Evidentemente o desvario desordenava as idéias de Cândida e obscure­cia-lhe a razão. Antes da repulsa de seus pais ao noivo que almejava, já audaciosa, descomedida e ingrata, ousava autorizar o recurso à justiça pú­blica contra o zelo de sua família. Ela esquecia que a filha honesta e boa, prefere ser mártir da prepotência de seus pais a fazer o martírio deles; es­quecia não menos, que mostrando-se fácil a incorrer em tal extremo de desobediência, fácil se denunciava a perder-se em todos os desatinos que a paixão exigisse pertinaz.

Souvanel pressentiu todas as vantagens que podia recolher da situação delirante do ânimo de Cândida: contava com a negativa pronta, imedia­ta, e decidida de Florêncio da Silva ao seu pedido de casamento com a rica donzela; mas sem hesitar pelo vexame da rejeição, e animado pelo côm­puto das conseqüências do desespero da pobre alucinada, respondeu ao louco bilhete, afetando submissão ao sacrifício de ir humilhar-se a receber afronta certa; jurando porém de novo que, depois de pago esse extremo tributo ao mais ardente e desgraçado amor, vingar-se-ia da família mais cruel e da amante mais fraca e insensível, deixando-lhes o remorso do seu suicídio realizado, onde os indiferentes e os ignorantes da sua indomável paixão menos pudessem adivinhar quem era a causadora da sua morte.

O refletido e infame sedutor, escreveu, rindo-se, a ameaça do suicídio; meditou depois, relendo a carta que escrevera, sobre o rude e mais que trivial e já ridículo meio de intimidação que empregava; lembrando, po­rém, o resultado do seu precedente e ultra-romântico bilhete, pôs ilimita­da esperança no desatino de Cândida, acrescentou ao que havia escrito prévias despedidas, adeuses, e bençãos à sua amada, e fazendo seguir à sua fúnebre resposta o competente destino, deitou-se tranqüilamente e não foi ao teatro, somente porque com razão detestava o teatro da cidade de...

Logo no dia seguinte, Souvanel que evidentemente tinha pressa, vestiu seus melhores vestidos, e antes da hora em que Florêncio da Silva costumava partir para a cidade, onde presidia à sua casa comercial, apresentou-se na bela chácara.

Recebido agradavelmente por toda a família, increpado de seu longo esquecimento de procurá-la, festejado pelo olhar brilhante e pelo sorrir encantado, dadivoso e já perdido e francamente amoroso de Cândida, provocado pelos gracejos de Liberato, que lhe tomava contas da ausência, Souvanel, tomando grave e estudada atitude, pediu solenemente audiên­cia a Florêncio da Silva.

Leonídia apreensiva, Liberato aturdido, Cândida comovida, ansiosa e tomada de palidez ou descoramento, que denunciava cúmplice conhecimento do motivo da inesperada visita, deixaram a sós na sala Florêncio da Silva e Souvanel.

Passados apenas dez minutos, Florêncio da Silva chamou a esposa e os filhos, que voltando à sala, viram das janelas Souvanel que se retirava, fustigando o cavalo, o qual já ia a trote largo.

Florêncio parecia ainda surpreso.

Cândida tinha os olhos e as faces em fogo.

Leonídia, observando a filha com olhar severo, guardou triste silêncio.

 Liberato, curioso, perguntou:

– Por que se foi tão apressado Souvanel?... Que queria ele?... Sem dúvida algum dinheiro emprestado...

– Mais, muito mais do que isso, a doação do nosso mais precioso te­souro... vaidoso francês!... Nada menos que a nossa Cândida em casa­mento!!!

– Liberato exclamou:

– É incrível! Que pretensão tresloucada!

E o irmão olhou para a irmã, para quem já olhava o pai, e a mãe há mais tempo estava olhando...

E todos três leram espantados, revoltados, e como que vergonhosos, a autorização do pedido de Souvanel no semblante decomposto e no tre­mor convulsivo do corpo de Cândida.

A desgraçada moça respirava afrontada e com aflição, convulsava, e sofria... o vulcão ia prorromper...

– Cândida!... – disse Florêncio da Silva, com aspereza.

– Eu o amo!... – respondeu em grito saído da alma a pobre moça.