Frederico prevenira seu pai de que sérios deveres o retinham na capital, junto da família de Florêncio da Silva, e continuava a dedicar-se a Leoní­dia, velando por Cândida. Tinha conseguido a vitória mais difícil, con­vencer sua irmã adotiva dos crimes e da indignidade do homem que a apaixonara; mas não lhe escapando a luta da razão e do amor que ainda se travava no ânimo da infeliz, prosseguia em sua nobre tarefa, atacando re­petidamente esse amor desatinado com a força de vigorosos raciocínios, e com severos conselhos dados sem amargor e sem recriminações.

O generoso mancebo sabia fazer-se ouvir: falando de Dermany, paten­teava com a luz da evidência seus atos criminosos e o tremendo e vergo­nhoso castigo que ele teria de receber; nunca porém o injuriava com in­sultosa qualificação; ao contrário parecia lamentá-lo, chamando-o desgra­çado; combatendo o amor de Cândida, desculpava-o, reconhecia a impos­sibilidade de sufocá-lo de súbito, e apelando para o tempo, fulminava o desatinado sentimento, avultando suas lamentáveis e desastrosas conse­qüências e finalmente sem dar à sua voz o tom, e às suas falas a forma de consolação, lembrava a Cândida sua mocidade e sua beleza, e a segurança do mais belo noivo, à sua escolha, em prazo marcado pelo esquecimento, ou pelo arrefecimento do primeiro amor.

Para a triste moça Frederico tinha só um nome – minha irmã: – da sua afeição nunca falava, da ternura de Florêncio da Silva e de Leonídia sempre, e no fim de seus conselhos, todos absolutamente contrários ao amor de Dermany, mais de uma vez declarou-se pronto a facilitar todos os meios para remover e pôr a salvo da justiça o desgraçado, se ele se prestas­se a retirar-se do Brasil.

Cândida abatida, obumbrada e submersa em aflições que escondia, ainda experimentava maior dor ante as amplas manifestações do coração grandioso, da sensibilidade delicada, e da modesta superioridade de Fre­derico; ela o escutava, o atendia, o consultava com essa plena seguridade que o reconhecimento da virtude, e a mais elevada estima sabem impor. Mil vezes a mísera moça já se tinha revoltado contra o amor que a infelici­tava, e que a fizera espantar a serena felicidade que Frederico lhe oferece­ra, querendo-a por esposa; e embora a si mesma dissesse que nunca fora suficientemente digna de homem tão nobre, amargurava-se lembrando, que se tornara absolutamente indigna dele.

Cândida não amava, admirava Frederico; e ainda a pesar seu amava Dermany; mas se o que sentia por aquele era estima sem amor, o que sen­tia por este era amor sem estima.

Frederico estava animado e animava Florêncio da Silva e Leonídia, as­severando que sua irmã se submetia ao império da razão.

Mas exatamente no dia em que Cândida recebera o recado ameaçador de Dermany, Frederico, tendo lido uma carta que Liberato lhe escrevera da cidade de... dirigiu-se imediatamente à casa de Florêncio da Silva.

Quando Frederico entrou na sala, Leonídia estava só: Florêncio tinha saído; Cândida repousava.

Pálida, agitada, nervosa, Leonídia antes de falar, apresentou a Frederi­co uma carta de seu filho.

– Ah! Liberato lhe escreveu, minha mãe?...

– Dermany veio para a Corte – disse com voz lúgubre a triste se­nhora.

– Era disso que eu vinha preveni-la... mas... por que tão forte como­ção?... minha mãe está sofrendo muito...

Leonídia murmurou, levando a mão ao peito:

– Talvez... mas há de passar... tudo passa...

E interrompendo Frederico que ia falar, perguntou rápida:

– Receias que Cândida ainda... se deixe alucinar por esse homem?

– Não; não; sossegue: minha irmã começa a pensar bem.

– Mas Dermany... esse francês audaz...

– Dermany?... – respondeu Frederico, afetando serenidade. – So­bram-nos os meios de distanciá-lo: tranqüilize-se: entre ele e minha irmã estou eu.

– Meu filho, vejo bem a ruga do despeito e da cólera encrespada na tua fronte! – exclamou Leonídia. – Que pensamento é o teu?

Frederico sorriu-se e tornou, dizendo:

– Que pensamento?... E tão simples e natural! Defenderei minha irmã.

Leonídia empalideceu ainda mais, e levantando-se, disse:

– Frederico! Não quero que exponhas a tua vida!

– Lembro-me eu de tal, minha mãe?... Não se aflija sem motivo.

– Oh!... Além da desgraça da filha o medo de te perder, Frederico! Porque eu sinto, eu vejo, eu sei que és capaz....

– Sossegue, minha mãe...

– Se eu te conheço!... Não te precipitarás doidamente, bem sei; mas passo a passo, e decidido tu irás até... o fim; e o fim?... Que é, que será o fim?...

