III O CIBERESPAÇO E A SOCIEDADE CIVIL
"É muito bom de vez em quando despertar a consciência das costureiras e dos reis com uma moral que possa impressioná-los, mas para isto é melhor falar como não se fala hoje."
Dicionário Filosófico, Voltaire
Este capítulo analisa o ambiente que surge em virtude da evolução da tecnologia digital, observa a manifestação desse espaço frente à sociedade atual e verifica as suas potencialidades para a sociedade civil. É observada a maneira como fenômeno da esfera pública, sobretudo no que concerne à liberdade na formação da opinião pública, se reproduz e como pode adquirir novas faces com a virtualização das relações informacionais e comunicativas.
Os neologismos relacionados à informática e telemática tornaram-se comuns após a consolidação do uso da computação na sociedade contemporânea. Deletar uma ação ou startar um processo são alguns exemplos de como a linguagem cibernética ultrapassou os limites das telas dos computadores para integrar o vocabulário do cotidiano.
Os computadores se consolidaram em virtude da Terceira Revolução Tecnológica que se iniciou nos Estados Unidos da América, na região denominada de Vale do Silício -- uma referência ao mineral utilizado na fabricação de seus componentes.
O ciclo de revoluções na tecnologia começou com a imprensa de Gutenberg, proporcionando enormes avanços à civilização fizeram extrapolar o valor tangível do produto gerado pela invenção. A Segunda Revolução da tecnologia ocorre no mesmo tempo da Segunda Revolução Industrial, no final do século XIX, foi marcada pelo uso das novas fontes de energia (eletricidade e petróleo) e pelas mudanças que tal tecnologia impôs aos homens. Segundo Silveira (2001),
"O domínio e a disseminação da nova tecnologia redesenharam de tal forma o mundo que atualmente não saberíamos como viver em agrupamentos urbanos sem a energia elétrica. A crise energética brasileira, anunciada desde 1999 e assumida em 2001, deixa claro quão profundamente uma tecnologia se alastra e penetra no cotidiano. Com racionamento econômico
não podemos ampliar os empreendimentos econômicos em um modo de produção capitalista cuja acumulação se agigantou a partir da aplicação dos frutos da Segunda Revolução Tecnológica." (SILVEIRA, 2001, p.7)
Já a Terceira Revolução Tecnológica - também chamada de Revolução das Novas Tecnologias da Informação, Revolução Digital, Revolução Informacional ou Era do acesso -- se caracteriza pelo uso da informática e da telemática, em destaque os computadores, como ferramentas essenciais para atividades econômicas, comunicacionais e para as relações de poder. Silveira, ao ponderar essa cadeia evolutiva, indica que "o importante é perceber que a apropriação e os usos dessas tecnologias, bem como o controle dos fluxos de informação, são novas questões políticas e sociais." (SILVEIRA, 2001, p.10)
E é nesse contexto sócio-político que surge o termo ciberespaço que, de acordo com Koepsell (2004) e Levy (1999), teve a sua definição formada pelo romancista Willian Gibson em sua ficção "Ciberpunk", se referindo a uma espécie de "alucinação consensual" vivenciada por usuários de uma rede de computadores do futuro, alguns atores conseguem entrar "fisicamente" num novo espaço de dados para lá passarem por diversas aventuras. Algo similar ao que ocorre com o protagonista Neo na trilogia "Matrix".
Em face da gênese do ciberespaço, Koepsell o apresenta como sendo
"o conjunto de transações de informação e comutadores que ocorrem dentro e entre computadores por meio desses comutadores. O e-mail existe e move-se no ciberespaço. Os programas de computador existem e funcionam dentro do ciberespaço. A realidade virtual existe e ocupa o ciberespaço. Transações financeiras ocorrem de forma crescente no ciberespaço." (KOEPSELL, 2004, p.25)
Ainda segundo o autor, os meios de armazenamento não existem no ciberespaço, mas pode-se dizer que o ciberespaço existe nos meios de armazenamento ou em virtude deles. A visão do autor se baseia na existência física do ciberespaço em seus componentes, ou ainda, em sua essência (algorítimos). Ciberespaço é, portanto, o meio e o sistema onde se propagam as mensagens e teve sua evolução concomitante a dos computadores.
