Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O cavalleiro e o pacto com o diabo

144. O CAVALLEIRO E O PACTO
COM O DIABO

Huum cavalleyro nobre poderoso seendo rico despendeu todos seus bẽes tam sem descreçam, que cayo em muy gram pobreza. Este cavaleyro avia huuma sua molher muyto casta e devota da benta virgem Maria. E veo huuma grande festa em que este cavaleyro soya dar muytas doas e fazer grande despeza. E por que nom tinha já que desse, com vergonça foyse esconder em huuma mata, e ali jazia fazendo seu doo ataa que passasse aquella festa. E estando elle em aquelle logar chegou a elle huuma creatura muy espantosa em cima de huum cavallo espantoso e perguntoulhe por que era assy triste. E o cavalleyro lhe contou toda sua fazenda. E a creatura espantosa lhe disse:

— Se quizeres fazer o que te eu mandar, eu te farey aver mays riquezas e mais honrras que ante avias.

E o cavalleyro lhe prometeo que faria todo o que elle quisesse, se elle comprisse todo o que lhe promettera. E o demo lhe disse:

— Vay a tua casa e cava em loguar e acharas muyto ouro. E prometeme que tal dia tragas aqui a mym tua molher.

E o cavalleyro lhe prometeo. E foyse a sua casa e achou muy grande riqueza segundo lhe dissera o diabo. E começou de viver honrradamente como ante. E quando veo o dia em que prometera levar sua molher ao diabo, disselhe que sobisse em huum cavallo que se avia d'hir longe con elle. E ella como quer que ouvesse grande temor, nom ousou contradizer ao marido e foyse com elle, commendando-se devotamente a sancta Maria. E hindo elles pello caminho, vyo ella huuma egreja de sancta Maria e deçeo do cavallo e entrou en a egreja, e o marido ficou fora attendendoa. E ella fazendo sua oraçom devotamente aa beenta virgem adormeçeo. E a beenta virgem tomou semelhança daquella dona em todo e foysse fóra da egreja e cavalgou en o cavallo da dona. E foysse com o cavaleyro, pensando elle que era sua molher. E quando chegarom a o loguar veo logo o diabo tostemente. E quando perto delles nom se ousou cheguar, mais começou de tremer e aver grande pavor e asanharse. E disse ao cavaleyro:

— Oo falso e muy desleal cavaleyro porque me fezeste tam grande escarnho e me fezeste tanto mal por muytos beens que te eu figi, tu me prometeste que me trarias tua molher e trouveste Maria. Ca eu me quisera vinguar da tua molher por muytas enjurias que me faz, e tu trouvesteme esta que me atormenta gravemente e me lança en o abisso do inferno.

Quando esto ouvyo o cavalleyro ficou muy espantado e maravilhado, e com temor nom pode falar. E a beenta virgem disse ao diabo:

— Qual foy a tua ousança e o teu maao atrevimento que presumias empeecer aa minha devota! mas nom escaparás assy sem pena, ca eu te mando que logo descendas aos abissos do inferno e que daqui em diante nom empeças a nenhuuma pessoa que me chamar com devoção.

Quando esto ouvio o diaboo, partiuse logo dally tostemente huyvando e fazendo grande doo. E o cavaleyro deçeosse do cavallo e lançouse em terra aos pees da beenta virgem. E esta o reprendeo do que fezera e mandoulhe que sse tornasse pera sua molher que acharia dormindo en a egreja e que lançasse de ssy aquellas riquezas que ouverom pollo diaboo. E a beenta virgem desapareceo. E o cavaleyro tornouse a egreja e espertou sua molher que jazia dormindo e contoulhe todo quanto lhe acontecera. E foramsse pera sua casa e lançarom de ssy todo aquelle aver que ouverom pollo diaboo. E perseverarom em louvores e em serviço da beenta virgem muy devotamente e depois ouverom per ella muyta riqueza a serviço do senhor deus.

(Fl. 120.)




Notas editar

144. O cavalleiro e o pacto com o diabo. — Esta tradição é ainda popular na Italia, e acha-se colligida na Sicilia por Pittré; a Edade media elaborou-a profundamente em cantos, contos e autos. Acha-se na narrativa do rei de Castella, Dom Sancho o Bravo, intercalada no El Libro de los Exemplos; e foi o assumpto de um drama do velho theatro francez Du chevallier qui donna sa femme au dyable. Du Puymaigre cita uma ballada allemã sobre este mesmo thema. (La Poesie populaire en Italie, p. 42.) Nas Cantigas de Santa Maria, por D. Alfonso el Sabio, n.º CCXVI, vem esta lenda curiosa.