Boletim das Missões Civilizadoras n.o 24/A educação dos indigenas nas colonias e as suas vantagens
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O indigena da Africa possui apreciaveis qualidades de assimilação, e grande propensão para artes e oficios; porêm ministrar-se-lhe a instrução sem a educação é estraga-lo; é tornar a acção civilizadora inútil a êle proprio e a Portugal. Ocorre-nos, a propósito, um frase que vem no Projecto de Organização de Instrução Pública na Provincia de Angola da autoria do alto comissário, general sr. Norton de Matos, a quem devemos a oferta de um exemplar; frase esta que não resistimos em transcrever por representar o nosso proprio sentir: «A instrução paramente literaria e o proseletismo são das peores pragas que podem cair sobre os indigenas de Africa». Com melhor oportunidade nos referiremos mais detidamente a este Projecto de Instrução.
O indigena vive em completo estado das primitivas eras. Tem por habitação uma cubata infecta, sem luz, sem ar, sem o menor confôrto, mesmo para as suas mais exiguas necessidades; servindo-lhe o chão em que chafurda o porco, esgravata o gato, depenica o pinto, de cama, de meza e de cadeira. Vive tudo numa promiscuidade revoltante; e êle desconhece, em absoluto, as mais rudimentares regras de higiene. Quando num ménage, acontece morrer o seu chefe, seja de que moléstia fôr, a consorte toma, no leito ou na chiça (esteira) o lugar que o morto deixou vago, sem mudanças prévias de roupas; sem desinfecções; preceitos êstes por êle completamente desconhecidos. Obedece, procedendo desta forma, à religião que professa; aos usos e costumes de seus avós. E não se pense que êste seu viver é no mais recondito dos sertões, longe da influência europeia; oh, não! Em Loanda, capital de provincia, leva esta mesma existência, verdadeiramente nómada. O contrário constitúi uma excepção à regra. Sabemos, é certo, que uma ou outra autoridade local tem, por vezes, procedido enérgicamente para evitar a prática de tal desacato á higiene; mas... de que serve êsse caso ou outro de energia da parte do funcionário da polícia, se o processo não deve ser êsse?
Por vestuário, usa o indigena o corpo nu; e em vez da parra com que se cobriu o velho pai Adão da Biblia, depois de haver pecado, o negro traz um farrapo ou a pele da última corça que matou!
Também sabemos que algumas ordens enérgicas foram dadas para se pôr côbro a tão degradantes percursões em plena cidade; mas se o gentio precisa de vir á cidade vender a sua mercadoria e comprar os géneros para o seu sustento? De resto, desconhecendo em absoluto as mais rudimentares regras da moral pública, porque nunca ninguem perdeu tempo em lhas ensinar, porque ha de cobrir a nudez que para êle é cousa tão natural? O indigena, mesmo aquêle que se conserva em verdadeiro estado selvagem, á semelhança da criança, com facilidade faz o que vê, e aprende o que com insistencia observa. Ora êle não vê, para se civilizar, grandes exemplos de moral e probidade no europeu com quem mais de perto trata: os deportados que a Metropole incessantemente despeja para o Deposito Geral de Degredados da Provincia de Angola.
Estes homens constituem um péssimo elemento de observação para o negro, e de triste reclamo para Portugal. E' um mal êste a que urge pôr cobro; pois o indigena, além do péssimo conceito que póde formular sôbre os brancos em geral, pelos exemplares que se obstinam em mandar-lhe, não aprende os bons costumes sem os quais não é possivel civilizá-lo; e o procedimento da parte das autoridades que tentam corrigi-lo, torna-se antipático, odioso mesmo, a seus olhos, que não descortinam os escrupulos dessa minoria. Se volvermos a vista para a agricultura, vemos que os processos por ele empregados são dos mais rudimentares. Ignorando ainda a existência e utilidade da charrua, dos diferentes maquinismos empregados no amanho das terras, na colheita da semente, etc., etc., o que torna a tarefa mais rápida e mais leve o esforço do homem, o indigena deixa grandes extenções de terreno incultas. Sendo excessivamente indolente, semeia o restrito para prover ás suas necessidades de momento. Não tem ambições; não tem encargos; nem os de familia que obriga os chefes dos povos civilizados a verdadeiros prodigios. A' mãe indigena cabe exclusivamente, o pesado encargo de sustentar a sua, por vezes, numerosa prole.
