Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/A proposito de um livro

A PROPOSITO DE UM LIVRO


Ha momentos em que eu não posso deixar de me sentir desconsolada. Parece-me n’esses momentos que a humanidade está passando por uma das crises mais graves da sua vida de tantos seculos.

E quem terá forças para conservar-se espectador indifferente d’essa dolorosa tragedia de que é theatro o mundo inteiro!

Theorias que se atropellam e se contradizem, systemas politicos que mutuamente se combatem, opiniões tão variadas, ácerca das cousas graves e das cousas insignificantes, que não nos resta meio algum de descortinar a verdade em meio de tão babylonica confusão.

Na pratica o desmentido formal e permanente a todas as doutrinas que se prégam e se propagam!

Celebra-se a apotheose da familia, e a familia decadente, desnorteada, desunida, apresenta o reflexo fiel d’esta quadra de desalento e de incerteza!

Emquanto os sonhadores erguem um altar á justiça, como á deusa moderna que mais cultos merece, a injustiça acclamada, protegida, triumphante campeia n’este mundo onde a victoria já não pertence ao mais forte, mas sim ao mais astuto!

A politica, que parecia dever ser aquella sciencia complexa e respeitavel de conduzir as sociedades ao mais alto grau de aperfeiçoamento material e moral, não é senão um mercado abjecto, onde se debatem os mesquinhos interesses individuaes, não aquelles interesses que são a base do bem collectivo, mas os que se traduzem na exploração do homem pelo homem.

A guerra aqui acesa e selvagem, de uma selvageria refinada e scientifica, acolá disfarçada e hypocrita, arma-se por toda a parte, como nos seculos que lá vão, egualmente funesta, embora a revistam mais prestigiosos aspectos.

Falla-se em paz, em fraternidade universal, préga-se uma religião humana que parece querer e dever supprir a religião divina, mas os modernos crentes d’esse dogma que assenta no direito, na justiça, no amor universal, atraiçoam tanto as suas doutrinas, como atraiçoavam a sua fé os catholicos mal esclarecidos das épocas de ascetismo rude, e de fanatica superstição.

Para onde vamos nós?

Se vamos para o Bem, o que é que origina esta dolorosa inquietação, que avassalla e confrange todas as almas, este contraste incomprehensivel, entre o que se pratica e o que se pensa?

Se vamos para o Mal, para que nos fallam do progresso, da perfectibilidade humana, das conquistas da civilisação, dos arrojos felizes da sciencia, de tudo que parece preparar ao homem uma quadra luminosa, feliz, nunca realisada até agora?

D’antes, n’estas horas de duvida, de angustia oppressiva, iamos nós procurar consolação na palavra animadora e harmoniosa dos que, com os olhos fitos na estrella do ideal, indicavam ao homem o rumo que elle tinha a seguir, para não se perder na sua gloriosa ascenção.

Hoje, esses pilotos da náu do futuro estão mudos ou descrêem tambem!

Mais doloroso ainda que o silencio desalentado, é o rictus sarcastico com que elles assistem á lucta estranha e confusa de tantos elementos contradictorios e incompativeis.

Depois a litteratura, que é o espelho da alma das sociedades, é hoje por toda a parte um brado unanime de negação.

Não reconstrue, não modifica o que está feito, trata de o desmoronar pedra por pedra!

Ha um homem em França que refaz, collocado n’um ponto de vista diverso, a obra collossal de Balsac.

O romancista mais admiravel da França, aquelle que fez do romance um ramo das sciencias sociaes, fez n’um momento, que tem por força de ficar, a synthese de sua época.

Pintou, e com que potencia da verdade! os reis, e os operarios, as duquezas sentimentaes, e os artistas convulsionados pela nevrose do seu tempo, os politicos, os sabios, os pensadores, os litteratos; as peccadoras do alto mundo, e as peccadoras do mundo equivoco; os financeiros, e os luctadores ambiciosos; os que vinham perder a alma e gastar o corpo n’essa Pariz electrica e absorvente, que attrahe os genios e os monstros, e os que vinham alli conquistar a fortuna, o poder, a soberania omnipotente.

Na sua obra complexa, enorme, que ás vezes tem na distancia um não sei que de monstruoso, encontra-se viva, palpitante, com os seus vicios, com as suas paixões, com o seu talento ardente, com a sua magnetica e irresistivel seducção, uma das épocas mais caracteristicas da civilisação da França, o que significa a civilisação da Europa.

