Em outra lição, e em outros breves momentos de liberdade, Souvanel mostrando um terno e doloroso pensamento da inspirada Favorita de Verdi, sorriu docemente e disse malicioso a Cândida.

– Deixe sair o coração na voz gemente... gema com o coração nos lábios

– Arreceio-me... – balbuciou a discípula.

– Por quê?

– O coração exposto assim?... E se mo roubassem?

– Ah! mademoiselle! Por mim eu seria ladrão de consciência.

– Como?

– Para não deixá-la pelo roubo infalível com o peito vazio, pediria de joelhos a glória de uma troca de corações...

– Não entendo bem esta música – disse Cândida, sorrindo meigamente.

E sem dúvida para conter no ponto a que tinham chegado, as finezas que o mestre lhe dizia, cantou; mas cantou com apuro de ternura, e com verdadeira ou bem simulada comoção, a música tão repassada de sentimento da Favorita.

Para tanto ousar, ouvir e dizer, era evidente que andava já adiantado o galanteio entre Souvanel e Cândida.

A música arrebata a alma, embriaga os sentidos.

Não há sedutor mais perigoso do que um mestre desmoralizado, e en­tre os mestres capazes de tentar seduzir o mais perigoso é o de música e principalmente o de canto; porque ele ensina as falas que falam ao cora­ção, arrebatam a alma e embriagam os sentidos.

Souvanel achara Cândida bonita, e, tendo logo razão para julgá-la romanesca, acreditou-a susceptível de deixar-se apaixonar, viu nela um cál­culo de futuro, e mediu as vantagens materiais que esperavam ao genro de Florêncio da Silva. Para ele não podia ser isso obra de pronta reflexão: estrangeiro mal conhecido, com a sua vida passada em nuvens de dúvidas, sem garantias da honra do seu nome, sem fortuna, sem abonador de sua moralidade, a princípio nem concebeu a idéia de possibilidade de casamento e apenas por distração explorou a sensibilidade e brincou com o coração da que supunha simples e inexperiente moça da roça; mas à medida que Cândida namoradeira, parecia fraquear deixando-se arder em flamas de amor, o jovem francês exaltava suas esperanças e pouco a pouco foi chegando ao cálculo do que, na própria consciência, julgando impossível, não se atrevera a imaginar nos primeiros dias.

Egoísta e frio especulador, descrente em religião, alheio às noções do dever, desdenhando dos brasileiros em refalsado segredo, ambicioso de riqueza, escondendo nas dobras do agrado pérfido, nas artimanhas da docilidade, da condescendência, das magias da música, nas teias sutis do espírito vivo e travesso a baixa urdidura da lisonja, da adulação, do servilismo, para achar protetores, ganho mais fácil e fundamento de fortuna, Souva­nel não hesitou em abusar da confiança de seus hóspedes, em esquecer os favores que recebera de Liberato; mas cauteloso, dissimulado, traiçoeiro, laborou no mistério de rápidas e fugitivas provocações de amor, de confi­dências velozes de apaixonado extremo, e de paciente, lenta e hábil propinação do veneno da sedução.

Souvanel não sabia que falava, não à sensibilidade, mas ao ressentimento e ao desvario de Cândida, no ensejo mais oportuno e favorável.

Desde a noite em que Lucinda repetira à sua senhora com falaz inexa­tidão, o que haviam conversado Florêncio da Silva e Liberato sobre o pro­jeto de casamento, Cândida se tornara suspeitosa das intenções de sua fa­mília, revoltada contra a idéia de opressora privação dos saraus e dos tea­tros, e disposta à resistência e à oposição à vontade de seus pais.

Desconfiada de todos e de tudo, reparara e observara com ânimo pre­venido; seu pai e sua mãe não lhe falaram de Frederico e continuaram sempre a abismá-la, como dantes, no dilúvio das delicadezas do mais es­tremoso amor; Liberato, porém, discorrera por mais de uma vez em sua presença, atacando a inconveniência dos bailes freqüentes para uma don­zela modesta e recatada, e ferira com exagerados sarcasmos o teatro ruim, grotesco, e imoral da pequena, mas já rica cidade de...

Ouvindo Liberato, Florêncio da Silva e Leonídia tinham defendido fracamente, e deixado condenar sem, protesto, as duas arenas onde triunfava esplêndida e maravilhosa a formosura de sua filha.

Cândida ouvira o que chamava sermões de Liberato com desprezadora indiferença silenciosa, que admirava a seus pais; ela, porém, ouvia com a revolta n’alma, reconhecendo nas observações de seu irmão a verdade das revelações da sua escrava.

Cândida em impulsos de reação detestou, ou pensou detestar Frederico, e jurou a si mesma que jamais consentiria em ser sua esposa.

Em dois anos de sacrilégio do sentimento, em dois anos passados em fingimentos de amor, em tolerância, provocações, e prática indesculpável de dezenas de namoros, Cândida conservara o coração livre e como inóspito do sentimento que absorve a vida da mulher: dir-se-ia que o hábito de fingir lhe embotara o sentir. Até os dezesseis anos não tinha amado; nem um só mancebo, nem o mais belo dos seus namorados conseguira atear o fogo em sua alma enregelada.

Cândida tinha vontade de amar, desejo louco de experimentar esse sentimento que perturba a razão, põe em incêndio o coração, escraviza uma, desatina outro; lera já em vinte romances dos melhores autores a filologia e a autópsia do amor, e ela não o conhecia ainda, como o aprendera nos romances; desejava amar e não amava.

Suspeitando, acreditando enfim, que seus pais queriam impor-lhe em Frederico um marido, e que nesse empenho planejavam roubá-la ao culto dos seus adoradores, por instintivo incitamento de resistência e de oposição desejou ainda mais amar, e não amava!...

Cândida não amava; porque em vinte ou trinta turificadores que queimavam incenso a seus pés, ela que recebia as turificações de todos, quando procurava distinguir um entre tantos, esquecia vinte nos gelos da indiferença pelo demérito deles, confundia dez no peso igual do merecimento, e nunca chegava à preferência de um só, marcado pela escolha do coração.

A namoradeira tinha almejado amor deveras por tresloucada curiosidade, e passara finalmente a almejar ainda mais, a querer, a pedir ao céu esse cativeiro d’alma por vingança da suposta opressão.

Foi nesse estado de espírito, nessas circunstâncias determinadas por in­justas prevenções, nesse doido empenho de amar, que Souvanel se mostrou aos olhos, aos ouvidos, e ao coração aberto de Cândida.