Esta é mais laboriosa do que o homem, ela não somente trabalha para prover ás necessidades dos filhos como tambem para sustentar os inúmeros vicios do seu companheiro que, a maior parte das vezes, vive do produto do trabalho não só de uma como de muitas mulheres que explora. Porém, se é certo que a mulher indigena das colónias africanas é mais laboriosa do que o homem, seu igual, não se segue que ela produza um trabalho consciente e cuidadosamente executado. Ela trabalha mais porque o egoísmo e desdem que o seu companheiro professa pelo amanho da terra, a isso a obriga; senão morreria de fome. A sua situação de escrava não lhe dá direito a insurgir-se: por isso ela cava, quando ainda vive em estado completamente nómada: varre as ruas da cidade, assalariada pela Câmara, que lhe paga uma bagatela; é criada de servir quando a isso se quere sugeitar. Ela, porém, faz tudo isto sem a mais leve sombra de critério; porque, se cava, desconhece, como o homem, os processos mais adequados para tratar da terra que ocupa; e, longe de a fazer prosperar em produção, a conserva sempre no mesmo estado, apenas semeando e colhendo o preciso para se sustentar; entregue aos serviços domésticos, desconhece as regras mais rudimentares da higiène, da economia doméstica, e não tem, para cousa alguma a verdadeira noção do tempo: trabalha, pois, sem método e sem proveito. Isto tudo se deve ao abandono a que tem sido votada a educação dos povos indigenas, ainda os que vivem mais em contacto com o europeu. Ainda me lembro que, estando nós em Africa (Loanda) donde, aliás sou natural, cidade esta que bem merecia que se olhasse para ela com mais atenção, tanto pela sua conquista e reconquista históricas, como pelo seu clima, hoje considerado assás benigno; onde a europeu já não tem a temer a malária nem o escorbuto — lembro-me, iamos dizendo — da luta que tinhamos que sustentar para conseguir, das criadas, que enxugassem a louça às toalhas competentes: sendo apropriado para elas, o primeiro farrapo sujo e esburacado que se lhe deparava no chão.
Atendendo agora nos chamados civilizados, vemos que a maior aspiração assim que se apanham com o exame de Instrução Primária é o emprego publico, a conquista da tão almejada manguinha de alpaca.
Eles sabem antecipadamente que podem ganhar sem se matarem a trabalhar.
A fama é tal, a da burocracia lisboeta, que invade sem rebuço as carteiras das repartições ultramarinas; sendo o contágio tão pernicioso que o nativo se chega a convencer de que assim mesmo é que é. E assim se vão habituando a defraudar o tesouro público...
Não somos, portanto, apologistas do ensino literário como o têm pretendido, indistinctamente administrar. O que preconizamos é uma educação higiénica, profissional, desenvolvida e bem aplicada que contribua para a melhoria da situação moral e material do indigena e da Metropole.
Daquele, não deve, apenas, ser aproveitado o braço que extrai rudimentarmente a borracha; apanha o café e planta o cacau, semelhante à besta que se atrefa ao carro, se chicoteia e se consegue pôr em movimento; ou à junta de bois que pachorrentamente e com os olhos cheios de ternura, puxa o arado, porque a êle é jungido.
Tambem se não deve pretender impôr ao indigena ainda em estado selvagem a frequencia de escolas de brancos e assimilados, submetendo os seus cerebros acanhados aos profusos e prolixos programas de pedagogia, oficialmente regulamentados na Metropole. Entre estes dois extremos entendemos dever tirar-se a média, o que é muito importante pelo menos assim o entendeu o actual alto comissario da Provincia de Angola, o general sr. Norton de Matos que, em 1913 elaborou o seu inteligente «Projecto de Organização de Instrução Publica na Provincia de Angola» projecto êste a que já tivemos ensejo de nos referir. Este projecto apesar de se intitular de «Instrução», compreende uma grande parte educativa; e sabiamente pôsto em prática são de esperar resultados vantajosissimos.
A educação do indigena deve ser feita por exemplos vivos para bem impressionar o seu cerebro que, em estado embrionário, se recusa a aceitar teorias demasiadamente complexas de que os compendios estão pejados, quando sobretudo elas não são expostas por pessoas edóneas e de moral irrepreensivel que se imponha directamente à sua observação.
