Liberato e seus dois companheiros pouco se demoraram na câmara, e Souvanel, ao vê-los sair, levantou-se e seguiu-os.

Cândida tinha ficado como petrificada.

Frederico em pé, por detrás da cadeira da moça confundida, estava imóvel, silencioso, mas profundamente alvoroçado.

Em Cândida o primeiro sentimento que se despertou foi o do reconhe­cimento da grandeza d’alma daquele mancebo, que desprezado e ofendi­do em seu amor, a socorrera e salvara ainda no ato da ofensa; ela, porém, sentia sobre sua cabeça o respirar agitado de Frederico, conturbava-se sob o peso enorme desse anélito, e tinha medo, a criminosa, da primeira pala­vra do juiz.

Em Frederico havia dédalo de idéias inconseqüentes e contraditórias, no seu espírito o desassossego das inspirações incoerentes, no seu coração a luta do fogo e do gelo: o mancebo pensava em afastar-se e não sabia como fazê-lo, estava preso pela confusão de Cândida, tinha repugnância de ir esbarrar com Souvanel, tinha medo de encontrar Liberato e de ser por ele interrogado; e permanecia inerte, em pé, mudo, imóvel, a olhar sem ver, sem consciência da sua posição, sem atinar com uma saída desse estado de estupefação que seguira ao extremo desengano de seu amor, e ao instinti­vo movimento de sua generosidade.

Ele nem viu que as contradanças haviam terminado, e que ao convite de Florêncio da Silva os cantadores dos Reis saíam do salão para a mesa da ceia, acompanhados pelas senhoras e cavalheiros da sociedade do hóspede obsequiador.

Todos se tinham levantado e iam deixando o salão: somente Cândida sentada, e por trás de sua cadeira Frederico em pé, pareciam alheios ao que se passava.

Mas diante deles parou por um instante Leonídia, que conduzia pelas mãos duas senhoras, e disse sorrindo a seu filho de criação:

– Frederico, zela bem essa menina, que parece dormir sob a tua proteção vigilante: toma conta dela, meu filho!

E seguiu conversando com as amigas, a quem naturalmente explicava os santos laços que ligavam aquele mancebo à sua família.

Frederico estremecera à voz de Leonídia, e como por encanto sua alma escapou à estupefação, e engrandeceu-se ao desperto da consciência, e da razão.

Cândida quis amparar-se em sua mãe que passava, e fez um movimento para levantar-se.

– Fica – disse em voz baixa Frederico.

A moça obedeceu, convulsando.

Frederico abriu a meia-porta que estava cerrada, e foi sentar-se ao lado de Cândida; mas sem olhar para ela.

Cândida tremia. O mancebo falou.

– Sabes, é impossível quë não saibas, que nutri a esperança de merecer o teu amor; porque eu te amava muito: sabes que nossas famílias desejavam e projetavam nossa união... debalde o negarias...tu sabes tudo isso, Cândida! Atende bem: não me queixo de ti por não ter podido ser amado; amor não se obriga. O sonho desvaneceu-se: que o quisesses amanhã, eu não seria mais teu noivo. O amante apaixonado morreu para sempre; mas ainda vive o irmão: Cândida! Tu és minha irmã e precisas mim: dá-me a tua confiança.

A donzela não respondeu.

– Escuta, minha irmã; o que eu vi inda há pouco, foi doidice de menina... ninguém o saberá. Amas a Souvanel?... É um amor imprudente. Souvanel pode ser digno ou indigno de ti: na dúvida o teu comprometimento por esse amor é grave perigo, é loucura. Cândida! Oh filha de minha mãe, escuta: se amas deveras a Souvanel, contém-te e espera; eu te juro que irei informar-me sobre o passado, a vida, os costumes desse homem: se for preciso, minha irmã, irei à França, hei de saber quem ele é se for digno de ti, conta comigo, protegerei o teu amor, e serei uma das testemunhas do teu casamento. Sê portanto franca comigo, Cândida, responde a teu irmão: tu amas a Souvanel?

– Amo-o – murmurou Cândida.

Frederico, ouvindo a confissão de Cândida, não pôde reprimir um doloroso abalo; dominando-se porém logo, continuou:

– Perdoa: eu te amava... é natural que a certeza do teu amor por outrem me magoasse a pesar meu: hei de vencer esta fraqueza: confia em mim. Pois que amas a Souvanel, eu me incumbo de esclarecer-me sobre o que ele é e tem sido na sociedade. Eu te juro, minha irmã, eu te juro por minha honra, e pela vida de meu pai, que te direi a verdade. Eu te quero feliz, Cândida! Eu te quero feliz e esplêndida pela virtude; mas não te arrisques, não te percas, filha de minha mãe!

Cândida apertou entre as suas a mão de Frederico, e deixando cair lágrimas nas mãos apertadas, disse, chorando:

– Tu perdoas, como Deus, e és bom como Deus, Frederico!

– Eu sou um desgraçado, e tu és sacrílega, comparando-me com Deus, que é perfeito e onipotente; Deus, porém, te perdoará o sacrilégio, se me deres o que te peço em nome de nossa mãe!

– O quê, Frederico?

– Confiança plena, minha irmã!

– Eis a minha resposta – disse Cândida.

E levantando entre as suas a mão de Frederico, beijou-a rapidamente três vezes.

– Cândida! – exclamou Frederico, retirando a mão.

– Nestes três beijos, três vezes o coração da irmã – disse Cândida.

O mancebo levantou-se e conduziu aquela a quem chamara filha de sua mãe para a mesa da ceia, onde a fez sentar-se, e logo depois saiu calmo e sereno; chegando porém ao salão, que achou solitário, foi acelerado abrigar-se ao recanto de uma janela, agarrado a cujo parapeito experi­mentou e sofreu em convulsivo tremor, a reação violentamente demorada dos diversos afetos que tempesteavam em seu ânimo.