No dia seguinte Aleixo encontrou fechada a porta do quarto. —Oh! Bom-Crioulo não tinha ido a terra, como prometera. — Exigências do serviço, pensou. No couraçado a disciplina era outra; o imediato, homem feroz, só falava de chibata e golilha. Estava muito satisfeito na sua corveta assim mesmo velha e triste...

Abriu a janela para entrar luz e começou a se despir, trauteando qualquer coisa, o olhar perdido lá fora no ar imóvel, no azul coruscante... O calor abrasava. Nenhuma aragem sequer. O sol das duas horas caía obliquamente, pondo reflexos de ouro sobre os telhados, vitorioso e torrencial, pulverizando crisólitos de brilho raro ao longe nas vidraçarias. .... Uma opulência de luz nunca vista!

Aleixo despiu-se, pela primeira vez acendeu um cigarro, deitando-­se à larga na velha cama de lona.—Passa! Que forno!...

Queria descansar um bocado, esperar Bom-Crioulo té às cinco horas, dormir uma soneca. Saíra de bordo muito cedo porque ajustara com o negro, e agora não tinha remédio senão esperar naquela pas­maceira, naquele calor. Enfim, como fizera quarto a noite passada, ia ver se conseguia dormir....

Não chegou ao fim do cigarro, um detestável mata-ratos que Bom-Crioulo esquecera sobre a mesinha, e que abriu-se todo em sua mão desajeitada. — Não sabia que diabo de gosto o dos fumantes. Qual! decididamente não se acostumava com o fumo. Vinha-lhe logo a dor de cabeça...

Pôs-se a olhar o teto, as paredes, um retrato do imperador, já muito apagado, que viera na primeira página de um jornal ilustrado, preso em caixilhos de bambu, um cromo de desfolhar, examinando com atenção o pequeno aposento, os móveis — a mesa e duas cadeiras —, como se estivesse num museu de coisas raras.

Adormeceu juntamente quando soaram duas horas no relógio de D. Carolina, embaixo, no primeiro andar.

Acordou indisposto, sobressaltado, num banho de suor, a língua seca — torcendo-se em espreguiçamentos de quem dormiu toda uma noite.

O sol abrandara um pouco e já havia nuvens no alto, quebrando a monotonia do azul. — Nada; com certeza Bom-Crioulo não vinha mais, pensou o grumete. Diabo de insipidez!

De resto, o negro não lhe fazia muita falta: estimava-o, é verdade, mas aquilo não era sangria desatada que não acabasse nunca...

Essa idéia penetrou-o como uma lembrança feliz, como um fluido esquisito que lhe inoculassem no sangue. — Podia encontrar algum homem de posição, de dinheiro: já agora estava acostumado “àquilo”... O próprio Bom-Crioulo dissera que não se reparavam essas coisas no Rio de Janeiro. Sim, que podia ele esperar de Bom-Crioulo? Nada, e, no entanto, estava sacrificando a saúde, o corpo, a mocidade... ora, não valia a pena!

Saltou da cama e foi se vestindo devagar, assobiando baixinho, dominado por aquela idéia. — Estava aborrecido, muito aborrecido: precisava mudar de vida...

— Dá licença?

— Oh! madama...

Era a portuguesa: ainda não tinha visto o “seu bonitinho”, dera-lhe uma saudade...

— Bom-Crioulo não veio hoje?

Não, não tinha vindo. E Aleixo contou a passagem do negro para o couraçado, o desgosto de Bom-Crioulo, a vida de trabalho que o outro ia levar...

— Coitado! Lamentou D. Carolina. Mas há de vir à terra....

— Sim, por que não? Sempre há de vir. Não será tanto como na corveta...

— Coitado!...

— Tem aí uma cadeira, ofereceu Aleixo. Por que não se senta?

— Que calor, hein? tornou a mulher sentando-se. Temos chuva.

E logo, muito curiosa:

— Vai sair?

— Vou dar uma volta, passei o dia tão aborrecido...

— Que falta, o negro, hein? acentuou a portuguesa sublinhando um risinho, abanando-se com o avental.