Por outro lado, Pierre Levy preconiza que, "está destinada ao fracasso toda e qualquer análise da informatização que esteja fundada sobre uma pretensa essência dos computadores, ou sobre qualquer núcleo central, invariante e impossível de encontrar, de significação social ou cognitiva." (LEVY, 1993, p.101) As definições de Levy não eliminam a idéia anterior, entretanto permitem uma nova visão do meio e suas repercussões na sociedade que com ele se relaciona.
De acordo com o autor, ciberespaço é o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Esse novo meio tem a vocação de colocar em sinergia e interfacear todos os dispositivos de criação de informação, de gravação, de comunicação e de simulação. Permite a combinação de vários modos de comunicação, como: correio eletrônico, conferências eletrônicas, hiperdocumentos compartilhados, sistemas avançados de aprendizagem ou de trabalho cooperativo e, finalmente, os mundos virtuais multiusuários.
Em suma, indica Levy, o ciberespaço "não é uma infra-estrutura técnica particular de telecomunicação, mas uma certa forma de usar as infra-estruturas existentes, por mais imperfeitas e desiguais que sejam e objetiva, por meio de qualquer tipo de ligações físicas, um tipo particular de relação entre as pessoas." (LEVY, 1999, p.124). A essência do ciberespaço encontra-se nas relações que este possibilita e não nos aparatos que o compõem, os equipamentos são somente interfaces que potencializam as atividades da inteligência humana. Pois, ainda para o autor:
"O desenvolvimento da comunicação assistida por computador e das redes digitais planetárias aparece como a realização de um projeto mais ou menos bem formulado, o da constituição deliberada de novas formas de inteligência coletiva, mais flexíveis, mais democráticas, fundadas sobre a reciprocidade e o respeito das singularidades. Neste sentido, poder-se-ia definir inteligência coletiva como uma inteligência distribuída em toda a parte, continuamente valorizada e sinergizada em tempo real. Esse novo ideal poderia substituir a inteligência artificial como mito mobilizador do desenvolvimento das tecnologias digitais... e ocasionar, além disso, uma reorientação das ciências cognitivas, da filosofia do espírito e da antropologia para as questões da ecologia ou da economia da inteligência." (LEVY, 1996, p.96)
O autor propõe que é no ciberespaço onde ocorre a manifestação de uma inteligência coletiva, fruto dos inter-relacionamentos estabelecidos entre os homens, entretanto mediadas e
potencializadas pelas máquinas e pelos sistemas telemáticos. Segundo Levy,"no limite só há hoje um único computador, um único suporte para texto, mas tornou- se impossível traçar seus limites, fixar seu contorno. É um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma, um computador hipertextual, disperso, vivo, fervilhante, inacabado: o ciberespaço em si." (LEVY, 1999, p.44)
De acordo com o autor, esse meio representa a universalidade sem a totalidade, pois ao mesmo tempo que uma informação e/ou conteúdo pode estar ao alcance de todos os integrantes da rede e, portanto, presente em todos virtualmente, não está na totalidade, apenas em quem a armazena.
Embora uma análise superficial sobre o ciberespaço possa se deixar ofuscar pela maravilha tecnológica envolvida nos processos ocorridos em ambientes digitais, é sempre preciso recordar o papel primordial exercido pelo ser humano dentro desta dimensão. O ciberespaço não é autônomo e as máquinas não são — até o momento — as protagonistas, todo o aparato tecnológico digital serve para satisfazer as necessidades do homem racional.
Nesse contexto, Egler (1999) indica que "navegar no ciberespaço é observar a multiplicidade de lugares, processos, oportunidades de vida, de trabalho, de lazer, que se sucedem na tela do vídeo." A relação do sujeito com o espaço se modifica, o sujeito percorre o espaço remotamente, trata-se de uma relação acorporal que altera a interação entre matéria e espaço.
Ainda segundo Egler, essa nova espacialidade reconstrói as formas e os processos da sociedade atual. "Podemos observar que as novas tecnologias produzem instantaneidades e eliminam a importância da localização, que alteram os padrões centralmente organizados e reduzem as necessidades espaciais." (EGLER, 1999) A proximidade de espaço, normalmente associada como fundamental para a troca de informações e tomada de decisões, é substituída pela interação via rede.
