Cândida pudera, durante o dia, libertar-se do demônio que a perdera, e para quem não tinha mais olhos, sem torturas de extremo e ignominioso confrangimento; não ousou, porém, à noite fechar a porta de seu quarto à mucama fatal – Como fazê-lo?... Por um lado, despertaria suspeitas, apreensões no espírito de seus pais, que exigiriam explicações dos motivos do noturno afastamento da crioula; por outro, a força moral perdida para com Lucinda, a dependência em que ficara a senhora tão escrava da escrava, que lhe conhecia todos os segredos, e que fora testemunha do seu opróbrio, a necessidade indeclinável enfim dos seus serviços, como inter­mediária do seu já criminoso amor, obrigaram Cândida a submeter-se de noite à companhia da sua mucama.

Essa submissão era um erro, mas imposto pela lógica do erro; era um castigo; era o resultado da degradação da moça livre em face da escrava que podia já governá-la pela intimidação, e até pela ameaça.

Cândida conseguira preparar e aproveitar um ensejo de recolher-se, despir-se, às pressas, deitar-se e apagar a luz na ausência de Lucinda: fingiu-se adormecida quando a mucama entrou no quarto; esta, po­rém, que medrosa das conseqüências da sua premeditada traição, precisa­va reconquistar a confiança da senhora, esperou, velando, hora oportuna, a hora do mais pesado sono da família, para ir falar à vítima da sua corrupção.

De que modo poderia a escrava malvada ganhar de novo, não a estima, mas a vontade e o ânimo da senhora?... Só viciando-a, envenenando-a moralmente ainda mais. Ela ia pois atenuar ou justificar a culpa, e por­tanto facilitar subseqüente depravação.

Lucinda foi ajoelhar-se à cabeceira do leito de Cândida, como às vezes fazia para conversar com a senhora em voz baixa.

Cândida não dormia, mas simulava dormir.

A mucama chamou-a duas vezes, dizendo:

– Minha senhora!

Cândida não respondeu.

Lucinda procurou e achou uma das mãos da senhora, puxou-a para si, atreveu-se a beijá-la.

Era força acordar; Cândida fez como se acordasse, e perguntou:

– Quem é?

– Minha senhora... sou eu... eu que sofro, porque me suponho abor­recida... detestada...

– Deixa-me... – disse Cândida, retirando a mão que a negra beijara.

– Minha senhora se atormenta, como criança... me aborrece em vez de estimar-me mais... resolveu o seu destino... vai ser por força feliz... e se martiriza...

– Deixa-me... ou gritarei por meu pai... tu és perversa...

Lucinda tinha a certeza de que Cândida não gritaria.

– Minha senhora é injusta... se soubesse o que ele disse... o que ele pensa... o que ele está pronto a fazer...

Ele era Souvanel: o que ele tinha dito, o que ele pensava, o que estava pronto a fazer, era o futuro, a vida, a salvação, tudo, absolutamente tudo para Cândida.

A pobre moça, envergonhada ainda mesmo na escuridão, não repeliu mais a escrava; deixou-se porém em silêncio.

Lucinda, cruel, quis obrigá-la a falar, para obrigá-la a entregar-se a ela, como até a última noite.

– Minha senhora se presta a ouvir-me?...

Cândida não respondeu:

– Não sei que faça... temo e não falo... entretanto... o que ele disse...

O mesmo silêncio.

– Minha senhora está implacável... não quer ouvir-me... a vítima sou eu... paciência... eu me vou embora...

Cândida murmurou tremendo:

– Fala...

– Ainda bem! Minha senhora toma juízo: que fez? O que outras muitas têm feito em situação desesperada... assegurou a sua felicidade com o favor prévio, que prendeu e escravizou o seu amante, e tornou impossível a oposição de seus pais a um casamento ditoso, que vai em breve realizar-se...

– Ah!...

– Ontem, saindo daqui, ele me disse: “Que anjo! Agora sim, eu me reconheço amado, e morrerei por ela! Adoro-a mil vezes mais... se for preciso, confessarei minha dita à família da minha noiva, e ou com aprovação de seus pais, ou pela intervenção da justiça, ou asilando em minha casa Cândida fugitiva do lar opressor, Cândida será minha esposa legítima, ou eu seria o mais infame dos homens...”.

– Ele... disse isso?...

– Chorando, minha senhora... o moço francês está como doido... a sua paixão toca ao delírio... para ele minha senhora tornou-se objeto sa­grado...

– Lucinda! Não me iludes?

– Ah, minha senhora! Experimente, se a iludo.

Cândida estremeceu, como se a ponta de um punhal a tivesse tocado.

– Experimentar?... De que modo? – perguntou com voz abalada por turva desconfiança.

A mucama respondeu:

– Ele diz que está pronto a obedecer a minha senhora, como seu escravo, e que minha senhora pode impor-lhe todo e qualquer sacrifício, na certeza de ver cumprida a sua vontade, menos só...

– Menos quê?

– Deixar de amá-la, e sujeitar-se a vê-la esposa de outro...

– Eu... esposa de outro!

– Minha senhora experimente, pois, se a iludo: mande pedir, ou or­dene qualquer prova bem difícil de amor ao Sr. Souvanel.

– Que posso eu pedir-lhe senão que me salve?...

– Ele pensa nisso; está resolvido a tudo que minha senhora quiser; diz, porém, que tem um plano seguro...

– Qual?...

– Não mo quis explicar: julga que o bom resultado do seu plano depende do maior segredo e que somente a minha senhora...

– Que me escreva – disse rapidamente Cândida.

– Era isso mesmo o que ele pretendia fazer hoje; mas...

– Mas o quê?

– Meus senhores-velhos, e meu senhor-moço desconfiam, que minha senhora e o Sr. Souvanel se escrevem, e os pajens receberam ameaças va­gas, que só um entendeu, e esse não ousa por ora continuar a ser portador das carta...

– E então... Lucinda?...

– É preciso esperar, minha senhora.

Cândida abafou um gemido.

– Esperar... até quando?...

– Até que ele possa escrever-lhe; não há outro recurso; porque... mi­nha senhora não deve mais expor-se...

– Oh! Nunca... – murmurou Cândida aterrada.

– Também ele pensa assim... não por si; mas por minha senhora...

– Também ele?... – disse a infeliz moça, sobressaltando-se.

– Não por si... – repetiu a pérfida e malvada mucama.

Cândida pôs-se a chorar.

– De que chora?...

– E ontem?... por que não pensou ele assim... e tu... por que...

Os soluços cortaram a fala à vítima.