Tinha-se sentado, muito vermelha, o casaco arregaçado, os pés nus dentro de uns tamancos de pano com que batia roupa no quintal.

— Não, disse Aleixo, com um desdém na voz. Aquilo já está me aborrecendo...

— Oh! Já?... Muito cedo, homem

E fraternalmente:

— Pois é uma boa criatura, coitado. Eu, às vezes, tenho-lhe pena.

— É porque madama não sabe quem está ali... Muito bom, mas quando se zanga, Jesus! chega a meter medo...

Assim?

Ora!

— Pois, meu filho, se eu lhe disser que nunca vi Bom-Crioulo zangado...

— Uma fera!

Aleixo estava defronte do espelho acabando a toilette. O cabelo cheio d’óleo, escorrido e liso, tinha um brilho fugaz de seda preta. Abria-­o de um lado, puxando em pasta sobre a calote esquerda, até quase a sobrancelha. Era uma de suas grandes preocupações — o cabelo bem penteado, úmido sempre. Que trabalho para lhe dar jeito! Desman­chava-o um sem-número de vezes, tomava a acertá-lo, e, afinal, depois de repetidas tentativas, punha o boné devagar, jeitosamente.

— Pronto! fez ele dando a última demão.

— Gosto de ver um marinheiro assim, elogiou a mulher, erguendo-se para endireitar a gola do grumete, que estava dobrada. Ninguém me venha falar em homem porco.

E colocando-se diante de Aleixo, os braços em arco e as mãos nos quadris:

— Está mesmo d’encantar, o diabinho! Vai daqui namorar alguma biraia no Largo do Rocio, aposto!

O efebo soltou uma risada muito sem gosto, olhando-se ainda uma vez no espelho.

— Qual o quê, madama! Vou daqui ao Passeio Público; às nove horas, o mais tardar, cá estou de volta.

— E não me convida?

— Quer ir, vamos...

— Não, obrigada; bom proveito e volte direitinho, é o que eu quero...

Foram saindo.

— Mas, olhe, tornou D. Carolina com resolução, no alto da escada. Preciso lhe falar: volte cedo.

— Por que não diz agora?

— Não, não: quando voltar; prefiro conversar à vontade.

— Pois sim... É um instante. Até Logo!

— Té loguinho.

E alto, de cima da escada, enquanto o grumete desaparecia no corredor:

— Cuidado hein!?

Estava escurecendo: seriam seis e pouco. Na rua já havia luz. Continuava o calor, um ar abafadiço, de subterrâneo, sem oxigênio, pesado e asfixiante.

A portuguesa desceu a escadinha do sótão, que estalava com seu peso, e foi acender o gás da sala de jantar, muito alegre, cantando uma modinha sentimental lá da terra, numa voz lânguida e tremida.

Há dias metera-se-lhe na cabeça uma extravagância: conquistar Aleixo, o bonitinho, tomá-lo para si, tê-lo como amantezinho do seu coração avelhentado e gasto, amigar-se com ele secretamente, dando-lhe tudo quanto fosse preciso: roupa, calçados, almoço e jantar nos dias de folga — dando-lhe tudo enfim.

Em uma esquisitice como qualquer outra: estava cansada de aturar marmanjos. Queria agora experimentar um meninote, um criançola sem barba, que lhe fizesse todas as vontades. Nenhum melhor que Aleixo, cuja beleza impressionara-a desde a primeira vez que se tinham visto. Aleixo estava mesmo a calhar: bonito, forte, virgem talvez...

Arranjava-se perfeitamente, sem que Bom-Crioulo soubesse. Mas como falar ao grumete, como propor-lhe o negócio? Ele talvez ficasse ofendido, e podia haver um escândalo...

O verdadeiro era pouco a pouco ir lhe dando a compreender que o estimava muito, oferecendo-se-lhe pouco a pouco, excitando-o.

Outras mais velhas gabavam-se, por que é que ela, com os seus trinta e oito anos, não tinha o direito de gozar? Histórias! mulher sempre é mulher e homem sempre é homem.

Viu-se ao espelho e notou que realmente ainda “prestava serviço”: — Qual velha! Nem um pé-de-galinha sequer, nem uma ruga — pois isso era ser velha? Certo que não. Lá quanto à idade ninguém queria saber. A questão era de cara e corpo.... Ora, adeus!...