Se em Balzac encontramos as florescencias rubras do mal, nem por isso nos seduzem menos as suavidades castas da virtude.

Ao pé de Madame de Marneffe, a pequenina e graciosa féra parisiense, felina e nervosa, com caricias que mordem e furores que acariciam, ha a doce figura de Eugenia Grandet, a mais dolorosa virgem, que a imaginação moderna ainda concebeu e idealisou.

Ao pé de Luciano de Rubempré o ambicioso effeminado e morbido; de Vautrin o brutal luctador que seria um condottiere do seculo XVI e que só póde ser um forçado no seculo XIX; ao pé de Marsay o politico sagaz, que faz dos homens, das mulheres e das cousas, meros instrumentos da sua fortuna, que não tem lei nem fé, e que é capaz de assassinar com um sorriso de dandy, temos d’Arthés o pensador austero, e pobre escriptor para quem a litteratura é um magisterio e não um officio, temos Cesar Birotteau, a sublimidade burgueza, o honesto commerciante que tem palavra de duque, que é perfumista com a mesma nobreza de abnegação e de honradez, com que se é sacerdote, e que glorifica toda uma classe de que se riem os frivolos, sem saber quanta heroicidade é precisa para saber guardar immaculada em um peito de burguez, a honra de um paladino.

Dizem que o vicio pollula na obra de Balzac com uma exhuberancia de vegetação inacreditavel.

Elle não foi mais do que o analysta apaixonado da sua época.

Adorou-a pelo que ella tinha de grande, comprehendeu que lhe podia desnudar as chagas, visto que ao lado d’ellas podia mostrar tão admiraveis bellezas.

Foi implacavel na sua justiça.

O seu tempo seduziu-o pelo que havia de brilhante nos seus vicios, de fecundo e poderoso nas suas paixões, de arrebatado e creador no seu genio, de raro e dedicado nas suas virtudes.

Hoje no artista que segue as pisadas de Balsac, que não tem a sua potencia creadora, mas que tem como elle, e talvez mais methodicamente do que elle, o estudo paciente e investigador, que vemos nós que possa dar-nos aquella sensação de prazer agudo que a leitura conscienciosa de Balzac dá a um verdadeiro artista?

Emilio Zola tambem descreve a sua época.

É artista, porque sente e sabe fazer sentir.

Diz-se imparcial!

Faz viver nos seus livros a sociedade de que faz parte; entra nos palacetes de pedraria rendilhada dos modernos financeiros, os reis do mundo actual, percorre os salões doirados e os boudoirs phantasistas, as salas de jantar, onde se reunem as reliquias mais preciosas de umas poucas de civilisações, janta nos restaurantes de mais fama, visita nos seus camarotes da opera ou dos italianos as mundanas mais elegantes, as hautes gommeuses mais admiradas e invejadas, está no segredo de todas as operações da Bolsa, escutou a uma porta todas as combinações e convenios diplomaticos, penetrou com a sua perspicacia tenaz no interior da alma que anima o seu tempo, fallou com os artistas, com os sabios, com os poetas, com as mulheres; subiu aos oitavos andares onde dormem amalgamados n’uma dolorosa e medonha promiscuidade os miseraveis d’essa Pariz, cuja superficie é tão seductora e tão brilhante; viu os farrapos que cobriam o corpo d’esses indigentes, e os vermes que corroiam a alma d’esses parias; escutou as perfumadas confidencias que murmuram devagarinho uns labios frescos e vermelhos, por detraz d’um leque onde dançam a gavotte umas pastorinhas de Watteau.

Observou de perto o que ha de mais brilhante e o que ha de mais abjecto, o que ha de mais puro e o que ha de mais ignobil.

D’essa observação tão variada e tão completa que resultado colheu?

Não o posso dizer ao certo, sei só que não ha nada mais desolador e mais triste do que a leitura d’um livro de Zola.

E Zola é, depois de Tlambert, o grande mestre que morreu, o escriptor de mais pulso da moderna geração realista.

Os outros não téem o talento d’elle, não téem o alcance funesto ou bom, mas em todo o caso poderosissimo da sua obra, não téem a sua paciencia de benedictino, exercida com os processos da nova escola.

Isto não é dizer mal dos que trabalham agora, é notar e assignalar um dos symptomas da confusão que hoje nos desnorteia.