Em face dessas considerações é possível, portanto, analisar o ciberespaço como sendo um ambiente que conecta, cataliza e amplifica comportamentos inerentes aos seres racionais no intuito de satisfazerem suas necessidades de forma individual ou coletiva. Nesse contexto, tal oceano digital que banha a sociedade atual é considerado por alguns autores como um novo ambiente no qual as informações são trocadas, as discussões são travadas e os consensos são alcançados -- ainda que de maneira efêmera. Tais características colocam o ciberespaço como possível extensão da esfera pública, termo utilizado por Jürgen Habermas para definir o ambiente onde se formava a opinião pública burguesa.
De acordo com Lemos (2004), é no século XVIII que surge a esfera pública burguesa na qual a sociabilidade se dava em praças, cafés, livrarias, mercado. Verifica-se a passagem da autoridade real e imperial à esfera burguesa. No século XIX e início do século XX ocorre o aparecimento da massa urbana, para a qual a política passa de assunto de estado à esfera da comunidade, dos assuntos gerais da população. Nasce aqui a opinião pública, oposta à prática do segredo dos governos absolutistas, oferecendo novas possibilidades de debate entre os cidadãos.
Para Habermas, a esfera pública pode ser definida como "uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posições e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos." (HABERMAS, 2003, p.92) O autor propôs que a esfera pública burguesa formou-se como um espaço de manifestação e de expressão de pessoas privadas reunidas em um público para discutir e influenciar nas decisões do Estado, independente deste.
Segundo Silveira (2006), é o âmbito social no qual são debatidos temas relativos à coletividade, em que os indivíduos se apresentam por meio de discursos e do debate racional. Assim, esse espaço deve obedecer somente à lei da racionalidade, afastando outros elementos da vida social como o poder, o dinheiro e as hierarquias.
De acordo com Habermas, a esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de ser parte de uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que for possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza por meio de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis.
"Na esfera pública luta-se por influência, pois ela se forma nessa esfera. Nessa luta não se aplica somente influência política já adquirida (de funcionários comprovados, de partidos estabelecidos ou de grupos conhecidos, tais como o Greenpeace, a Anistia Internacional, etc.), mas também o prestígio de grupos de pessoas e de especialistas que conquistaram sua influência através de esferas públicas especiais (por exemplo, a autoridade de membros de igrejas, a notoriedade de literatos e artistas, a reputação de cientistas, o renome de astros do esporte, do showbusiness, etc). A partir do momento em que o espaço público se estende para além do contexto das interações simples, entra em cena uma diferenciação que distingue entre organizadores, oradores e ouvintes, entre palco e espaço reservado ao público espectador. (...) O público dos sujeitos privados tem que ser convencido através de contribuições compreensíveis e interessantes sobre temas que eles se sentem como relevantes. O público possui esta autoridade, uma vez que é constitutivo para a estrutura interna da esfera pública, na qual os atores podem aparecer." (HABERMAS, 2003, p.95-96)
A esfera pública assume formas especializadas, contudo, ainda acessíveis ao público não especialista. Por exemplo: esferas públicas literárias, eclesiásticas, artísticas, feministas, etc. Podem ser classificadas de acordo com a densidade e a complexidade da comunicação. A esfera pública episódica (bares, cafés, encontros na rua), da presença organizada (encontro de pais, público que freqüenta o teatro, concertos sinfônicos, festivais de música eletrônica, reuniões de partidos) e abstrata, produzida pela mídia (leitores, ouvintes, espectadores).
Ainda segundo Habermas, em sociedades complexas a esfera pública forma uma estrutura intermediária que faz a mediação entre o sistema político, de um lado, e os setores privados do mundo da vida e sistemas de ação especializados em termos de funções de outro lado.
Nesse contexto, para Bobbio (1987), qualquer sociedade organizada que possua uma esfera pública é caracterizada por relações de subordinação entre governantes e governados, entre quem detém o poder e quem obedece ao poder. É nesse ambiente que se dá o controle do poder político por parte do público.