Começou a fazer-se muito meiga para o rapazinho, guardando-lhe doces, guloseimas, passando a ferro, ela própria, seus lenços, gabando-­o na presença de estranhos, fingindo-se distraída quando queria mos­trar-lhe a exuberância de suas carnes — perna, braço ou seios ...... Uma ocasião Aleixo vira-a em camisa curta, deitada, com as pernas de fora; porque os aposentos da portuguesa davam para o corredor e, nesse dia, ela esquecera de fechar a porta. O grumete voltou o rosto depressa, todo cheio de respeito, como se aquilo fosse uma profanação: mas, depois, ao lembrar-se do caso, tinha sempre uns arrepios voluptuosos, não po­dia evitar certa quebreira, certo desfalecimento acompanhado de ere­ção nervosa...

Nunca mais lhe saíra da lembrança aquela cena de alcova: uma mulher deitada com as pernas à mostra, muito gordas e penugentas — num desalinho irresistível, braços nus, cabelo solto. — Devia de ser esplêndido a gente dormir nos braços de uma mulher! A portuguesa até não era mazinha.

Aleixo, porém, estava longe de supor que D. Carolina, aquela D. Carolina, que o tratava como filho, bondosa e meiga, pretendesse fazê-­lo seu amante.

Semelhante idéia nunca lhe passara pela imaginação. Via entrar homens no quarto dela, sabia os amores do açougueiro, mas isso era lá com os outros de barba; o que lhe parecia impossível, e ele nem sequer pensava, é que D. Carolina tivesse intenções com um rapazinho de sua idade, uma criança quase....

— Pronto! fez ele ao voltar do Passeio Público.

— Oh! depressa! exclamou a portuguesa, erguendo-se. Venha cá, no meu quarto está mais fresco....

O quarto de D. Carolina ficava justamente por baixo do sótão, na frente da casa, um largo aposento de mulher solteira, onde havia uma bela cama de casal com travesseiros de renda.

Quando o grumete chegou, ela estava na sala de jantar lendo os anúncios do Jornal do Commércio, à luz do gás.

— Divertiu-se muito?

— Qual! Fui e voltei logo.

— Por minha causa?

— Não, o Passeio é que estava insípido... Pouca gente.

Aleixo parou à porta do quarto como quem receia entrar.

— Entra, filhinho, entra, que isto aqui é nosso, isto aqui é da tua portuguesinha, não vês?

E, alegre como nunca, foi abrindo as janelas que diziam para a rua ir da Misericórdia, num alvoroço.

Enquanto o pequeno andava fora, ela fizera nova toilette, penteara-se, mudara a roupa, trocara os tamancos por uma sapatinhas cor de sangue e colocara os anéis, os célebres anéis que lhe tinham querido roubar: transformara-se completamente.

— Senta, deixa de tolice, filho!

Aleixo sentou-se muito acanhado, com um ar de colegial que pela primeira vez penetra num lugar suspeito. Morava naquela casa há um ano e só agora entrava ali, no quarto da portuguesa.

— Bonita sala!

— Bonita o quê, ó pequeno; estás a debicar hein? disse a mulher acendendo o gás, no bico dos pés, rindo.

— Bonito és tu — tu é que és bonitinho...

— D. Carolina gosta de caçoar com a gente!...

E a portuguesa, sentando-se também, alisando-lhe o cabelo com as mãos, rubra de calor:

Pois é isto, minha flor: o que eu tinha a dizer é que estou apaixonada por ti!

— Ora!

— Estou falando sério; não vais agora dizer a Bom-Crioulo que eu lhe quero tomar o amigo... Olha que o negro é capaz de estran­gular-me....

— Já está D. Carolina com as brincadeiras...

— Não é brincadeira, não, filho, tornou a outra, afetando seriedade. Quero que durmas hoje, ao menos hoje, com a tua velha...

E foi se derreando sobre os ombros de Aleixo, com uma fingida ternura de mulher nova.

