo com a confissão imprudente lançada em um bilhete confidencial; e, feri­da em sua vaidade, ultrajada nessa intenção perversa, preferira o maior martírio a submeter-se, como escrava medrosa, à prepotência de senhor infame.

No dia da ameaça e da afronta, na hora mais fogosa de seu ardente res­sentimento, Cândida irrefletida e exaltada, surpreendida pela proposi­ção, pelo pedido, pela exclamação de suprema esperança e empenho transportado de sua mãe, em um ímpeto de vingança, em um grito de náufraga, que vê a salvação, em uma explosão de dor e de desespero de­clarara aceitar Frederico por seu noivo.

Mas logo após, a consciência fulminara a aviltada, que desmaiou.

Cândida chegara aos dias do mais triste arrependimento e do mais acerbo desencanto: Frederico se mostrava a seus olhos como anjo salvador; Frederico era para ela a grandiosidade, a virtude, o belo moral, e Der­many, o objeto da sua paixão e não mais do seu amor, era a embriaguez ignóbil, o grilhão que pesa e fere, o vício que se esconde porque faz ver­gonha, e apesar de sua paixão, se tivesse liberdade de escolha, se um erro irreparável não lhe escravizasse a vontade, Cândida exultaria, proclamando-se noiva e esposa de Frederico.

Mas três dias tinham passado sem que se efetuasse a ameaça de Der­many, e, embora justamente revoltada, Cândida não tolerasse mais a con­versação da mucama, abrandou a sua cólera e principiou a considerar o atrevido recado do seu amante como recurso doido de apaixonado em de­lírio.

E nesses três dias foi-se também agigantando no ânimo da infeliz moça uma preocupação cruelíssima, que a separava mais que nunca de Frederi­co, e que a impelia mais que nunca para Dermany.

Nesses três dias, marcados como os últimos por aflitivo cálculo, Cândida, não sabendo como o amor contrariado pode determinar e muitas ve­zes determina perturbações físicas profundas na vida animal da mulher, estremecia pavorosamente, lembrando outra causa em regra produtora de iguais alterações.

E, muito pior, ela conservara na cidade certo costume geral na roça; ao levantar-se do leito de manhã, ou ainda na cama tomava sempre uma chávena de café que a mucama lhe trazia, e nos dois últimos dias logo de­pois de tomar o café, tivera náuseas e vômitos.

Na segunda manhã, observando a repetição desses fenômenos, Lucin­da fez um movimento de espanto e de temor.

Cândida pálida, banhada em frio suor e cheia de perturbação, pergun­tou à escrava:

– Achas-me doente?

A mucama hesitava.

– Fala... fala...

– Minha senhora tem tido febre?

– Não... nada mais sinto além...disto.

– Em tal caso... ah! Minha senhora...

– Dize: que pensas?... – tornou a moça com voz alterada.

– Eu não sei... tenho medo...

Em sua nova e tremenda aflição Cândida esqueceu o desgosto e a des­confiança que ultimamente lhe inspirara a mucama, e murmurou a tre­mer um segredo no ouvido da pérfida que, recuando, como aterrada e es­condendo o rosto com as mãos, disse:

– Oh!... Minha senhora está grávida...

A sentença não fulminou a vítima – ; porque esta já esperava o golpe. Cândida fechou os olhos e exalou um gemido repassado de dor.

Lucinda traiçoeira e malvada, deixou-se em pé e emudecida por alguns minutos, e apenas suspirando com fingida mágoa: por fim disse:

– Minha senhora... voltarei daqui a pouco... dissimule e espere.

E, voltando as costas, saiu alegre, e radiosa de animação infernal. Cândida ficou só; – ah! Não se julgava mais só.

Que remorsos! Que amargura! Que emoções novas! Que raciocínios! Que terror!

Na pavorosa situação em que, iludida e atraiçoada, a mísera se acredi­tava, era força pensar, medir o futuro, raciocinar...

E ela o fazia, coitada, torcendo com ânsia as mãos, e derramando lágri­mas que lhe abrasavam os olhos.

Esperar era nada resolver, e nada resolver, era a vida em torturas com os olhos no ventre, amando e temendo o testemunho do opróbrio a crescer e a acusá-la...

Cair de joelhos aos pés de sua mãe era matá-la e matar-se... e sua po­bre mãe já doente... e as apreensões da tísica!

Fugir com Dermany era a partilha da infâmia...

Dermany era ladrão e condenado...

Mas ainda assim Dermany era o pai de seu filho... que contas do pai daria ela a seu filho?...

E se ela conseguisse obter o perdão de seus pais, estes no infalível cui­dado que tomariam para esconder a sua degradação, que fariam de seu fi­lho? Que destino dariam à inocente criatura?...

Em sua presumida maternidade a voz do ventre falava-lhe ao coração.

Cândida não estava, mas supondo-se condenada a ser mãe, já defendia seu filho.

Foi no meio dessa tempestade de idéias tormentosas e cada qual mais pungente, que Lucinda voltou para junto de sua senhora.

A padecente estendeu os braços para o carrasco de máscara negra e per­guntou, chorando:

– E agora que será de mim, Lucinda?

A refalsada mucama respondeu:

– Já pensei, minha senhora; há um remédio... cruel, mas certís­simo...

– Qual é?...

– O aborto...

– Oh! Nunca! Nunca!...

– Então... é preciso ter ânimo... dizer tudo e quanto antes à sua mãe...

– Eu a mataria...

– É verdade que ela parece doente... anda com uma tosse...

– E então?

– Não vejo outro recurso, minha senhora...

– E... Dermany?

– Eu não falo mais nesse homem a minha senhora.

– Se meu pai consentisse o nosso casamento, e Dermany quisesse viver comigo no fundo de um deserto...

Lucinda não respondeu.

– Fala – disse Cândida em tom quase humilde.

A mucama falou:

– Minha senhora não pode esperar tal consentimento.

– Eu o sei.

– Pode porém obrigar o perdão de seus pais...

– E como?...

– Casando apesar deles com o Sr. Dermany: feito o casamento, o per­dão dos pais vem depois: é o que se vê sempre...

– Sim... Sim... mas esse francês... seus crimes infamantes...

– Eu não aconselho, minha senhora – disse a perversa escrava.

– Ah! Lucinda...

Cândida interrompeu-se, e retorcendo-se com ansiedade e náuseas, imediatamente depois experimentou ainda urna vez a ação vomitiva do tártaro emético tomado no café.

– Não há dúvida possível – disse a mucama escrava – e o pior é que em poucos dias hão de começar as suspeitas de minha senhora-velha...

– Meu Deus! – exclamou Cândida em desespero.

– Minha senhora, é necessário resignar-se...

– Oh! Não! Não! Não! É impossível! Antes morrer!

– E seu filho?... – perguntou a escrava-demônio.

Cândida desfez-se em pranto angustiado.

A escrava ia evidentemente dominando de novo a senhora, e arrastan­do-a para as garras de Dermany.