Segundo o autor, o caráter público do poder sempre serviu para pôr em evidência a dicotomia entre duas formas de governo: a república, que é caracterizada pelo controle público do poder e pela livre formação da opinião pública, e o principado cujo método de governo contempla o recurso "ao segredo de Estado que num Estado de direito moderno é previsto apenas como remédio excepcional" (BOBBIO, 1987, p.28)
Portanto, ainda de acordo com Bobbio, a esfera pública indica o nascimento do "público-político", ou ainda, adquire uma influência institucionalizada sobre o governo por meio do corpo legislativo, pois o exercício da dominação política passa a ser efetivamente submetido à obrigação democrática da publicidade. Nesse sentido, "sociedade e Estado atuam como dois momentos necessários, separados mas contíguos, distintos mas interdependentes, do sistema social em sua complexidade e em sua articulação interna" (BOBBIO, 1987, p.52)
O autor demonstra que é no âmbito da sociedade civil que habitualmente ocorre o fenômeno da opinião pública que pode ser entendida como a pública manifestação de consensos e dissensos em face das instituições, são transmitidas por meio dos mecanismos de comunicação existentes nessa sociedade. Sem a opinião pública, ou ainda, sem canais que "transmitam" a opinião pública, a sociedade civil está destinada a perder sua função pública culminando o estado numa instituição totalitária. "Opinião pública e movimentos sociais procedem lado a lado e se condicionam reciprocamente" (BOBBIO, 1987, p.37)
Portanto, esfera pública é a dimensão na qual os assuntos públicos são discutidos pelos atores públicos e privados, tal processo culmina na formação da opinião pública que, por sua vez, age como uma força oriunda da sociedade em direção aos governos no sentido de pressioná-los de acordo com seus anseios.
Para Bobbio (1987), a expressão "sociedade civil" nasceu da contraposição entre uma esfera política e uma esfera não política, um conjunto de relações que não era de alcance do poder estatal. O autor propõe três acepções para o termo, a primeira remete às várias formas de associação entre os indivíduos para a satisfação dos seus interesses que ocorrem antes da existência de um Estado, o aparato somente as regularia sem jamais exercer qualquer procedimento de veto ou impedir sua renovação contínua. Neste caso a sociedade civil — num sentido marxiano — é vista como uma infra-estrutura e o Estado a superestrutura. A sociedade civil corresponde, portanto, ao todo das relações entre indivíduos que estão fora ou anteriores ao Estado.
Na segunda definição é vista como o local em que se manifestam as instâncias para modificar as relações de dominação, surgem grupos que lutam pela emancipação do poder político e são chamados de contra-poderes. Há uma conotação negativa nesta definição, sobretudo sob o ponto de vista do Estado, pois a sociedade civil adquire um caráter desagregador.
Já a terceira acepção, de linha gramsciana, aponta o ideal da sociedade sem Estado que surge com a dissolução do poder político, a sociedade civil absorveria a sociedade política. É a esfera na qual agem os aparatos ideológicos no intuito de exercer uma hegemonia e, isto feito, obter o consenso. Embora haja uma diferenciação entre o Estado e a sociedade civil, esta serve para legitimar o processo de dominação. Sob essa perspectiva, Bobbio indica:
"a sociedade civil é o lugar onde surgem e se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos, que as instituições estatais têm dever de resolver ou através da mediação ou através da repressão. Sujeitos desse conflito e portanto da sociedade civil exatamente enquanto contraposta ao Estado são as classes sociais, ou mais amplamente os grupos, os movimentos, as associações, as organizações que as representam ou se declaram seus representantes; ao lado das organizações de classe, os grupos de interesse, as associações de vários gêneros com fins sociais, e indiretamente políticos, os movimentos de emancipação de grupos étnicos, de defesa dos direitos civis, de libertação da mulher, os movimentos de jovens etc. " (BOBBIO, 1987, p.35-36)
Tais modelos de associações coletivas formam um substrato da organização do público das pessoas privadas que procuram interpretações públicas para suas experiências e interesses sociais, portanto exercendo influência na formação de opinião e vontade.
Por conseguinte, Habermas aponta uma mudança no significado do termo sociedade civil em relação ao da sociedade burguesa que constituía uma economia do direito privado e dirigida em função do trabalho, do capital e dos mercados de bens, tal qual na época em que surgiu o marxismo.
Segundo o autor, a sociedade civil possui seu núcleo institucional formado por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas e baseiam suas estruturas comunicacionais da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida. É formada por movimentos, associações e organizações que captam os ecos dos problemas sociais privados, condensam-nos e os transmitem para a esfera pública política.
