A noite precedente passara toda em fervoroso e alegre festim, e as se­nhoras cansadas de dançar e de velar, embora em regozijo, amanheceram somente ao meio-dia.

Duas horas antes, conversavam reunidos no salão quase todos os cava­lheiros hóspedes e amigos de Florêncio da Silva.

Souvanel animava a conversação e entretinha com a sua espirituosa garrulice a sociedade masculina que o cercava, e impávido atrevia-se a afron­tar os olhos de Frederico, que aliás tranqüilo e grave não lhe mostrava nem ressentimento, nem indiferença, e apenas frieza imperceptível a to­dos, e só por ele sentida, na modificação do antigo acolhimento.

O jovem francês falou da França e de Paris, e contou cem histórias das delícias daquele país de vulcões políticos, e daquela capital rainha da mo­da e dos prazeres.

Então um velho fazendeiro disse-lhe:

– Está visto que o Brasil é para o senhor terra feia do desterro, e a pró­pria cidade do Rio de Janeiro, deserto medonho.

Souvanel provocava desde meia hora essa observação ou alguma outra que lhe desse ensejo para fazer calculada proposta; respondeu pois imediatamente:

– O Brasil é o meu seio de amparo, terra abençoada por Deus, que no futuro igualará e excederá em opulência e brilho a minha França. Amo a França como filho, amo o Brasil como o menino enjeitado ama a santa mulher caridosa, que sem ser sua mãe, lhe deu desinteressada o leite de seus peitos. Viva o Brasil!... – bradou ele com entusiasmo que iludiu a quase todos.

– Estou vendo que também depois de Paris, não há para o senhor cidade como a do Rio de Janeiro – disse o mesmo velho que se encantava, ouvindo o astuto francês.

– Não – respondeu Souvanel. – Sou franco: não gostei da cidade do Rio de Janeiro: é uma capital sem monumentos, sem divertimentos públicos; capital, onde o viver custa caro, como em Londres, e não oferece compensações amenas; não me agrada a cidade do Rio de Janeiro; eu pre­firo a ela a cidade de São Paulo, onde o acadêmico é príncipe, e a demo­cracia ri aos sonhos esperançosos da mocidade inteligente que saúda enco­rajada o futuro; mas, depois de São Paulo, não conheço torrão mais belo, mais atraente, mais hospitaleiro, e mais capaz de fazer dormir as saudades da minha França, do que esta nascente e esperançosa cidade de...., do que este rico, civilizado e nobre município.

Frederico que passeava ao longo do salão, parou de súbito, e encarou Souvanel com olhar suspeitoso.

– É lisonja! É favor! – disseram algumas vozes.

– Lisonja! – tornou Souvanel. – Eu dou prova de que o não é: po­bre proscrito político, exploro para viver os conhecimentos que tenho da arte de música; na capital do Brasil posso já contar com algumas discípu­las de piano e canto; pois bem! Dêem-me os senhores a certeza de iguais recursos nesta pequena cidade, e eu juro preferi-la à orgulhosa cabeça do império.

Frederico franziu os supercílios e continuou a passear pelo salão.

O oferecimento de Souvanel era claro, positivo; sua notável habilidade no ensino tornara-se famosa pelo extraordinário aproveitamento de Cândida em poucas e rápidas lições; a palavra do mestre de música francês foi tomada ao sério: em poucos minutos teve ele a segurança de dez discí­pulas.

Souvanel declarou que ficaria estabelecido na cidade de...., como mestre de piano e canto.

Frederico viu na resolução audaz de Souvanel cálculo refinado de hipocrisia e de egoísmo, ou expediente de amorosa paixão para a conquista de Cândida: tinha decidido deixar Leonídia na ignorância do amor de sua fi­lha, enquanto se habilitasse para julgar do merecimento e das condições morais desse estrangeiro mal conhecido; medindo, porém, os perigos que Cândida ia correr em suas relações com semelhante mestre de canto, pois que não podia duvidar de que Souvanel a contasse também por discípula, à vista dos milagres de ensino operados em lições passageiras, determinou prevenir sua mãe adotiva de quanto sabia, e do que era preciso acautelar.

O cumprimento de semelhante dever custava muito a Frederico: era míngua da sua magnanimidade da noite antecedente; podia afigurar-se vingança ciumenta de desprezo sofrido: embora, era sagrado dever a cum­prir: Frederico havia de satisfazê-lo.

