62. A MIRRA (mumia)

Um rapaz muito folgasão quiz dar uma grande festa no dia dos seus annos; foi por casa de todos os amigos convidal-os para virem jantar e cear com elle. Quando vinha para casa, encontrou ainda um amigo em frente do cemiterio e depois de convidal-o ficou a conversar muito satisfeito. Estando n'isto deu com os olhos em uma mirra, ou esqueleto ainda revestido de carne que estava junto de uma parede, e disse-lhe mofando:

— Se quizeres vir tambem ao banquete dos meus annos…

— Lá irei, respondeu-lhe a mirra.

O rapaz ficou espantado, e perguntou ao amigo se tinha ouvido alguma voz. Como este lhe dissesse que nada tinha ouvido, elle tambem não se atreveu a revelar-lhe o caso. D'ali se foi cheio de susto, e ao passar por casa do prior, fez confissão do que lhe acontecêra:

— O que foste fazer homem! Não sabes que não se brinca com os mortos?

— E agora?

— Agora não tens remedio senão sujeitares-te ao que acontecer. Manda pôr na meza mais um talher, ainda que não seja senão como satisfação.

A noite correu no meio de dansas, até que os convidados foram para a meza; ao soar a primeira badalada da meia noite, bateu-se á porta; o rapaz tremendo foi vêr quem era e recuou, abrindo. A mirra entrou vagarosamente, e dirigiu-se para a meza, e sentou-se no logar que estava desoccupado. Comeu, comeu, comeu, e depois levantou-se e disse para o mancebo:

— Pois bem, já que fizeste o favor de me convidares para o banquete dos teus annos, tambem te peço que ámanhã a esta mesma hora vás cear commigo.

Ditas estas palavras partiu.

O rapaz ficou ainda mais aterrado do que de antes; não poude dormir, até que ao outro dia foi ter com o confessor para lhe contar o succedido.

— Não tens outro remedio senão ires; sae-te mais mal se faltares. O que te posso fazer é emprestar-te a capa com que digo missa para te defenderes.

Lá por alta noite o rapaz foi para o adro da egreja, a tremer como varas verdes; e ao dar da meia noite em ponto, o rapaz bateu á porta, e a mirra appareceu, e levou-o comsigo para dentro.

— Vês estas duas covas aqui?

— Vejo.

— Pois uma é a minha e a outra seria para ti; mas o que te vale é vires vestido como Christo. Mas sempre te digo que nunca mais brinques com os mortos.

O rapaz, sem saber como, achou-se fóra da egreja, como se acordasse de um pezadello, teve uma grande doença, e em toda a sua vida nunca mais brincou com os mortos.

(Algarve.)