Ainda segundo Habermas (2003), é fundamental aos movimentos sociais que encontrem formas solidárias de organização e esferas públicas que permitam esgotar e radicalizar direitos e estruturas comunicacionais existentes.
Nesse sentido, o sistema político conectar-se-á com a esfera pública e com a sociedade civil por meio da atividade dos partidos políticos e da participação dos cidadãos. Para as associações firmarem sua autonomia e espontaneidade devem se apoiar num pluralismo de diversidade de classes, raças, religiões e culturas. Portanto,
"A proteção da 'privacidade' através dos direitos fundamentais serve à incolumidade de domínios vitais privados; direitos da personalidade, liberdades de crença e de consciência, liberalidade, sigilo da correspondência e do telefone, inviolabilidade da residência, bem como a proteção da família, caracterizam uma zona inviolável da integridade pessoal e da formação do juízo e da consciência autônoma." (HABERMAS, 2003, p.101)
Ainda de acordo o autor, as garantias dos direitos fundamentais não são suficientes para proteger a esfera pública e a sociedade civil de deformações. Portanto, as estruturas comunicacionais da esfera pública devem ser mantidas intactas por uma sociedade ativa dos sujeitos privados.
Habermas propõe que a esfera pública teve seu papel significativamente alterado devido à influência dos meios de comunicação de massa, que estabelecem uma opinião pública imperativa frente à sociedade, e também com a consolidação da concepção liberal do Estado, em que o privado acaba por sobrepujar o público. Segundo Bobbio (1987), a esfera privada aumenta de tal maneira em detrimento da esfera pública, senão ao ponto de extinguir o Estado, ao menos até reduzi-lo aos seus mínimos termos. Sem canais de transmissão de opinião pública a esfera da sociedade civil perde sua função contestadora e permanece somente a opinião oficial do Estado, tornando este um Estado totalitário.
Para Lemos (2004), "o enfraquecimento dos 'espaços de lugar' (ruas, praças, monumentos) em prol do espaço midiático ou espaço de 'fluxos' passa a ser a realidade do século XX, criando um processo de privatização do público e publicização midiatizada do privado." A esfera pública passa a ser a imagem da mídia de massa. A opinião pública é condicionada à informação que é transmitida pelos meios de comunicação e ao produzido pela indústria cultural. De acordo com Habermas:
"Quando tomamos consciência da imagem difusa da esfera pública veiculada pela sociologia da comunicação de massa, que aparece submetida ao poder e à dominação dos meios de comunicação de massa, cresce nosso ceticismo com relação às chances de a sociedade civil vir a exercer influência sobre o sistema político." (HABERMAS, 2003, p.113)
Nesse sentido, o autor demonstra certa descrença no arcabouço formador da opinião pública, porém complementa,
"Todavia, tal avaliação vale somente para uma esfera pública em repouso. Pois, a partir do momento em que acontece uma mobilização, as estruturas sobre as quais se apóia a autoridade de um público que toma posição começam a vibrar. E as relações de forças entre a sociedade civil e o sistema político podem sofrer modificações." (HABERMAS, 2003, p.113)
Entretanto, apesar dos meios de comunicação terem de certo modo uniformizado a opinião pública, a expansão do ciberespaço pode ser analisada como alternativa ao surgimento do novos espaços para a ação da sociedade civil e consolidação de uma esfera pública livre.
