Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O boi Cardil


58. O BOI CARDIL

Um rei tinha um criado, em quem depositava a maior confiança, porque era homem que nunca em sua vida tinha dito uma mentira. Recebeu o rei um presente de um boi muito formoso, a que chamavam o boi Cardil; o rei tinha-o em tanta estimação que o mandou para uma das suas tapadas, acompanhado do criado fiel para tratar d’elle. Teve uma occasião uma conversa com um fidalgo, e fallou da grande confiança que tinha na fidelidade do seu criado. O fidalgo riu-se.

— Porque te ris? — perguntou o rei.

— É porque elle é como os outros todos, que enganam os amos.

— Este não!

— Pois eu aposto a minha propria cabeça como elle é capaz de mentir até ao rei.

Ficou apostado. Foi o fidalgo para casa, mas não sabia como fazer cahir o criado na esparrella, e andava muito triste. Uma filha nova e muito formosa quando soube a causa da afflicção do pae, disse:

— Descance, meu pae, que eu heide fazer com que elle hade mentir por força ao rei.

O pae deu licença. Ella vestiu-se de velludo cramezim, mangas e saia curta, toda decotada, e cabellos pelos hombros e foi passeiar para a tapada; até que se encontrou com o rapaz que guardava o boi Cardil. O rapaz era rapaz, e ella começou logo:

— Ha muito tempo que trago uma grande paixão, e nunca te pude dizer nada.

O rapaz ficou atrapalhado, e não queria acreditar n’aquillo, mas ella taes cousas disse, e taes geitinhos deu, que elle ficou pelo beiço. Quando o rapaz já estava rendido, ella exigiu-lhe que em paga do seu amor matasse o boi Cardil. Elle assim fez e deu-se por bem pago todo o santissimo dia.

A filha do fidalgo foi-se embora, e contou ao pae como o rapaz tinha matado o boi Cardil; o fidalgo foi contal-o ao rei, fiado em que o rapaz havia de explicar a morte do boi com alguma mentira. O rei ficou furioso quando soube que o criado lhe tinha matado o boi Cardil, em quem punha tanta estimação. Mandou chamar o criado.

Veiu o criado, e o rei fingiu que nada sabia; perguntou-lhe:

— Então como vae o boi?

O criado julgou vêr ali o fim da sua vida, e disse:

Perúa alva.

Corpo gentil,

Me fez a mim matar

O nosso boi Cardil.

O rei mandou que se explicasse melhor; o moço contou tudo. O rei ficou satisfeito por ganhar a aposta, e disse para o fidalgo:

— Não te mando cortar a cabeça, como tinhas apostado , porque te basta a deshonra da tua filha. E a elle não o castigo, porque a sua fidelidade é maior do que o meu desgosto.

(Algarve.)


58. O boi cardil. — Este conto acha-se na tradição oral da Ilha da Madeira ainda em fórma poetica, com o titulo de Boi Bragado. (Romanceiro do Archipelago da Madeira, p. 273.) Nos Contos populares portuguezes n.º LVI, traz o nome de O Rabil, versão de Coimbra, com o estribilho poetico:

Senhor meu amo!
Pernas altas e cara gentil
Me fizeram matar o boi Rabil.

Esta facecia tem raizes tradicionaes muito profundas; Schmidt determina-lhe um paradigma nas Gesta Romanorum, cap. 111, no qual se vêem ainda os elementos mythicos de Io mudada em vacca, e Argus, o pastor, fazendo um discurso ao seu barrete espetado na aguilhada, da mesma fórma que Travaillin faz em um conto semilhante das Piaccecole Notte de Straparole, Noite III, Fabula V. (Les Facetieuses nuits, t. I, p. 223. Ed. Janet.) Na versão franceza das Gesta, Le Violier des Histoires romaines, cap. XCVIII, p. 265, não traz a seducção amorosa. N'esta edição indicam-se novas fontes; acha-se tambem nos Contos turcos, que Loiseleur des Longchamps juntou á sua edição das Mil e uma Noites, p. 315. Vide a Histoire du grand ecuyer Saddyk. Nos Quarenta Vizires, vem este conto com o titulo Scheikk Chehabeddin, d'onde passou para outras collecções europêas. O Dr. Schmidt, nas notas á sua versão de Straparola, cita este mesmo conto em allemão do seculo XVI, que se acha nos Volkssagen, d'Otmar (Nachtigall) Breme, 1800. O Abbade Blanchet, nos Contes et Apologues orientaux, tral-o tambem sob o titulo de Doyen de Badajoz. (Vide Loiseleur des Longchamps, Essai sur les Fables indiennes, p. 173.) No conto VIII dos Contos sicilianos de Laura Gonzenbach, é uma cabra que serve para pôr á prova a fidelidade do aldeão. (Vide Gubernatis, Myth. zoologique, t. I, p. 442, nota.) Nos Contos de Pomigliano, colligidos por Vittorio Imbriani, acha-se esta anedocta em que o heroe se chama José Verdade. (Rev. des Deux Mondes, Nov. 1877, p. 145.)