Leonídia lia claro no ânimo do filho adotivo e em agitação cruel gesti­culava sem falar, e apenas de espaço em espaço, soltando a voz, dizia com interrupções:

– Que homem fatal! – Mísera filha!... – Que perigos! – Meu Deus!

Frederico procurava debalde sossegar sua mãe adotiva.

A aflição da nobre senhora era produzida pelo concerto de mil tormen­tos que a angustiavam: Leonídia tremia pelo receio da perdição e da de­sonra de Cândida; imaginava, talvez exagerada, os riscos a que via expos­to o seu querido Frederico, o amado irmão de seus filhos; desesperava da realização de seu mais doce e belo sonho da vida, do casamento de Cândi­da com Frederico, e enfim, pensando em seu marido, em sua família, confrangia-se, sentindo que os pesares, e a desgraça a feriam de morte com uma moléstia fatal, cujos sinistros anúncios ela estava escondendo, e que breve teria de deixar seu esposo em viuvez, seus filhos – sua mísera filha sem mãe...

E Leonídia – tão feliz, tão completamente feliz até bem pouco – amava ainda a vida; mas queria a vida, acreditava que podia curar-se, restabelecer-se, viver muito, se fosse possível, o que a vinda de Dermany pa­ra a capital ia talvez tornar impossível...

A dor, o medo, o amor da filha, do marido, de Liberato, de Frederico, os seus sofrimentos, as apreensões da morte, a ternura de mãe, a louca paixão de Cândida, o seu dulcíssimo sonho, a imagem sinistra de Der­many, as desilusões, a vergonha, torturavam a sensível e infeliz Leonídia.

Frederico a olhava dolorosamente comovido.

– Oh, minha mãe! Que amargura é essa? – tinha ele por vezes perguntado.

Leonídia acabara por desatar em pranto.

– Não chore! Não chore assim, que me mata, minha mãe! Eu estou aqui: eu juro que salvarei minha irmã...

Um raio de inspiração extrema, de esperança doida, iluminou o rosto de Leonídia, que estancando as lágrimas, encarou Frederico e o perguntou com voz abatida, trêmula, e célere:

– Um amor leviano... amor, oportunamente vencido, desonra uma menina?

– Não, minha mãe.

– Cândida arrependida ainda pode merecer um homem honesto?

– Pode... pode... há de ser feliz – respondeu Frederico enternecido e só pensando em tranqüilizar sua mãe adotiva.

– E tu, Frederico?... Tu queres salvar Cândida?... Queres dar-me a vida?... Queres pagar-me... é pagar-me que eu digo, o leite, o berço, a criação, e o amor?... Queres, meu filho?!!!

– Minha mãe!... – exclamou Frederico, que enfim compreendia a situação violenta em que se achava.

Leonídia pôs as mãos sobre os ombros do mancebo, olhou-o com os olhos em fogo de amor maternal, e por entre lágrimas, riu-se sem cons­ciência do riso, deixou-se de repente cair de joelhos, e disse a soluçar:

– Frederico!... Meu filho!... Casa com minha filha!...

Levantando Leonídia em seus braços, Frederico a depôs no sofá, e cain­do por sua vez de joelhos, tomou-lhe ambas as mãos, e as beijou choran­do, e exclamando:

– Minha mãe! Minha mãe!

Nos escrúpulos de seu brio, Frederico tinha condenado Cândida, como indigna do seu amor puríssimo; mas fora de si, vendo o santo desespero de Leonídia, sua mãe idolatrada, entre o seu brio e aquela dor suprema, pôs todas as suas esperanças na paixão de Cândida por Dermany, e em úl­timo caso incapaz de resistir, capaz somente de abnegação e de sacrifício, a temer e a tremer hesitava, pensava urgido e em comoção veementíssi­rna, quando Leonídia com o coração a convulsar-lhe os lábios, perguntou-lhe de novo e arrebatada:

– Meu filho! E Cândida?...

– Será minha esposa, se ela livremente declarar que o quer ser – res­pondeu o mancebo, abaixando a cabeça.

Leonídia correu para fora da sala, e quase logo voltou, trazendo Cândi­da pelo braço.

– Cândida – disse a pobre mãe em sublime alvoroço, mostrando Fre­derico à filha. – Cândida! Cândida! Este anjo da família te aceita por es­posa, se quiseres salvar-te nas suas asas!!! Oh, minha filha! Responde.

O ultraje recebido no recado de Dermany, a comoção e o pranto de Leonídia, a palidez e ansiedade de Frederico, que desejava escutar – não – e que podia também indicar o empenho de ouvir – sim – , a surpre­sa, a dor, as emoções diversas, a vertigem enfim, perturbaram todas as idéias de Cândida, que esquecendo o passado, os erros, a nódoa, o amor, os remorsos, balbuciou atônita, como espantada, como idiota:

– Eu quero.

Leonídia atirou-se nos braços de Frederico.

Cândida ficou em pé a olhar absorta; mas passados alguns momentos cambaleou, e sem gemer nem gritar caiu desmaiada na cadeira que en­controu mais próxima.