Lemos (2004), indica que "o ciberespaço não é um mass media e pode agir de forma diferenciada em relação ao espaço público e à opinião pública formada pela cultura de massa. As redes telemáticas não atuam na forma "um-todos" quebrando a hegemonia de um único discurso sobre o que é o público e sobre qual é a opinião pública." Ainda, o cidadão consumidor passivo transforma-se gradualmente em um cidadão "hiperconectado" sendo obrigado a interagir cada vez mais com redes e instrumentos de comunicação digitais. Para Bobbio (1987), à democracia é fundamental o exercício de vários direitos à liberdade que permitam a formação de opinião pública e assegurem assim que as ações dos governantes tornem-se públicas, "sejam subtraídas ao funcionamento secreto da câmara de conselho, desentocadas das sedes ocultas em que procuram fugir de olhos do público, esmiuçadas, julgadas e criticadas quando tornadas públicas." (BOBBIO, 1987, p.30)
No mesmo contexto da liberdade para a formação de uma opinião pública, em tese sobre uma teoria da propriedade do bem intangível, Silveira (2006), relaciona a esfera pública habermasiana com o ciberespaço da seguinte forma:
"Tal como nos cafés descritos por Habermas, uma nova esfera pública conforma-se, não literária, mas uma esfera pública tecno-social, uma esfera pública de homens livres que não se concentram mais em burgos, mas conectam-se no ciberespaço, em listas e fóruns próprios que se constituem como uma esfera pública inicialmente hacker. Da prática hacker de compartilhamento de códigos-fonte de softwares, a comunidade de software livre inspirou o surgimento de uma ação similar em outras áreas, tais como na música, com o Creative Commons e na consolidação de repositórios públicos de conhecimento, como a Wikipédia, entre outros tantos exemplos. Os organizadores do Fórum Social Mundial, realizado na Índia em 2004, utilizaram pela primeira vez os programas de computador livres por constatarem que os movimentos sociais anti-globalização estavam aprisionados pelas linguagens informacionais controladas pelas corporações concentradoras de riqueza e poder e que era, portanto, necessário romper com o modelo de tecnologias proprietárias." (SILVEIRA, 2006, p.74)
Ainda segundo Silveira, o denominado movimento de software livre é composto por inúmeras comunidades que se identificam pela distinta forma de produzir softwares, pela transparência dos seus códigos-fonte, e principalmente pela diferença e contraposição ao modelo de negócios baseado na apropriação privada do conhecimento. Tal movimento foi precursor e modelo para o mecanismo autoral do copyleft, uma licença em que o autor mantém seus direitos sobre sua obra, porém, em contraposição ao copyright, permite que ela seja distribuída livremente, modificada para melhorias ou derivações, copiada e/ou executada.
Para o autor,
"as listas de discussão dessas comunidades, os repositórios comuns de software compartilhado, os sites para download e informação sobre os softwares, os sistemas de controle de versões, acabam por se tornarem espaços públicos ou coletivos que retiram do terreno privado e estritamente mercantil o debate sobre esses intermediários da inteligência humana na era da informação. Acabam por se constituírem em novos espaços da sociedade civil contra a apropriação e bloqueio do conhecimento tecnológico, promovido por Estados em apoio às exigências dos monopólios empresariais de algorítimos, ou seja, as mega-corporações de software." (SILVEIRA, 2006, p.78)
sentido de uma quase-esfera pública, pode ser aqui empregado, embora não sem certa dificuldade. A esfera pública integra o mundo da vida, ou seja, este conceito habermasiano coloca determinados limites em seu uso." (SILVEIRA, 2006, p.78).
Para esclarecer tal análise sobre o mundo da vida habermasiano o autor utiliza-se da explicação proposta por Arato e Cohen que coloca a existência de várias dimensões distintas.
"Ele se refere a um reservatório de tradições implicitamente conhecidas e de pressupostos automáticos que estão imersos na linguagem e na cultura e são utilizados pelos indivíduos na sua vida cotidiana. Por outro lado, o mundo da vida, de acordo com Habermas, contém três componentes estruturais distintos: a cultura, a sociedade e a personalidade. Na medida em que os atores se entendem mutuamente e concordam sobre sua condição, eles partilham uma tradição cultural. Na medida em que coordenam suas ações por intermédio de normas intersubjetivamente reconhecidas, eles agem enquanto membros de um grupo social solidário. Os indivíduos que crescem no interior de uma tradição cultural e participam da vida de um grupo internalizam orientações valorativas, adquirem competência para agir e desenvolvem identidades individuais e sociais. A reprodução de ambas as dimensões do mundo da vida envolve processos comunicativos de transmissão da cultura, de integração social e de socialização" (ARATO e COHEN, 1994:153, apud SILVEIRA, 2006, p.78).
Ainda segundo Silveira, para tornar possível a utilização do ciberespaço como extensão de uma esfera pública "as pessoas privadas conectadas precisarão assimilar que, ao contrário da sociedade industrial, a sociedade em rede apresenta problemas complexos de comunicação, que exigem de um lado especialistas e de outro a transparência completa dos códigos que intermedeiam a comunicação humana." (SILVEIRA, 2006, p.82)
Nesse sentido, pondera que não basta a liberdade nos mecanismos comunicacionais, pois a liberdade para conhecer profundamente os códigos utilizados também é necessária para garantia da imparcialidade das relações. Para Silveira, "os hackers foram os primeiros a demonstrar que a opacidade dos códigos realiza-se contra a liberdade da sociedade". Em face desse contexto, propõe uma análise mais ampla sobre os conteúdos e os mecanismos que devem estar acessíveis nessa nova face da esfera pública. A liberdade comunicacional deve estar acompanhada da liberdade dos códigos digitais, já que estes também se constituem de informações. Na nova face da esfera pública telemática a transparência é uma condição necessária e suficiente.
