Candido de Figueiredo 1913/Volume 1/Conversação preliminar/VIII

VIII

A grammática


Desde que se divulgou a notícia do próximo apparecimento do Novo Diccionário da Língua Portuguesa, mais de um dos meus futuros leitores me perguntou se a obra seria precedida de algumas noções grammaticaes. Nessa pergunta vinha insinuado um desejo, mais ou menos justificável.

É verdade que alguns lexicógraphos escreveram de grammática á entrada dos seus diccionários; mas êsse facto, de reconhecida conveniência em tempos que raros compêndios grammaticaes nos deixaram, não legitimaria hoje a reiteração de tal processo.

Por duas razões, ou por duas ordens de razões, não trato aqui de grammática:

Primò: — A grammática, como ella geralmente tem sido considerada até hoje entre nós, isto é, como estudo das leis que regulam a linguagem, não me mereceu nunca entranhado affecto, por me parecer circunscrita no domínio de uma casuística, sem vantagens immediatas para o conhecimento prático da língua. Os bons escritores nunca o fôram por haver estudado compêndios de grammática; e não será ocioso reiterar a consideração, que já fiz algures, de que os grandes grammáticos raramente terão sido grandes escritores.

Na ordem chronológica, o escritor precede o grammático. O escritor consigna factos, constituídos pela gênese, pela índole e pela evolução phonética e morphológica da língua. Vem depois o grammático, e deduz dêsses factos theorias e systemas, que êlle arvora em códigos, mais ou menos fallíveis, mais ou menos incompletos. Observam-se então interessantes antinomias: factos de bôa linguagem portuguesa, que não são grammaticaes; e expressões grammaticaes, que não são portuguesas.

Secundò: — A população escolar, e aquelles que, para o estudo da língua, têm a ingenuidade de procurar grammáticas em vez de procurar os bons escritores, não lutam hoje com a deficiência de compêndios, como nos tempos idos, desde o João de Barros e o Fernão de Oliveira até o Lobato e o Madureira Feijó.

Verdade é que nem tudo, que se diz Grammática, é recommendável; mas não é diffícil a escolha. Houve um professor erudito, Augusto Epiphânio, que, nacionalizando o velho Madvig, — velho, porque escreveu há sessenta annos, — supplantou sediças convenções, e, levando um pouco de crítica e de rigor scientífico á cáthedra escolar, expôs, sob novo aspecto, as leis que pôde deduzir dos factos da língua.

Entretanto, a Philologia erguia-se vigorosa, impunha-se aos grandes centros scientíficos, e ampliava a grammática, do estudo das leis, á exegese dos factos da linguagem, alargando e aprofundando os domínios da Phonética, fazendo a anatomia morphológica das línguas e expungindo, em nome da sciência, convenções que a ignorância ou a rotina consagraram.

Sob êste ponto de vista, — triste é dizê-lo, — antecipou-se-nos o Brasil, onde, há annos já, a Philologia vingou em bons frutos, mercê de talentos claros e renovadores que, antes de nós, comprehenderam e perfilharam o movimento operado pela Philologia na esphera das sciências modernas.

Não chegámos cedo, mas chegámos: hoje, aí temos um largo e vigoroso ensaio de renovação dos estudos grammaticaes, na Grammática Portuguesa do esclarecido Lente universitário, Dr. António Garcia Ribeiro de Vasconcelos.

Não quero eu dizer que esta Grammática seja trabalho completo e impeccável: os grammáticos de profissão hão de discutir, e rejeitar talvez, um ou outro conceito, uma ou outra deducção. Mais philólogo que grammático, o autor devia têr-se visto enredado na trama subtil, e ás vezes traiçoeira, dos velhos casuístas; mas, no conjunto do seu trabalho, e nomeadamente na Phonética, e ainda na Morphologia, abre horizontes novos aos estudiosos, insiste no estudo e crítica dos phenómenos da linguagem, e corrige numerosos erros, até hoje correntes na escrita nacional.

Em Portugal pois, e cada uma sob o seu ponto de vista, a Grammática de A. Epiphânio e a de Ribeiro de Vasconcelos, podem prestar ensinamentos mais valiosos do que os que por mim poderiam sêr communicados aos que de mim desejam lições de grammática.

Os meus leitores no Brasil, que não conheçam as alludidas grammáticas, lá têm ao seu alcance excellentes subsídios grammaticaes nos escritos de Júlio Ribeiro, Augusto Freire, João Ribeiro, Sotero dos Reis, Lameira de Andrade, Baptista Caetano, Pacheco da Silva e tantos outros.

Bem sei que as Grammáticas e os tratadistas da linguagem não prevêem nem destrinçam todas as dúvidas que possam occorrer a estudiosos e, mais ainda, aos que, pouco lidos embora, não desejam errar. Sobretudo a syntaxe e as flexões dos verbos irregulares nunca hão de sêr isentas de travancas e dúvidas. Para taes casos, nada há melhor do que o exemplo e a leitura dos mestres que tal nome mereçam. E não será mister lê-los todos: quem dos antigos conhecer bem Thomé de Jesus, Luís de Sousa, Bernárdez e Vieira, e, dos modernos, Herculano, Latino e Castilho; quem, na expressão falada e escrita, se não afastar da prática dêlles, póde estar tranquillo, porque falará e escreverá português ás direitas, sem perigo dos fáceis e vulgares extravios de quem fala e escreve, mais do que lê onde deve lêr.

Para hypótheses insuladas ou fortuitas e para indicação prática dos precipícios que podem colher incautos, aí estão os volumes de Lições Práticas da Língua Portuguesa, escritas pelo autor dêste Diccionário, e cuja extracção em Portugal e no Brasil me convence de que essoutro trabalho meu não foi inopportuno e inútil.

 

Lisbôa, 10 de Março de 1899.

 

C. de F.