Travada estava a luta entre o anjo e o demônio; entre o gênio benéfico que se empenhava em salvar, e o gênio maléfico a quem convinha perder Cândida; entre Frederico, o homem livre e moralizado, cuja nobilíssima natureza a educação aprimorara, e Lucinda, a mulher escrava e pervertida, sem educação zeladora dos costumes, e cuja natureza, ainda mesmo que excelente pudesse ter sido, se achava desde muito depravada pela ignomínia e pelas torpezas da escravidão.

Cândida, não se abandonava quanto devia à segurança plena e ampla na dedicação extraordinária e magnífica de Frederico: repugnava à sua vaidade o prestar fé àquele pronto sacrifício do amor que inspirara: em seus hábitos de conquistadora e namoradeira, via nessa substituição de sentimentos, nessa abnegação de amante, nesse exclusivo extremo da amizade fraternal, força de vontade maior que o poder da sua beleza, e portanto uma ofensa ao império dos seus encantos, que julgava irresistíveis; além disso um pouco impressionada pelas prevenções e receios, que a mucama procurara acender em seu ânimo, hesitava, presumindo que Frederico, sempre dela apaixonado, sempre com aspirações a desposá-la, fizesse de mentirosa virtude uma rede para prendê-la, um engano soporífero para, aproveitando-lhe o sono, separá-la perpetuamente de Souvanel, seu rival.

Hesitante assim, Cândida não soube ser franca e leal com seu irmão adotivo, e antes empregou todos os recursos da dissimulação para iludi-lo e levá-lo a acreditar na sua fiel submissão, aos conselhos que lhe ouvira; mas, ainda suspeitosa por vaidade, sua alma obrigada ao culto da majestade da virtude, embeveceu-se muitas vezes contemplando Frederico tão grande na proteção com que a queria escudar, e no artifício com que se acusara, a fim de poupá-la aos desgostos, às repreensões, e ao triste desencanto de sua mãe.

Trazendo porém da sala essas impressões, e no meio de injustas dúvidas pelo menos a convicção de que devia acautelar-se contra os possíveis ardis de Frederico e também contra os perigosos enleios do amor de Sou­vanel, Cândida, recolhendo-se a seu quarto, esbarrou com Lucinda que parecia sobressaltada a esperá-la.

– Que há? – perguntou.

A mucama pôs um dedo na boca, recomendando silêncio, e apontou para o lado, onde ficava contígua a sala de dormir de Leonídia.

Por alguns minutos os gestos e as meias palavras pronunciadas quase imperceptivelmente pela escrava anunciaram crítica situação.

A senhora e a mucama emprazaram-se mais com a mímica, do que com frases abafadas, para conferenciarem oportunamente nessa mesma e já adiantada noite.

Cândida trocou seu toilette de festa por leve roupão de dormir, e deitou-se, mandando apagar a luz.

Eram duas horas da madrugada.

Meia hora depois o silêncio tornara-se profundo. A casa toda dormia.

Velavam somente o medo de Cândida, a perversão da mucama escrava, e a infame traição de Souvanel.

Cândida sentiu os leves passos de Lucinda que trêmula foi ajoelhar-se à cabeceira do leito de sua senhora.

Falaram então ambas, apuridando-se.

A mucama disse:

– O senhor Frederico revelou tudo a minha senhora velha... à mãe de minha senhora...

– Tu ouviste?

– Ouvi o fim da conversação, foi ali na sala de jantar... o senhor Fre­derico prestou um juramento que não percebi; mas falaram de casamen­to...

– Ah!

– Depois o senhor Frederico foi encontrar-se no jardim com o moço francês...

– Sim... saíram ambos... reparei...

– E intimou-o a deixar esta casa amanhã...

– Ele? Com que direito?

– O moço francês quer desafiar o senhor Frederico...

– Oh! Não!... Isso não...