De acordo com Levy, o ciberespaço encoraja uma troca recíproca e comunitária, enquanto as mídias clássicas praticam uma comunicação unidirecional na qual os receptores estão isolados um do outro. "Os freios políticos, econômicos ou tecnológicos à expressão mundial da diversidade cultural jamais foram tão fracos quanto no ciberespaço. O que não significa que essas barreiras não existam, mas são muito menos fortes do que nos outros dispositivos de comunicação." (LEVY, 1999, p.241)
Para Britto (2005), o ciberespaço não é visto como substituto do real vivido e compartilhado, da cultura que emerge do cotidiano. Mas, como potencializador, como renovador desse laço social que foi fragmentado pelas mídias tradicionais. Não como elemento de contato virtual e de isolamento da convivência social, mas como local de expressão e de debate desta realidade, de articulação social e da busca de sua mudança dentro de uma visão mais coletiva.
Ainda segundo o autor, é nesse sentido que se acredita na possibilidade da emergência de ciberespaços públicos parciais de debate e embate, como direcionadores da discussão racional de classes, setores e temáticas sociais, auxiliando em suas coesões e também na explicitação e publicização dos conflitos. Ciberespaços de encontro de virtudes e identidades humanas, de inteligências coletivamente construídas.
Na mesma linha, Lemos (2004) conclui que é preciso zelar para que não ocorra uma transposição e substituição, de modo a utilizar o potencial das novas tecnologias para incentivar o poder do espaço público telemático, a apropriação das novas tecnologias, a pluralidade de discursos, a transparência informativa dos governos e o vínculo comunitário. Portanto, o meio virtual como local para discussão das questões relativas ao convívio social não deve pretender substituir as relações de comunicação e participação que já estão estabelecidas na sociedade atual, entretanto, ao possibilitar novas dimensões para as atividades humanas, permite a inclusão de indivíduos, até então, renegados nos processos de norteamento dos futuros sociais.
As características do ciberespaço proporcionam a garantia dos direitos fundamentais imprescindíveis à sociedade civil que busca sua emancipação, por meio de associações organizadas. A sociedade civil utiliza-se dos canais de comunicação livres que emergem no ciberespaço para manifestar suas opiniões referentes às questões públicas. O conjunto de opiniões expostas e confrontadas nesse ambiente comunicativo digital deverá gerar a opinião pública que pressionará os governos em função do interesse desta sociedade.
Um ciberespaço livre, democrático e sem barreiras para a entrada de novos participantes pode ser o caminho para permitir que esta nova arquitetura não seja mais um espaço para a reprodução das desigualdades e exclusões presentes na sociedade atual, mas seja, sim, um espaço no qual a ocorrência de debates e embates coletivos possibilitem a formação de opinião pública e, por conseguinte, surgimento de uma esfera pública consistente, capaz de exercer sua influência na estrutura de poder político e refletir as aspirações da sociedade civil. Esfera esta que se apresenta de maneira universal em face de sua virtualidade, porém sem totalidade já que não poderá ser delineada, nem estar presente, ao mesmo tempo, em todos os pontos que interagem no ciberespaço, independente da cultura local, do delineamento da fronteira territorial ou das características do contrato que pactuam na sociedade atual.
Este trabalho tratará daqui em diante de realizar uma análise do ciberespaço com base na sua face de uma esfera pública voltada à sociedade civil. No capítulo seguinte serão observadas algumas formas de ação e participação, como se apresentam nesse ambiente e suas potencialidades em favor do projeto democrático. No último capítulo teórico serão consideradas as comunidades no ciberespaço, se observa as premissas e como se consolidam por meio de um pacto social, por fim se tenta estabelecer uma ligação entre o modelo comunitário tradicional em face à sua presença num ambiente virtual e verificar tais características organizacionais em função das organizações.