Cândida contava já dezesseis anos quando chegaram da Europa Liberato e Frederico, que depois de haver terminado no Rio de Janeiro seus exames de humanidades, e obtido no Imperial Colégio de Pedro II os diplomas de bacharéis em letras, tinham ido para o Velho Mundo civilizado fazer nas mais famosas e competentes escolas estudos regulares de agricultura.

Florêncio da Silva e Plácido Rodrigues destinavam sabiamente seus filhos à tranqüila, feliz, e moralizada vida agrícola; mas querendo-os lavradores ilustrados e perfeitamente sabidos em agricultura, os haviam man­dado a entesourar ciência e teorias relativas, preparando-lhes no Brasil vasto e fácil campo para que eles as aplicassem, corrigissem, e aproveitassem na prática.

Florêncio da Silva e Plácido Rodrigues davam, procedendo assim, exemplo louvável e digno de imitação a seus concidadãos.

A família de Frederico era bem limitada: resumia-se toda em seu pai viúvo no dia em que sua mãe lhe dera a vida; essa desgraça porém o tornara irmão colaço de Liberato; porque Leonídia repartira com ele o leite que pertencia a Liberato. Frederico era filho único de Plácido Rodrigues.

Liberato e Frederico tinham a mesma idade, sendo o primeiro apenas alguns dias mais velho que o outro: amavam-se como os irmãos que se amam, tinham ambos fraternizado no leite materno, no berço, nos brincos de inf­ância, nos estudos da escola primária, no colégio de instrução secundária e no bacharelamento, e ainda na Europa nas escolas agrícolas; deviam ainda visitar e estudar juntos durante dois anos a indústria agrícol­a dos Estados Unidos da América do Norte e das Antilhas. No Rio de Janeiro, no Velho Mundo, em toda parte tinham morado juntos, e vivido in­separáveis, e era justo e útil que assim procedessem; porque sendo irmãos de criação e pela amizade mais estreita, nenhum dos dois prescindia do outro, porque cada um deles completava o outro.

Eram ambos inteligentes e estudiosos, mas Liberato excedia tanto a Frederico em brilhantismo de imaginação, quanto este o sobrepujava em reflexão fria e segurança de juízo; o primeiro era bonito de rosto e elegante de figura, o segundo tinha a fronte magnífica, a face porém descarnada, de ossos salientes, pálida, desproporcionada, e melancólica, os olhos ardentes, porém em .fundas órbitas, e o corpo alto, magro com exagerado desenvolvimento da ossificação, e com os músculos secos; em Liberato predominava a coragem impetuosa sem base na força material, em Frederico a energia sem audácia e com o vigor de braços de ferro; aquele seria capaz de uma vingança atroz em um momento de furor, mas desarmado pelo tempo tornava-se inofensivo inimigo; este refletido, e indomável recordador da ofensa, meditando o desforço e a punição sem os cálculos do medo e com a convicção rígida do cumprimento do dever severo; ainda o primeiro generoso por instinto, por íntimo e natural movimento até a leviandade; e ainda o segundo generoso por caráter e sem exageração; dedicado somente a seus amigos, mas na dedicação capaz de ir até à heroicidade.

Liberato era o entusiasmo, Frederico era a razão, e, como sempre se observa e é força que assim seja, cada um deles com os defeitos correspondentes às suas nobres qualidades.

A amizade íntima, fraternal que unia os dois irmãos colaços era abençoada pelos pais de um e de outro, e naturalmente se adivinha que Florêncio da Silva e Plácido Rodrigues deviam calcular com um laço ainda mais estreito que sagrasse com segunda fraternidade a aliança apertadíssima desses mancebos.

Os dois velhos amigos já haviam sonhado juntos com a suave dita do casamento de Frederico e Cândida: Liberato já tinha sondado o coração de Frederico, e achara nele o santo amor que o tornaria duas vezes irmão de seu amigo.

A idéia de uma imposição era estranha por certo ao ânimo de Florêncio da Silva, e não pairava no de Plácido Rodrigues, que amava a afilhada quase tanto como ao filho; ambos, porém, faziam votos ao céu para que desabrochasse no coração de Cândida o terno sentimento que começava a aditar o coração de Frederico.

Nenhum dos generosos interessados nesse projeto inspirado pela amizade tinha dele falado a Cândida; ela, porém, adivinhara com o instinto de mulher os desejos e combinações de seus pais e de seu padrinho e guardara para si o segredo que havia descoberto, quando seu irmão adotivo já estava na Europa.

Cândida amava desde a sua primeira infância a Frederico, e nessa época preferia-o até a Liberato, que era menos condescendente com os seus caprichos de menina; continuou sempre a amá-lo com expansão suave, porém só com amor de irmã.

Aos treze anos de idade, ao tempo em que Lucinda tinha já encetado as maliciosas e desmoralizadoras explicações de sua natureza e da sua mis­são de mulher, Cândida se apercebera da terna afeição, do amor que não era mais de irmão, que ela havia inspirado a Frederico: não ouvira a este nem falas apaixonadas, nem ternas promessas, e ainda mais ternas rogati­vas de sonhada e desejada união em breve futuro; mas em certo constran­gimento respeitoso, no ardor do olhar, na contemplação suave, na doçura do falar, no leve tremor da mão que apertava a sua, reconhecera que era amada.

A mocinha deixara-se amar assim, e sorria docemente a Frederico, em­bora não o achasse bonito: logo depois a retirada dos dois jovens, que se­guiam para a Europa, interrompeu o desenvolvimento, e deixou no berço esse amor apenas nascente.

Frederico dissera, chorando, ao abraçar Cândida em despedida:

– Oh!... Não te esqueças de mim, Cândida!

E então não a chamou irmã..