– Mas temendo comprometer o nome de minha senhora, chora de raiva... amanhã não sei o que será... ele fala em retirar-se para a Corte, esperar lá o senhor Frederico e provocá-lo ao que chama duelo de morte...

– Sei o que é... é horrível! Não quero isso!...

– Há só um meio de o impedir; diz o moço francês.

– Qual?

– É minha senhora ir entender-se com ele sobre as esperanças e o futuro do seu amor, receber suas despedidas e combinar seus planos de pró­ximo casamento...

– Como? Quando? Onde?

– No quarto de Leopoldo, o pajem fiel de meu senhor: há no quarto uma janela para o jardim: o pajem é dedicado a minha senhora e ao moço francês, que às três horas lá a espera...

– Lucinda!

– Minha senhora pode ir e voltar sem ser sentida... dormem todos...

– Oh! Não!... É impossível!...

– Eu a acompanharei, se minha senhora tem medo...

– Mas... um encontro assim... a tais horas... não irei.

– A tais horas é que deve ser para que ninguém o suspeite...

– E a minha honra?

– O moço francês é incapaz de atentar contra ela.

– E meu pai? E minha mãe?

– Dormem a sono solto.

– Render-me desse modo escrava de um homem... aviltar-me!

O relógio da sala de jantar anunciou três horas.

Cândida estremeceu.

– É a hora – disse Lucinda.

– Não irei; seria indigna, se fosse...

– Minha senhora não ama.

– Oh! Se amo!!!

– E se ele fugir-lhe? E se ele se fizer matar...

– É para desesperar... Lucinda!

– Ânimo! Vamos: nunca se viu uma senhora conversar com um homem?

Cândida sentou-se no leito; Lucinda ergueu-se:

– Vamos ... eu a acompanho, minha senhora...

Cândida refletiu por breves instantes e disse:

– Souvanel quer pôr em experiência a minha virtude...

E tornou a deitar-se.

– Minha senhora – disse Lucinda – , pense bem nos perigos a que expõe o seu amor, e o homem que ama.

– Não irei: Souvanel há de amar-me muito mais; porque não vou.

– E fugirá... e matar-se-á...

– Escuta: vai tu por mim...

– Como? – perguntou a mucama com um certo abalo.

– Vai tu por mim – repetiu Cândida.

– Eu, por minha senhora? – murmurou Lucinda, inflamando-se, e contendo as flamas de súbito pensamento.

– Sim; vai: dize-lhe que o amo, que o adoro, que serei sua esposa; que sofra tudo por minha causa e não se ausente; que espere e confie no meu amor; que hei de ser dele... dele só e para sempre... mas honesta e pura; e que por honesta e pura não posso dar-lhe, nem jamais lhe darei conferências a tais horas, em semelhante lugar.

– Minha senhora!... – disse a mucama, que aliás não mais insistia.

– Vai por mim.

E Lucinda perfeitamente convencida da acertada resolução de Cândi­da, saiu do quarto pé ante pé e foi por sua senhora a encontrar-se com Souvanel.

Passou uma longa hora que a Cândida pareceu um século.

Enfim Lucinda voltou, e chegou-se ao leito de sua senhora.

– Ele fica – murmurou com voz trêmula.

– Disseste-lhe tudo que te recomendei?

– Tudo.

– E ele?

– Comoveu-se... chorou... e resignou-se.

– Que me mandou dizer?

– Que a adora, e que há de obedecer à sua vontade, como escravo.

– Não se baterá com Frederico?

– Não, minha senhora; mas detesta-o.

– E por que tardaste tanto?

A mucama riu-se da pergunta da senhora, riu-se contente e zombetei­ra; porque ria-se na escuridão, e não atraiçoava a sua torpeza no escanda­loso riso, riu-se pois de Candida e respondeu:

– O moço francês demorou-se... esperei-o mais de meia hora...

– Ainda bem que não fui eu que o esperei – disse Cândida.