Acudiam-me todos estes pensamentos, imagina como, leitora?

Ao lêr um novo livro de Feuillet, ultimamente publicado em Pariz Le journal d’une femme.

Feuillet é por excellencia o escriptor elegante e delicado.

No fundo, póde ser que a obra d’elle tomada no seu conjuncto não seja de uma moralidade tão cauterisadora como a que resulta dos livros de Zola.

Ninguem diga que Zola é um escriptor immoral, não; elle é simplesmente um escriptor mysantropo: vê as cousas pelo lado mais negro, e as suas bachanaes, nuas como são, não téem effeitos enervantes, doem como um caustico applicado sobre uma ulcera aberta.

Ao lel-o, a gente não tem de certo tentações de imitar os seus deploraveis heroes; pelo contrario. Sente-se ferida, humilhada, quasi que angustiada, e exclama tristemente: Meu Deus! pois a humanidade é isto!

Octavio Feuillet é, por assim dizer, o contraste do seu illustre contemporaneo.

Escreve das mulheres e para as mulheres com penna d’ouro e nacar.

Feuillet é o ultimo romantico, depois do romantismo ter morrido, como Balzac é o primeiro realista antes do realismo nascer.

Para Feuillet, o delicado observador, as paixões são doenças da alma; para Zola, o anatomista implacavel, as paixões são doenças do corpo.

O convulso e repugnante hysterismo das mulheres de Zola não tem nada que vêr com a sentimentalidade melancolica das mulheres de Feuillet.

Nenhuma d’ellas — deixe-se isto bem claramente registrado para honra e felicidade do sexo feminino — nenhuma d’ellas é a verdadeira mulher, a que tinha a obrigação de ser a mulher do futuro, já me não atrevo a dizer da que o será.

Octavio Feuillet, que está talvez perto demais das cruas pinturas do realismo, intentou n’este seu ultimo livro, chamado Le journal d’une femme, rehabilitar as ideias romanticas, que visto perderem tantas mulheres, podem tambem salvar algumas.

Elle que sabe tão bem dar vida ás suas pallidas e nervosas heroinas, que téem na bocca o sorriso da esphinge, que téem na voz uns feitiços mysteriosos, que téem no gesto uma graça irrequieta e caprichosa, que sabem arrastar o homem até á beira do crime com um aceno das suas mãos esguias e aristocratas, elle, o creador do Conde de Camors, esse ultimo producto da litteratura byroniana, que endoudeceu de amor litterario tanta mulher, eil-o que se propõe d’esta vez o difficil thema de explicar a que nobres e altos sacrificios o romantismo bem entendido póde levantar uma mulher.

Foi arrojada a empreza; arrojada, mas feliz.

Le journal d’une femme, livro que eu já d’aqui recommendo a todas as minhas leitoras, é uma joia admiravel, cinzelada pela mão de um artista de coração.

E depois são taes os exageros e desmandos da chamada escola realista, é tal o amesquinhamento a que ella reduz a humanidade, que é bom que um escriptor de tão prestigiosa eloquencia como é Octavio Feuillet mostre que, no fim de contas, nem tudo era mau na geração que os moços de hoje tentam desthronar com tão arrogante desdem.

Roubar ao homem e sobretudo á mulher aquelle ideal em que até agora todos punham a mira embora o julgassem inacessivel, é despir a vida das poucas flôres que ella póde ter.

Não; o homem não é só um ser organisado que pensa, é tambem uma alma que ama, espera e crê!

N’esta era de transformação e de incerta claridade, é bom que uma voz se erga e diga bem alto que a paixão só é criminosa quando mal dirigida, que o excesso do sentimento só é ridiculo quando mal applicado, que a abnegação inteira e absoluta tem gozos superiores a todos os gozos da materia, e que as almas boas e as almas grandes descobriram uma linguagem mysteriosa, na qual fallam com Deus.

Não basta descrever minuciosamente com uma perversão de gosto, devéras deploravel, tudo que ha mau, grotesco, ou vicioso na creação; não basta ter em si tão accentuada preoccupação horrivel, que se deseje vêr com o microscopio do naturalista, para bem lhe distinguir os defeitos, as anfractuosidades, as maculas, os vermes, de tudo que á simples vista seria harmonioso e bello.

Áquelle a quem se roubam todas as illusões salutares cumpre apontar para algum bem que ainda lhe ficará na terra, bem verdadeiro que o compense de todas as suas perdidas alegrias mentirosas!

