Saindo de um sonho angustiado, ainda sob as impressões cruéis do sus­peito enregelamento do amante, mal acordada e logo sujeita aos terrores inspirados pelo bilhete inesperado de Souvanel, Cândida sem refletir e obedecendo ao primeiro impulso do amor alvoroçado, tinha marcado um novo encontro, em que provavelmente seria pela segunda vez escrava do amante algoz. Ela o compreendeu, tremendo de vergonha e de medo, logo depois do desperto da consciência; era porém tarde: o convite e o emprazamento já estavam dados, e Lucinda desaparecera.

Quando voltou ao quarto para vestir a senhora, a mucama disse:

– O pajem foi pôr o sinal no lugar ajustado

– Que pressa! – observou Cândida.

– Mas se é preciso aproveitar ocasiões, minha senhora!

O dia estava como destinado para o recebimento de cartas impor­tantes.

Cândida recebera o assustador bilhete de Souvanel ao despertar de manhã.

À tarde chegaram, vindas pelo correio, cartas de Frederico para Cândida e Leonídia.

Enquanto sua mãe lia a carta do filho adotivo, que muito longamente lhe escrevera, Cândida foi para o seu quarto e com desconfiança e curiosi­dade leu também a que lhe era dirigida e que dizia assim: “Minha irmã.

– Já sei demais para te fazer chorar: o verdadeiro nome do falso Souvanel é Paulo Dermany, que fugiu de Marselha, onde era caixeiro de uma casa comercial, porque, frenético jogador, não só roubou avultada quantia ao amo, como houve dinheiro, falsificando as firmas de diversos negocian­tes. O ministro da França no Rio de Janeiro descobriu Dermany e lhe faz seguir a pista desde a sua passagem por esta capital, tendo já requerido ao nosso governo a sua extradição. Por escrúpulo, talvez exagerado, de gene­rosidade, fiz prevenir a esse desgraçado mancebo dos perigos que corre. Mando-te incluso o retrato fotografado de Dermany: é um dos exempla­res remetidos pela polícia francesa para ser mais facilmente reconhecido e preso o criminoso. Minha pobre irmã, semelhante homem é indigno de ti: esquece-o, repele-o, salva-te. Tenho a certeza de que o falso Souvanel já, em conseqüência dos avisos, que de mim recebeu, terá desaparecido da nossa querida cidade; se porém assim não for, autorizo-te a comunicar-lhe esta minha carta. Minha irmã, chora tuas ilusões perdidas; mas agra­dece a Deus a luz salvadora, que ainda te chega a tempo. Adeus: recebe o coração todo irmão de – Frederico.”

Cândida, acabando de ler a carta, ficou imóvel, e como pasmada e es­túpida a olhar, ora para o papel, ora para o retrato de Souvanel ou de Dermany...

No fim de alguns minutos riu-se com o rir da demência e murmurou:

– A luz salvadora... que ainda... me chega... a tempo!!!

E rindo insensata, corriam-lhe dos olhos lágrimas em fios...

Logo depois, terrível reação nervosa lançou-a no leito em convulsivo tremor, e em seco e violento soluçar...

Uma hora passou assim, hora de angustiado arrependimento, e de torturadora agitação do corpo em contrações dolorosas, da alma em suspensão de capacidade para refletir.

No meio desse indizível sofrimento a vítima adormeceu: a natureza cansara; duas noites de vigília tormentosa, e a declinação da crise nervo­sa, tinham imposto à mísera moça o favor do sono.

Quando Cândida despertou, tremeu, encontrando em pé e a olhá-la Leonídia, que tinha em suas mãos a carta e o retrato mandados por Frede­rico.

A mãe procurou sossegar a filha.

– O que Frederico te escreveu, escreveu-me também: agradece-lhe os santos cuidados, e segue-lhe os sábios conselhos de irmão.

E assim dizendo, Leonídia saiu.

Cândida sentiu frieza cruel nas palavras de sua mãe, que lhe deixara a carta de Frederico, e fizera em pedaços o retrato de Souvanel: ergueu-se exaltada, e loucamente prendendo-se à tábua última, à extrema esperan­ça de náufrago:

– Tudo isto é falso! – exclamou. – Souvanel é inocente, caluniado, perseguido, ameaçado de morte, porque eu o amo!

E diante do toucador, concertando seu penteado, e depois os enfeites do corpinho de seu vestido, dizia ainda:

– Esta noite darei a Souvanel a carta de Frederico... observá-lo-ei, verei a verdade na confissão muda da sua fisionomia, e se a calúnia o fere, se a prepotência nos persegue, serei dele apesar de todos...

E meditando, radiou de alegria triunfal, dizendo, ou pensando:

– Que recurso fácil e seguro! Se Souvanel é criminoso, não ousará mostrar-se, disputando a minha mão de esposa perante a justiça pública; se o ousar é porque não tem crime, nem teme a ação da justiça: hei de propor a Souvanel que amanhã mesmo requeira à autoridade competente o depósito da minha pessoa fora da casa de meus pais, e o favor da lei para o nosso casamento...

E em seu apaixonado delírio ingrata aos pais, e toda abandonando-se ao louco amor votado a um homem mal conhecido e pelo menos já muito suspeito, Cândida foi procurar sua mãe.

A casa estava em movimento. Florêncio da Silva que voltara da cidade mais cedo do que costumava, escrevia, dobrava e lacrava papéis com apressada diligência: Leonídia, arrumava canastras de roupa e punha em serviço relativo todas as escravas: dir-se-ia que se ocupava de uma mudan­ça de residência, ou de próxima viagem de toda a família.

Lucinda em obediência à ordem peremptória dobrava os vestidos de sua senhora, e enchia com eles grandes caixas de viagem.

– Que é isto, minha mãe? – perguntou Cândida.

– Vamos passar algumas semanas na nossa cidade: lá te divertirás muito mais do que na chácara: vai buscar as tuas jóias... partiremos ama­nhã... apressa-te... ajuda-me nestas arrumações de improviso, que o mau gosto de teu pai às vezes de nós exige...

Cândida obedeceu triste, mas tranqüilamente; porque a mudança, e a viagem eram para o dia seguinte, e lhe deixavam ainda a noite para a sua última e decisiva conferência com Souvanel.

Além disso na cidade de... não seria do mesmo modo possível a Cân­dida entender-se com o seu amado? Não estaria perto dele, como na chá­cara? Não corria o amante menos perigo de ser surpreendido, e de cair nos laços da ativa perseguição?...

Cândida prestou-se docilmente a ajudar a sua mãe nos preparativos da mudança temporária de residência.

Às dez horas da noite tudo estava pronto.

Mas às onze horas ninguém ainda se tinha recolhido para dormir, e Florêncio da Silva tomava disposições e dava ordens para a viagem.

Cândida começava a inquietar-se...

À meia-noite em ponto Florêncio da Silva disse:

– Vamos!

– Para onde, meu pai? – perguntou Cândida.

– Para longe do desvario, minha filha; vamos para a cidade do Rio Janeiro.