O perverso conselho da escrava, não era mais inspiração de imoralidade sem cálculo, era já impulso de maldade refletida. Lucinda, mucama de quarto de sua senhora, compreendera que não poderia ser estranha aos misteriosos empenhos dos namorados desta, e que a sua intervenção se tornaria indispensável nos casos de correspondência amorosa, sendo portanto certas as compensações, ou as recompensas da sua condescendência e discrição. A mucama escrava queria negociar, lucrar, explorando os galanteios de Cândida, e por isso a induzia a proceder de modo ofensivo do recato, que é a égide da senhora honesta.

Cândida tinha para si que sabia com a química de seu espírito instruído separar perfeitamente a verdade, e os conhecimentos conveniente dos falsos, rudes, e baixos conceitos próprios da ignorância e dos costumes da escrava; mas na presunçosa confiança da sua inteligência e sagacidade recebia sempre e guardava uma parte da lição desmoralizadora.

Embora tivesse ouvido com repugnância, Cândida não pôde esquecer o pérfido conselho da mucama, e observando cuidadosa as outras moças nos saraus, no teatro, nas reuniões, reconheceu que Lucinda havia caluniado muitas donzelas, no absolutismo da sua regra insolente e difamadora; não menos, porém, se convenceu de que algumas jovens prestavam-se ao galanteio dos mancebos e mostravam aprazer-se dele. Fez mais do que observar, procurou com a provocação de gracejos, e com o recurso da intimidade amiga, tão fácil de se estabelecer entre as moças, informar-se dos artifícios, das emoções, dos inconvenientes, e das conseqüências do namoro-entretenimento, e, imprudente e louca, acabou por ver gozos de vaidade no fingimento de amor, na profanação sacrílega do sentimento.

Esse estudo frio e refletido feito por Cândida, assinala por certo a degradação da sua íntima castidade, e a ruína da pureza de seu coração tão novo; ela, porém, se mostrou ainda mais vítima da influência perniciosa da mucama que lhe envenenara o espírito desde menina, encantando-se menos do quadro suave e enlevador da modéstia, do pudor, e da reserva angélica das donzelas recatadas ou inocentes, do que da expansão ousada, do olhar provocador, dos sorrisos maliciosos, e desse louco embevecimen­to, e desses ridículos esgares das moças namoradeiras, pobres e inconsider­adas algozes do mais precioso dos seus tesouros, – da virgindade do sentimento.

Ousemos encarar de frente, e atacar sem piedade o grave erro que se condena, murmurando o que se deve castigar com a sua exposição em nu­dez, mas em benefício das próprias culpadas de suicídio do coração.

O gosto ou a prática do galanteio é um vício, como o jogo, como a em­briaguez, como a luxúria: não amar, mas simular amor, ouvir e dizer fine­zas, sonhar brincando futuros de duas vidas identificadas em uma, pelo estreito enlaçamento dos corações, trocar suspiros e flores, trocar um anel de madeixa por um retrato, permitir um aperto de mão e às vezes pagá-lo, tolerar na valsa o abraço não duvidoso para quem o recebe, consentir em que lhe escrevam cartas de amor, e ousar escrevê-las, eis os mais sim­ples, e os menos arriscados atrevimentos do galanteio ou do namoro, que se afigura inculpável e permitido a algumas jovens imprudentes.

Ai da donzela que incauta ousa tocar uma só vez com os lábios na taça envenenada, mas doce do galanteio, comédia sacrílega do amor; ai dela! O galanteio, por isso mesmo que é um arremedo do verdadeiro amor, tem emoções, transportes d’alma, gozos de imaginação, ciúmes, e arreba­tamentos, que embora pervertam, inebriam os sentidos, alvoroçam o coração; uma vez levada aos lábios essa taça enfeitiçada e peçonhenta, a imaginação pode mais e o galanteio torna-se exigente, insaciável, como o jogo, a embriaguez, a luxúria.

Desse vício do namoro, porque ele se impõe como vício, resulta para a donzela o reparo a princípio mudo e logo depois a murmuração surda da sociedade, as suspeitas que ofendem sua virtude, uma turva fonte onde a inveja e a maledicência vão beber calúnias, o embotamento da sensibilida­de que se gasta no fingimento, a frieza enregelada do coração degenerad­o pelo costume da mentira e da violência dos sentimentos, e mais tar­de a hesitante confiança, ou a triste e dissimulada desconfiança do mari­do, se a donzela chega a casar, porque a moça namoradeira é em regra a que mais dificilmente consegue conquistar um noivo.

Até aqui as conseqüências menos funestas do vício do galanteio: as outras mais graves não se podem medir; porque são susceptíveis de ir até aquele extremo infortúnio, que priva a donzela do seu direito ao título honroso de senhora.

O gosto, a prática do namoro por divertimento é mais, é pior do que a profanação do amor, divina flama que sublimiza a mulher, é a chave que abre a porta às suspeitas aleivosas, ou a mão sinistra que às vezes arrasta para a desonra a mulher, e nessa desonra determina e realiza o suicídio moral da donzela.