Não basta negar, é necessario affirmar com convicção robusta; não basta demolir, é preciso ao lado dos edificios que se derrubam e desmoronam construir novos edificios mais ricos e mais seguros.

Octavio Feuillet fez este livro, como um protesto de escola, sem comtudo perder com esta qualidade um tanto dogmatica, o seu interesse dramatico, a vida intensa, tão indispensavel ás verdadeiras obras d’arte.

Dado o caso de se chamar romantismo ao excesso de certos e determinados sentimentos, á concepção mais ou menos chimerica que temos das cousas da vida, resta provar se o romantismo póde ou não póde ser nocivo conforme o terreno em que medrar e o meio em que se desenvolver.

A principal heroina do romance, aquella que escreve o seu Diario, ao qual dá o titulo de livro, é uma rapariga apaixonadamente romantica, tudo quanto ha mais romantico, quer dizer tudo quanto ha de menos pratico e real.

Por isso sendo moça, formosissima, sentindo cantar dentro da sua alma a festiva e triumphante symphonia dos vinte annos, tendo uma d’estas bellezas caracteristicas que dão a certas mulheres um aspecto de deusas, amando com aquella primeira e casta ternura das virgens um homem em tudo digno d’ella, sacrifica todas estas superioridades da natureza, todas estas radiosas promessas de felicidade a quem? a que?

A um pobre mutilado que morria de amor por ella, a um soldado que voltára da guerra sem uma perna e sem um braço, informe, grotesco, irremediavelmente desgraçado, e que, assim mesmo do fundo do abysmo em que o destino o lançára, ousou amar aquella mulher olympica, e teve a audacia de tentar morrer por causa d’ella.

Emquanto elle viveu, foi-lhe fiel como as mulheres dignas o sabem ser, consolou-o de tudo que perdera, levou a luz da sua caridade bemdita aos antros em que aquella pobre alma se debatera inutilmente por tanto tempo.

Mais tarde quando o marido morre, abençoando-a como se abençôa um anjo, ella, livre de novo, torna a encontrar o homem que amou uma vez, e que não soube esquecer.

Esse é então marido da amiga, da infancia, da juvenil viuva.

Não são felizes, os dous, mas ella, a intrepida, a caridosa creatura, lá está tentando da abnegação de cada um d’elles fazer a felicidade de ambos.

Não o consegue, e quando a amiga, culpada e arrependida se mata para fugir ao horror de mentir eternamente a seu marido, só ella no mundo recebe a confidencia do seu crime, confidencia que n’uma carta repassada de dôr a douda creança lhe pede que transmitta ao esposo ultrajado.

Ficaram ambos livres em face um do outro, ambos viuvos, ambos tendo cumprido a missão que o destino lhe confiára.

Nada os desune agora, nada, a não ser uma duvida que punge o animo d’aquelle, que hoje ella ama perdidamente com a paixão concentrada de tantos annos de sacrificio.

— Porque foi que a minha mulher se matou? pergunta elle então. Ás vezes lembro-me que foi talvez o desamor que eu não soube occultar bastante. Se assim fôr, fugirei. Não quero gozar uma ventura de que não sou digno. Se eu matei uma innocente e casta creança, quem me dá direito a ser ainda feliz na terra?

Só ella o sabe, só d’ella depende aquella ventura divina, de que o dever e a caridade a fizeram fugir n’outro tempo.

Pois a ninguem revelou o segredo da sua amiga morta, da doce creatura que a paixão fustigara e que a paixão matou!

Calou-se, deixou que o noivo da sua alma se affastasse para sempre, pungido por um remorso que o separava da ventura, e olhando para o berço da filha escreveu estas palavras que vertem lagrimas, as santas lagrimas, que os realistas não conhecem:

«Restas-me tu, minha filha... Escrevo estas linhas ao pé do teu bercinho... Espero que um dia estas paginas façam parte do teu enxoval de noiva; talvez ellas te digam que queiras muito á tua pobre mãe, tão romantica!... D’ella saberás talvez que a paixão e o romance podem ser bons, com a ajuda de Deus, porque elevam os corações e ensinam-lhes os deveres superiores, os grandes sacrificios, as elevadas alegrias da vida. É verdade que eu chóro ao dizer-te isto, mas olha que ha lagrimas que causam inveja aos anjos.