O pequeno desviava o olhar dos olhos dela, cheio de pudor, um sorriso fixo na boca sombreada por um buço em perspectiva, muito encolhido na cadeira, sem dizer palavra.

O contacto de sua perna com a da portuguesa produzia-lhe um calorzinho especial, um brando enleio d’alma, uma vaga e deliciosa canseira no fundo do seu ser, um esquisito bem-estar.

Por sua vontade ficaria naquela posição eternamente, sentindo cada vez mais forte a influência magnética daquele corpo de mulher sobre os seus nervos de adolescente ainda virgem...

D. Carolina chegava-se pouco a pouco, estreitando-o, colando-se-lhe num grande ímpeto de fúria lúbrica, de mulher gasta que acorda a urna sensação nova...

— Tu não podes comigo, disse trançando a perna sobre o joelho de Aleixo.

E envolvendo-o todo com o seu corpo largo de portuguesa rude:

— Dize lá: ficas ou não ficas?

O efebo teve um arranco de novilho excitado, e segurando-se à cadeira com as mãos ambas, todo trêmulo agora, sem sangue no rosto

— Fico!

Então ela, como se lhe houvessem aberto de repente uma cau­dal de gozo, cravou os dentes na face do grumete, numa fúria brutal, e segurando-o pelas nádegas, o olhar cintilante, o rosto congestio­nado, foi depô-lo na cama:

— Pr’aí, meu jasmim de estufa, pr’aí! Vais conhecer uma portu­guesa velha de sangue quente. Deixa a inocência pro lado, vamos!...

Bateu a porta e começou a se despir a toda pressa, diante de Aleixo, enquanto ele deixava-se estar imóvel, muito admirado para essa mulher-homem que o queria deflorar ali assim, torpemente, como um animal.

— Anda, meu tolinho, despe-te também: aprende com tua velha... Anda, que eu estou que nem uma brasa!...

Aleixo não tinha tempo de coordenar idéias. D. Carolina o absorvia, transfigurando-se a seus olhos.

Ela, de ordinário tão meiga, tão comedida, tão escrupulosa mesmo, aparecia-lhe agora como um animal formidável, cheio de sensualidade, como uma vaca do campo extraordinariamente excitada, que se atira ao macho antes que ele prepare o bote.....

Era incrível aquilo!

A mulher só faltava urrar!

E a sua admiração cresceu ainda mais quando ela, sacando fora a camisa ensopada de suor, caiu nua no leito, arquejante, segurando os seios moles, com um estranho fulgor no olhar de basilisco.

Mas Aleixo sabia, por Bom-Crioulo, até onde chega a animalidade humana, e, passado o primeiro momento de surpresa, sentiu que também era feito de carne e osso, como o negro e D. Carolina: — Valia a pena decerto uma noite como aquela!

Acordou cedinho, pela madrugada. Queria ir para bordo no escaler das compras.

A portuguesa ergueu-se, fez café ali mesmo no quarto, sem despertar ninguém, jubilosa como uma noiva, exultando!

Graças a Deus estava muito conservadinha, não era tão velha como se pensava. Ainda tinha forças para inutilizar muito homem robusto, olá se tinha!

— E agora já sabes, meu pequerrucho: quando o negro não vier à terra — um abracinho à Carola. D’hoje em diante quero que me chames Carola, ouviste? É mais bonito, entre pessoas que se estimam... Carola e Bonitinho é como nos devemos tratar.

Vinha amanhecendo quando o grumete, ainda bêbedo de sono, os olhos apertados, o passo leve, saiu direito ao cais dos Mineiros. Estava muito pálido, com grandes olheiras, repetia maquinalmente: — Se Bom-Crioulo soubesse!... ao mesmo tempo que seu espírito voltava-se todo para o sobradinho da rua da Misericòrdia, onde aquela hora D. Carolina encharcava-se num magnífico banho frio de chuveiro.

— Se fosse possível não me encontrar mais, nunca mais, com aquele negro, ah! que felicidade! pensava o grumete aproximando-se de um grupo de marinheiros, perto do cais.

E a figura da portuguesa, muito gorda e risonha, os dentes muito alvos, os quadris largos, a face rubra, dançava em sua imaginação, como um sonho diabólico...