O caso não urgia: ele assentou em esperar um ou dois dias, observando solícito o procedimento de Cândida.

A resolução de Souvanel foi durante o almoço o ponto exclusivo da conversação geral.

Aplaudiam-se todas os fazendeiros e habitantes do município daquele inesperado tesouro que lhes ficava da festa do Natal.

Cândida estava por certo preparada para ouvir a feliz nova; recebeu-a pois sem sobressalto e notando que Frederico a observava suspeitoso, con­teve a alegria e esforçou-se por mostrar-se pensativa.

Souvanel agradeceu comovido o favor com que o exaltavam e, encarecendo a proteção de que era objeto, declinou os nomes das dez discípulas que já contava.

– Esqueceu uma, Sr. Souvanel – disse Florêncio da Silva.

– Qual?

– Minha filha.

Cândida viu que Frederico se turbara, e voltara o rosto: revoltou-se dentro de si contra o censor a quem aliás tinha prometido plena confiança de irmã; mas obrigada a respeitá-lo, disse:

– Meu pai, eu não devo ser ingrata ao meu antigo mestre...

Souvanel empalideceu: Frederico olhou com reconhecimento para Cândida.

Florêncio da Silva quis insistir; sua filha, porém, o interrompeu, di­zendo:

– Conheço por experiência própria a superioridade do método de en­sino de M. Souvanel; mas quero aprender menos, conservando o meu velho professor.

Não faltou quem louvasse o procedimento de Cândida, que entretanto nunca fora tão hipócrita e refalsada.

O almoço terminou. Cândida prendeu-se todo o dia às outras senhoras, e evidentemente evitou Souvanel.

Frederico não compreendia ainda até onde pode chegar o fingimento de uma moça namoradeira, e começou a ter esperanças de poder salvar Cândida sem perturbar a serenidade e o amor maternal de Leonídia. Ele estudou até à noite a fisionomia e o proceder de sua irmã adotiva, acompanhou-lhe o olhar e os passos; acreditou ter-lhe sondado o coração, e em suas observações solícitas, mas disfarçadas, supôs encontrar melancolia e dor mal abafadas, anelo e temor, e exagerada esquivança própria de donzela inexperiente, alvoraçada pela convicção do perigo: tudo indicava seu amor por Souvanel; ao menos, porém, a prudência já, com excesso talvez, a fazia arrecear-se do homem desconhecido, a quem amava.

As comoções diversas da última noite, a morte da sua esperança de ser amado, o sacrifício que se impusera por dedicação, tinham roubado o sono e alquebrado as forças a Frederico, que cedendo à fadiga de horas longas de interessada e triste indagação dos sentimentos e das disposições de Cândida, sem querer, adormeceu em uma otomana na mesma câmara onde na véspera surpreendera Souvanel a beijar a mão que lhe era amorosamente abandonada.

O sono de Frederico não escapou a Cândida, que foi debruçar-se a uma janela, passando diante de Souvanel, o qual não perdeu o ensejo.

O jovem francês aproximou-se da janela com aparências respeitosas:

– Fiquei só por ti, e me rejeitaste!... – disse-lhe.

– Pobre louco! Terei dois mestres; um por dissimulação, outro por amor: espera.

– Até quando?

– Até que ele durma no navio em que tem de seguir para os Estados Unidos.

E Cândida com um volver d’olhos mostrou a câmara, onde Frederico repousava.

Souvanel fez um movimento com os ombros, como indicando que des­prezava o mancebo, e imediatamente disse:

– A entrevista que pedi?... É indispensável...

– Não canto; absolutamente não canto esta noite – disse Cândida, vendo chegar Liberato.

– E por quê? – perguntou este.

– Porque... estou rouca: só cantarei para acordar Frederico; hei de porém cantar ao pé dele...

– Boa idéia! – despertemos o preguiçoso.

A idéia realizou-se.

Frederico despertou no meio de suaves harmonias, e em face de Cândi­da que ainda o enganava cruelmente assim.

Quando, logo depois, pôde falar-lhe sem indiscrição, Frederico, docemente iludido, disse à sua irmã adotiva:

– Obrigado, Cândida; mas eu penso que já posso dormir...

– Pode – respondeu a pérfida moça, sorrindo meigamente.