Por isso é da máxima importancia e assim lambem o previu o ilustre autor do projecto, não se tendo esquecido, no seu artigo 41, capitulo V, criar prémios para galardoar os serviços distinctos prestados pelos professores. Por sua vez a Metropole deve empenhar-se na boa escolha do elemento burocrata e operário a enviar para as colonias. Esta escolha deve ser feita não só entre os profissionais mais distintos como também dentre êstes os que melhor vivam a sua vida doméstica. Desta forma o bom operário fará de cada individuo que lhe é confiado, um artista consciencioso; e, pela simplicidade do seu viver são e higienico, constituirá um exemplo frisante que desperte no indigena os sentimentos salutares da bondade, do trabalho e da honra. Só pelo exemplo, creiam-nos, se consegue incutir no animo do indigena êstes atributos sem os quais a obra de civilização é incompleta. Não lhe mandem para la soldados para os submeter: êstes, longe de o chamar à razão com arma mortifera que arraza as suas cubatas, excitam o seu instinto guerreiro, e ao mesmo tempo que a espada, aparentementé o aniquila vai dando vida á um novo sentimento de vingança, que, cêdo ou tarde se torna em arma terrivel contra o seu vencedor. Isto é da História. A Mãe Pátria deve procurar conquistar um amigo em cada indigena, e não um inimigo de quem tenha a temêr as iras desencadeadas. Não sabemos se a ideia das missões laicas em que se falou, foi posta ultimamente em prática; nem se, caso o foi, esses organismos têm correspondido ao fim para que foram creados. Eis uma arma a aproveitar e a manejar com vantagem para uns e outros: colonos e colonizadores. Mas, para que estas missões se desempenhem cabalmente da nobre missão que têm a cumprir, é preciso proporcionar aos elementos que as compõem o material necessário ao seu funcionamento e desenvolvimento; e que a escolha desses elementos obedeça ao critério honesto de distribuir bons cooperadores pelos inúmeros sertões da Africa; e não tenham unicamente em vista, aqueles que os nomeiam, em colocar afilhados que vão auferir maiores ou menores proventos.
A obra das missões laicas deve consistir em ensinar conscienciosamente ao indigena ainda os mais mentalmente atrazados, o amor ao trabalho, pelo próprio trabalho; a higiene que êle observará nos preceitos civilizadores; a prática do bem que todos se esforçarão em prodigalizar às mãos cheias e sem espirito de sectarismo; como convem. Mais tarde não será desacêrtado, antes vantajoso, que a propria Provincia forneça, de entre os seus filhos devidamente habilitados, os elementos necessários ao desenvolvimento da acção civilizadora pela Metropole encetada. Isto é: a Provincia deve mais tarde fornecer os mestres evitando desta forma o dispendio que o envio de educadores ocasiona a Portugal. De resto é este o critério de s. ex.a o alto comissário da Provincia de Angola, que no seu projecto de Instrução, na parte referente ao seu Relatório de apresentação evidencia nos seguintes termos: «E' convicção minha , profunda e bem estabelecida, que devemos recrutar a maioria destes professores entre os indigenas da Provincia.
Julgo-os, desde que sejam bem instruidos, bem educados e bem treinados, em condições superiores aos seus colegas da Metropole para a administração do ensino á grande massa dos habitantes de Angola».
Não esqueceu o ilustre organizador que, para haver bons alunos é preciso haver bons professores; e todo o capitulo III artigo 24 compreende um «Curso de professores de ensino primário elementar». Neste curso, além da parte puramente literária ha a parte que se refére ás culturas coloniais; noções elementares de agricultura pratica, e conhecimentos dos terrenos sob o ponto de vista das culturas; sementes, plantas, seu valor comercial; adubos, colheitas, armazenagem, etc. Em ensino anexo, ministram-se noções de higiene geral, em especial higiene escolar; educação civica; e artes manuais adequadas. Destacaremos também, afim, de ividenciarmos mais uma vez o espirito prático e positivista que admiramos no ilustre organizador do projecto, o § único do artigo 2.° que diz: «Tanto a instrução primária elementar, como a complementar superior, abrangem o ensino de uma profissão manual, agricola, ou industrial adequada ao sexo e ás conveniencias da região, no qual se empregarão, em regra, dez horas por semana. O sexo feminino terá além disso, os trabalhos de agulha, lavores e economia domestica».
Como defensoros que sempre fomos da educação dos indigenas e sua civilização, temos a honra de apresentarmos ao Congresso as seguintes:
I) — A substituição do Depósito Geral de Degredados da Provincia de Angola, por uma ou mais colónias agricolas disseminadas por vários pontos, todos êles o mais afastados possivel de Loanda, onde o Presidio actualmente se encontra. Esta medida é de um grande alcance moral para o prestigio da Metropole e para a educação do indigena que deve ter constantemente ante seus olhos, exemplos do mais alto civismo, que os elementos anormais exportados pela Mãe Pátria lhes não podem fornecer, devido à tára que os faz expiar as faltas cometidas.
II) — A imediata formação de missões laicas que se espalharão profusamente pelos mais reconditos sertões africanos, por entendermos que só o exemplo de elementos de reconhecido valor moral, profissional e civico terá o poder de educar vantajosamente o indigena de Africa; e por considerarmos estas a unica barreira eficaz a antepor ao desenvolvimento, cada vez mais crescente, de missões estrangeiras que, desnacionalizando o indigena o subtrai à influência da Patria Portuguesa.
III) — A mais rápida e ampla divulgação e aplicação do «Projecto de Organização de Instrução Publica na Provincia de Angola» da autoria de sua ex.a o alto comissário, general sr. Norton de Matos, por nêle se encontrarem substanciadas, as medidas indispensaveis ao desenvolvimento civico, moral e economico dos indigenas nas colónias e as vantagens que daí advêm a Portugal.