Cândida, no fim de três dias lembrava-se de Frederico somente como seu irmão adotivo.

Passados três anos voltaram enfim da Europa os dois mancebos.

Aos vinte e dois anos Frederico chegara ao seu completo crescimento físico e à perfeita e firme determinação de seu caráter: o viço mais fulgen­te da juventude não lhe engraçara a figura, mas robustecera-lhe a têmpera nobre e generosa do coração, e dera-lhe à alma, a retidão do juízo e a pru­dência da reflexão.

Cândida, sabendo da chegada de Liberato e Frederico à cidade do Rio de Janeiro, contou com um namorado mais; em breve, porém, só achou em Frederico um cavalheiro que respeitoso e discreto a amava sem falar­-lhe de amor, e como que estudando-a, e esperando para cair-lhe aos pés uma hora, que a razão estava encarregada de marcar ao amor.

A vaidosa ressentia-se do que lhe parecia frieza.

Também a leviana donzela, estimando sempre muito a Frederico, jul­gou-se incapaz e muito longe de poder amá-lo; alguns dias de convivência na casa de seu pai, ou na de seu padrinho a convenceram de que esse jovem ­podia e devia ser o seu melhor amigo, seu irmão, como dantes; porém nunca seu marido. Cândida via bem que Frederico era feio, malfeito, desengraçado; mas habituada desde a infância ao seu aspecto desagradá­vel, perdoava-lhe fácil e sem esforço os senões da figura, admirando-lhe a energia persistente do caráter, e às vezes a força física evidente do deforme Alcides; não era pois a fealdade do mancebo que fechava a este o coração de Cândida.

Mas a bela e severa inteligência de Frederico, a profundeza do seu juízo, uma certa gravidade varonil já dominando os arrojos da idade impetuosa, impunham a Cândida respeito, invencível reconhecimento de superioridade, que contradiziam o sentimento do amor no ânimo 1eve, inconsiderado, imprudente e viciado pelo sensualismo da mucama, e pelas degradações do namoro.

A irrefletida moça, pensando em Frederico, sentia como uma espécie de temor daquele homem tão sério: menos ligeira e precipitada acharia no desenvolvimento desse sentir, que se lhe afigurava temor, a fonte puríssima do amor que lhe parecia impossível e que se basearia na estima perfeita das grandes e nobres qualidades do amado; ela, porém, afastava do seu espírito a imagem daquele feio moço-velho, e sonhava com um marido bailarino, apaixonado de saraus e de teatros, escravo de seus caprichos, complacente, primeiro incensador de sua vaidade, e até cúmplice louco ou cego com a ostentação de sua formosura exigente de cultos na sociedade elegante.

De seu lado Frederico não compreendeu a donzela que amava; viu-a com os olhos, julgou-a com as apreciações de seu pai, padrinho perdido de amizade pela afilhada, e de Liberato, irmão extremoso e exaltado; julgou-a por si mesmo com as lembranças da inocência da infância da menina, e adorou-a com o suave, mas deferente culto que é devido à pureza. Esse modo de exprimir amor chegava tarde à alma daquela moça de dezesseis anos: em vez de beatificá-la, atormentou-a; anacrônico e involuntariamente cruel, despertou em sua consciência o primeiro remorso.

Era um amor que envergonhava e vexava a namoradeira: não podendo rir-se de Frederico, a louca, experimentando na santidade daquele amor virtuoso e reverente uma punição da sua imodéstia e garridice, odiou-o, por não lhe ser possível desprezá-lo.

Odiou-o ainda mais, porque o respeito indomável a que a obrigava a estima em que tinha, e a espécie de temor que lhe inspirava Frederico, levou-a forçadamente a esquivar-se dos namoros, que em todas as reuniões provocava, a resfriar as flamas, a escassear as liberdades, que tolerava seus galanteadores, e a afetar o recato que aliás nunca devera ter esquecido.

Fazendo sobre si mesma essa violência, que atestava por certo o poder e a influência do feio moço-velho, Cândida em breve revoltou-se contra ele, e o aborreceu, ou supôs aborrecê-lo pelas privações que se impunha.

Estes sentimentos contraditórios, esse respeito e espécie de temor, e esse ódio pelo flagelo da consciência, esse recato obrigado e esse suposto aborrecimento pela privação de levianos e indesculpáveis gozos, provam que uma hora de reflexão em Cândida, dez minutos de mais experiência da vida artificial das nossas sociedades, e das exigências vaidosas da imaginação da donzela formosa e leviana em Frederico, fariam encantada e como que milagrosamente realizar de súbito os benignos e generosos planos de Florêncio da Silva e Plácido Rodrigues.

No respeito, na espécie de temor, no ódio, no suposto aborrecimento que Cândida estava confusamente votando a Frederico escondia-se, aprofundava-se o amor mais sereno e mais seguro, aquele amor que não arrefece nunca, o amor que fica e não voa, o amor que se consagra pela estima.

Frederico poderia ter encantado Cândida.

Mas não houve quem falasse à pobre moça, quem a esclarecesse, quem dirigisse. Em seu quarto de dormir e ao lado do seu toucador ela tinha a mucama escrava a impeli-la para o mal: nos salões, nas reuniões, ela tinha a turificação da sua vaidade e o tormento das reservas medrosas, que aumentava o preço e a magia dos turíbulos arredados.

E ainda nos salões de reunião, e fora deles nos colóquios de amizade quase fraternal, Frederico, procurando com escrupulosa delicadeza inspi­rar e merecer o mais terno sentimento, sem o pensar deprimia Cândida, exaltando-a pelos tesouros morais que ela já não possuía, e amedrontava-a com apreensões da vida tranqüila, séria, e nobremente recatada, que o dever e a virtude regulam e que a leviandade desama.

Tudo pois concorria para afastar Cândida de Frederico.